Parei para lembrar da Companhia das Letras.
Para mim ela teve uma importância fundamental, da qual falo daqui a pouco. Mas para o mercado também teve.
Até ela surgir, o mercado editorial brasileiro andava meio modorrento. Me refiro, especificamente, a um descaso gráfico absurdo (principalmente no final dos anos 80, quando a crise fez com muitas editoras baixassem a qualidade gráfica dos seus livros). Desde o fim da era Santa Rosa, com suas capas que eram verdadeiras obras de arte minimalistas, o que se via eram capas vagabundas e pouca ousadia gráfica; os tipos do miolo eram sempre os mesmos, uma Times padrão que, quando a editora era realmente ruim, podia se transformar numa Helvetica, provavelmente o pior tipo para um livro (minto: eu tenho um, “O Ano I da Revolução Russa”, de Victor Serge, composto em Avant Garde; as coisas sempre podem piorar). Acho que esse problema vem da época da ditadura, não sei.
A Companhia das Letras mudou isso, a partir de 87. Sendo uma editora pequena em números (até 1993 eu costumava colecionar seus catálogos, sempre de bom gosto e com relativamente poucos títulos), ela privilegiava duas coisas: lançamentos de importância estratégica (como “Rumo à Estação Finlândia”, de Edmund Wilson, e “Os Escritores”, uma coletânea de entrevistas da Paris Review com grandes escritores) e capas fenomenais. As capas da primeira edição de “Os Escritores”, por exemplo, foram pintadas uma a uma.
Acho que até agora não se atentou muito para esse aspecto. As capas da Cia. das Letras representavam um avanço enorme em relação à mediocridade gráfica geral. O bom gosto e a elegância delas eram impressionantes. Foi a primeira editora a tomar tanto cuidado com as capas e com a tipologia de seus livros quanto com a obra em si. Eu reconhecia uma edição da Cia. das Letras facilmente, simplesmente porque as capas eram mais bonitas.
Elas eram assinadas principalmente por Ettore Bottini e Helio de Almeida. Bottini acabou repetindo o mesmo modelo de capa livro após livro (basicamente um box com o título do livro sobre alguma obra de arte), e acabou um pouco apagado diante do brilhantismo do segundo, mas ele foi fundamental ao estabelecer um padrão gráfico que as outras editoras não utilizavam. Quanto ao Helio de Almeida, bem, são suas as capas mais belas do mercado editorial atual.
Há outro aspecto importante. A Companhia das Letras trouxe ao Brasil uma série de escritores modernos antes desprezados, como Dorothy Parker, John Cheever e tantos outros. Esses são os dois melhores contistas americanos do século XX, e com exceção de um romance de Cheever, nunca tinham visto a luz do dia em português. Trouxe bons poetas, também, como a maravilhosa Marianne Moore.
A tudo isso a Cia. das Letras juntava uma bela concepção de marketing e relações públicas, que deu uma bela duma sacudida no mercado editorial. Acho que esse foi o seu papel histórico, privilegiar o livro como objeto e modernizar um pouco as relações de editoras com o mercado.
Para mim sua importância é muito maior (e não sei se superestimo seu papel na história editorial do país por essa razão). Foi graças a “Os Escritores” que dei uma direção à minha volta à leitura, depois de dois anos lendo pouco e gritando palavras de ordem demais; e “A Experiência Burguesa — Da Rainha Vitória a Freud” foi um dos poucos livros que posso dizer que tiveram alguma influência real na minha vida. A partir daí eu me senti um quase literato, passei a entender mais do assunto.
Hoje a Companhia das Letras é uma editora a mais. Não chega ao nível de uma Record, com seus best-sellers e livros de bolso, nem de uma Ática focada no mercado educacional. Mas publica muito lixo, tem um volume enorme de lançamentos anuais, e aquelas estratégias de marketing que serviram para projetar tanta gente boa hoje misturam príncipes e sapos. É só outra editora.
É interessante notar que a Cia. das Letras nunca foi a editora mais ousada do país. Esse título, certamente, pertence à Brasiliense de Ênio Silveira. Nenhuma outra editora, por exemplo, publicaria livros como o belíssimo Le Diable Au Corps, de Raymond Radiguet, ou livros underground como “Porcos com Asas”, de Marco Radice. Nem os livros de Caio Fernando Abreu, vários beat, ou ainda tantos noir (acho que publicou praticamente todos os Chandler e os Hammett, se me lembro bem). Bancar esses lançamentos, mesmo sabendo que teriam um retorno financeiro pífio — se tivessem algum –, era a maior prova de ousadia que se podia dar.
A Brasiliense era o melhor modelo possível de editora que tem, sim, um compromisso intelectual com o país. Seus livros eram feinhos, a qualidade gráfica era duvidosa, os anúncios no final dos livros eram de mau gosto. Mas se a Cia. das Letras fazia tudo com classe, com uma bela embalagem, a Brasiliense ia ao cerne das coisas, ao que era realmente importante. Formou gerações de leitores, disso ninguém pode ter dúvidas.
Quem não conhece o Ênio Silveira mas assistiu a “Anos Rebeldes” pode ter uma idéia do que foi o sujeito. O personagem do editor (Carlos Zara, se não me engano), que brigava pela qualidade em confronto com um protótipo de yuppie que só prestava atenção ao mercado, foi inspirado nele. E mesmo sendo um herói quixotesco típico de um melodrama televisivo, ainda assim não lhe fez justiça.
Rafael, por onde você anda menino? Preciso falar com você urgente. Me escreve. Beijos, Érika
artedeguardar@yahoo.com.br
Excelente texto, Rafael. Eu lembro dessa época da Companhia das Letras, cuja excelência editorial do início recebeu bastante espaço em algumas publicações de cultura, como por exemplo o caderno cultural da Folha de S. Paulo, que eu assinava na época.
Achei tocante a sua menção “en passant” ao seu tempo de militante. Foi no estudantil? Eu perdi um curso na Universidade por causa da “causa”, mas o fato é que não me arrependo muito, é algo que teria que acontecer mais cedo ou mais tarde.
Sobre a Brasiliense, acho que aquela coleção a que você se referiu (dos quais li, por exemplo, o “Porcos com Asas” citado) ajudou a despertar o gosto pela leitura em muito jovem por aí. Eu já estava escolado em “clássicos” mais antigos, e descobrir obras mais modernas (Chandler, por exemplo) foi muito legal.
Eu fiquei meio puto quando os Wunderbloggers, no alto de sua arrogância letrada, fizeram sapateado em cima da suposta má qualidade de quase tudo que a Brasiliense teria publicado…
Fazem o mesmo com a Conrad agora, ou seja, analisam ideologicamente os lançamentos alheios.
PS: não é do meu tempo, mas acredito que a Civilização Brasileira teve um papel “civilizador” semelhante em décadas anteriores.
Marcos, acho que misturei as bolas. O Ênio Silveira foi editor da Civilização Brasileira. E agora eu não sei mais se ele foi ou não editora da Brasiliense.
Edições como a da «Longa Viagem da Biblioteca dos Reis» demonstra a enorme qualidade dos conteúdos e do grafismo da Companhia das Letras. Será que o cuidado com as edições não trás um retorno em termos de vendas ?
eu te falei: esse “à sombra das torres ausentes”, do art spiegelman na edição da cia das letras é um MARCO! veja, veja!
Rafael…passei aqui só pra te avisar que “nasceu”…hahaha
Opa, eu quis dizer que meu texto em resposta ao seu foi publicado. Ah, espero que goste. 😉
queria saber um pouco mais s/ a CIA DAS LETRAS e seu fundador
Rafael, O Enio Silveira foi editor da Civilização Brasileira onde fez coisas maravilhosas com o Moacir Félix. O editor revolucionário da Brasiliense nesta época de que você fala, foi o genial Caio Graco Prado, filho do intelectual Caio Prado Jr.
Grande abraço