Mas não se mata cavalo?

Quando as chuvas voltaram a inundar o Rio Grande do Sul este ano, agora com menos gravidade, lembrei da tragédia do ano passado, e de um artigo na Folha de S. Paulo que usou o destino do cavalo ilhado em um telhado de Canoas para um pequeno ensaio sobre a questão da miscigenação racial, cujo autor infelizmente esqueci. Ele o considerava um símbolo do hibridismo racial brasileiro, da maneira como nós nos enxergamos. Se não podemos mais admitir a ideia de miscigenação, se ela deu lugar a uma reinterpretação americanizada e binária de uma disputa inconciliável entre brancos e pretos, então transferimos nossa visão atávica sobre raças para os vira-latas.

(O nome que deram ao cavalo, Caramelo, me irrita. Aquele era um cavalo baio, mas as redes, eminentemente urbanas e que nunca sentiram o cheiro de um equino — que o general Figueiredo preferia ao cheiro de povo — precisam dar às coisas os nomes que já conhecem, adequá-las ao mundo novo da comunicação miojo. O mundo não é mais o que é; é como influencers o veem, e então a ignorância — o não saber que aquela cor, em um cavalo, é baia — ascende e ocupa o lugar da informação correta. Talvez nunca tenha sido realmente diferente, mas agora é como se tudo tivesse tomado anabolizantes.)

O artigo é bom, apesar dessa insistência típica destes tempos de reduzir situações complexas a símbolos chamativos. Dois ou três pontos nele me incomodavam, mas já nem lembro quais eram.

O resgate do cavalo Caramelo, claro, acalmou os corações angustiados nas redes sociais e possibilitou deixar de lado a consciência mais ampla das dimensões da catástrofe gaúcha no que diz respeito a animais. Apenas para ficar na discussão que interessa aos que preferem bicho a gente, não sei se dá para fazer ideia da quantidade de vacas que tiveram o leite empedrado em seus ubres, porque a infraestrutura de grandes e pequenos criadores foi destruída e elas não podiam ser ordenhadas. Não se faz ideia de quantos bois, cavalos, carneiros, cachorros, porcos, galinhas morreram. O setor rural nas áreas atingidas foi destruído, mas qualquer discussão mais profunda saía dos holofotes, porque não interessa, não gera engajamento, não dá dinheiro em um mundo que se acostumou a uma corrida de ratos cada vez mais sórdida e desesperada. As pessoas precisam da imagem insólita de um cavalo em cima de um telhado, de um cachorrinho sendo resgatado e nadando no ar. Precisam de imagens que falem ao coração seletivamente terno de gente confortavelmente instalada, não aos seus raciocínios e em um mundo saturado de informação, só o que é diferente é capaz de falar às pessoas. E assim, não há necessidade de se discutir o que causou a tragédia, como se lidou com ela, porque afinal o cavalo Caramelo foi salvo e está muito bem, obrigado. Recebeu doações para garantir sua alimentação pelo resto da vida, algo que não faz sentido sob nenhum aspecto que não seja a existência midiática e a capacidade nativa de se mobilizar por causas desimportantes mas apelativas. A inefável Janja se engajou pessoalmente pelo seu bem-estar.

Eram as mesmas redes que durante a crise louvavam o voluntariado, ajudando em parte a obscurecer quem realmente fez a diferença, no fim das contas: o Estado — apesar do patético, pequeno e vergonhoso Eduardo Leite. A caridade, afinal, nos justifica e nos redime, acalma nossas consciências, e nada mais realmente importa.

E então impressiona a maneira como nos acostumamos a um mundo onde tudo é like, tudo é exposição. Todo mundo correu para tirar sua lasquinha na tragédia: de Janja a Felipe Neto, de Ana Maria Braga a Giovanna Ewbank. Uns com mais senso, outros com mais desespero em não perder a oportunidade; mas mesmo senso e desespero hoje parecem calculados, porque cada um ocupa o seu nicho, com suas necessidades e clamores, e sabem como dar o seu público a desgraça que eles querem.

Eu, pelo menos, não consigo mais ver esse pessoal sem lembrar imediatamente de “Mas Não Se Mata Cavalo?”, de Horace McCoy. Não pelo cavalo, que o livro não tem nenhum; mas pelo desespero que, embora manifestado de maneiras diferentes, parece ser o mesmo em 2025 e durante a Depressão americana. O mesmo desespero que fazia as pessoas dançarem até a morte para garantir que no dia seguinte não passariam fome as faz produzir conteúdo, qualquer que seja, para as redes.

As diferenças que parecem óbvias, pela distância no tempo e no espaço, no fim das contas apenas parecem. Enquanto a classe média da terra do Siegfried Ellwanger defendia armada suas casas — ou defendeu durante algum tempo, nunca pude saber; as notícias rapidamente deixavam de aparecer e não tinham o que no jornalismo se chama suíte, porque mesmo a miséria alheia numa hecatombe cansa — e as grandes vítimas, negras e pobres, eram alijadas do noticiário, a não ser quando suas histórias individuais podiam ser destacadas para gerar lágrimas no Jornal Nacional ou no Fantástico, a impressão que ficava era a de que o mundo está cada vez mais dessensibilizado, que passou a só existir em pequenos vídeos de Instagram ou TikTok.

E essa é talvez uma tragédia ainda maior. Porque se somos todos caramelos, o prognóstico é muito ruim.

Há uma epidemia pior que a de Covid-19 em andamento:uma epidemia de gente pobre e feia se expondo e fazendo graça de suas misérias e esquisitices em suas casas sem reboco e telhados de Eternit, acreditando que as redes são uma nova Serra Pelada; 40 anos são tempo suficiente para que se esqueça que, naquele garimpo, meia dúzia de garimpeiros enriqueceu e outros 100 mil tiveram que se contentar em carregar sacos de areia na cabeça quilômetros de escadas acima e morrer em deslizamentos de terra. Mas qualquer que seja sua classe, o que os caramelos querem, no fundo, é enriquecer fácil. A diferença entre pobres e ricos é apenas estética. E os cavalos agora somos nós.

Um bastardo chamado Rock

Primeiro foi meu identitarista preferido, Lelê Teles, que me mandou um vídeo de Instagram em que um negão reivindicava a paternidade negra do rock and roll.

Minha primeira reação foi de incredulidade: “Peraí: esse pessoal criou o jazz — o jazz, velho, o jazz. A forma superior de música popular. A música erudita do século XX — e fica brigando pela paternidade de uma música vagabunda como o rock?”

Não vi o vídeo inteiro, que eu tenho mais o que fazer, ainda que seja nada.

Depois apareceu para mim no YouTube um vídeo em que uma narradora de voz monocórdia e jovem faz um apanhado da história do rock para dizer mais uma vez que o rock é invenção de negros, como sempre roubados por brancos saudosos dos tempos da escravidão.

Mães negras americanas deveriam registrar seus filhos como Rock porque aí, pelo visto, os pais não iriam sumir — ah, eu sei que não deveria ter escrito isso, não posso fazer essa piada porque ela só pode ser feita por negros americanos e eu não tenho lugar de fala. Mas sabe como é: foda-se.

A verdade é que eu nunca tinha pensado demais nisso. Para mim e para o resto do mundo ajuizado, o rock é uma criação progressiva e coletiva, como absolutamente toda e qualquer linguagem artística. Um a um, cada músico, branco ou negro, foi colocando seu ingrediente pessoal numa enorme sopa de pedra feita a partir de ritmos diversos, negros como o rhythm and blues e brancos como country & western.

(Escrevi “brancos e negros”; me perdoe. Esqueci maravilhas filipinas como os Tielman Brothers.)

Mas depois de ver esses dois vídeos entendi que o rock and roll, na verdade, é música de branco. Sempre foi música de branco. Eu é que não tinha percebido.

A maneira mais simples de demonstrar isso é fazendo uma pergunta simples: tirando Jimi Hendrix, e em menor medida Phil Lynott do Thin Lizzy, qual artista negro chegou ao estrelato tocando rock nos anos 60 e 70 (vou poupar pixels lembrando que Ike e Tina Turner, Prince, Michael Jackson faziam outro tipo de música, e que artistas como Lenny Kravitz e Living Colour são já dos anos 90, ainda assim exceções que confirmam a regra)?

Não tem. O rock se tornou domínio de golden gods como Robert Plant.

A verdade é que a música negra evoluiu por caminhos separados a partir do momento em que as canções de Chuck Berry, Little Richard, Fats Domino caíram no gosto do consumidor jovem branco. Essa primeira onda se esgotou muito rápido. Por maior que seja o impacto de cada um, não dá para esquecer o fato de que a obra de qualquer dos pais do rock, brancos ou negros (ou filipinos, antes que eu esqueça novamente), se esgota em uma coletânea de grandes sucessos. Ouça o último disco de Chuck Berry, de 2017: é a mesma música que ele fazia 60 anos antes — uma das faixas se chama Lady B. Goode, por sinal. O mesmo vale para o último álbum de Jerry Lee Lewis.

Mas a música negra não parou ali. Ela continuou evoluindo, por caminhos divergentes. Soul, funk, disco, West Coast Sound (nesses dois últimos casos, sejamos justos: dessas desgraças ninguém briga pela paternidade, né?), hip hop, rap. O rock ficou relegado aos branquelos.

É por isso, por essas limitações, que já no comecinho dos anos 60 aquilo que era revolucionário em 1955 tinha degenerado no twist — eu repito, twist não é música que se dê ao respeito.

Em menos de cinco anos, toda uma geração — Berry, Richard, Jerry Lee, Carl Perkins, Everly Brothers, Gene Vincent, o próprio Elvis — não tinha nada de realmente novo a dizer. Foi preciso que meninos da classe trabalhadora da Inglaterra e uma nova geração americana, como Bob Dylan e os Beach Boys, reinventassem essa música para que ela ressurgisse como algo completamente diferente e maior, agora melódica, harmônica e liricamente mais sofisticado, com uma mensagem mais complexa que ajudaria a dar voz a uma geração e elevaria o que era apenas um gênero musical a um fenômeno cultural e de transformação social.

E aí eu lembro da moça de voz chata que fez um vídeo explicando que rock é música negra.

O vídeo apareceu para mim por acaso, e eu já ia mudar para algo que me interessasse mais — como fazer mudas de fruta-pão, por exemplo, negócio difícil dos infernos — quando a vi cair numa armadilha.

Ela falou de Hound Dog.

Você conhece Hound Dog. Se não conhece, não sei como chegou até aqui, e muito menos por quê. A moça usava a canção para mostrar como a indústria branca roubou o talento dos negros. Hound Dog foi lançada por Big Mama Thornton — por sinal, heroína adequada ao resgate pelos novos tempos, preta, gorda, lésbica e talentosíssima; então veio aquele matuto sórdido, um tal de Elvis Presley, e como ele era branco e bonito e tinha uma pélvis reboculosa, roubou a música e fez dela um sucesso absurdo. Ah, ladrão safado.

O problema é que Hound Dog é o exemplo perfeito de tudo o que escrevi até aqui. A canção circulava por aí havia alguns anos antes que Elvis a transformasse num clássico absoluto do rock and roll. Eu gosto muito da versão de Big Mama, mas são canções completamente diferentes. E basta ouvir as duas versões para entender perfeitamente tudo o que tentei dizer até agora.

Hound Dog , no entanto, não é a obra de um pobre bluesman que vendeu a música a um produtor esperalhão por duas mariolas e um cigarro Iolanda. Foi composta por dois garotos judeus de Nova York, Jerry Leiber e Mike Stoller. Compositores, aliás, de boa parte dos maiores clássicos do rock and roll.

A versão de Thornton, para início de conversa, não é rock and roll. É rhythm and blues — tecnicamente é um clássico blues de 12 compassos. É uma versão adorável, sensual, ostensivamente sexual — é a moça reclamando de um malandro que se aproveitou dela até onde pôde—, cheia de swing, feita para que você rebole sua cintura bem encostado à cintura de quem você quer chamar, mais tarde, de cachorrão ou miseravona. Uma das gravações de Thornton, com a banda de Muddy Waters, é especialmente brilhante.

Mas o que Elvis traz é outra coisa. O menino de Tupelo deu a essa canção uma agressividade, uma ansiedade, uma urgência que está para as versões anteriores como o pós-punk do Nirvana está para o bubblegum rock de The Archies. Comparar as duas versões é como comparar Barry Manilow e Dead Kennedys. Elvis dá, ali, expressão à angústia adolescente. Reduzindo a letra à expressão do desprezo e mágoa, tirando o caráter sexual e dando a ela uma camada de ódio, indignação e revolta que não havia na versão original, Elvis canta em um frenesi que é a melhor definição do que é o rock and roll.

Um crítico cujo nome não lembro dizia que não sabia definir o que era rock, mas sabia identificar um quando ouvia. Ele devia estar se referindo a essa canção.

O mais triste nisso tudo— e talvez o que realmente importa — não é que esse seja um perfeito exemplo da ineficiência dessas tentativas de reescrita da história a partir de uma ótica identitária, que só conseguem o efeito contrário ao que queriam demonstrar. É que depois dessa separação essas vertentes voltariam a se encontrar. É o que se ouve hoje, em grande medida. Uma música cada vez mais repetitiva, derivada, dependente de padrões pré-existente em algum computador. Tão ruim que dá até a impressão de que as pessoas estão buscando algum sentido para sua vida espiritual quando brigam para ver quem é o pai de um filho bastardo chamado Rock.

Sobre o identitarismo

O Marcus fez um comentário ao último post, reclamando do que parece considerar ataques ao identitarismo e, por tabela, à própria ideia de luta das minorias.

Justo, mas há alguns problemas ali.

O primeiro problema do identitarismo está resumido na segunda frase do comentário do Marcus:

O que chamam de “identitarismo” é apenas a luta de minorias para ser respeitadas, ou, em casos extremos, não ser mortas. Para negros, gays, lésbicas, transexuais, mulheres, pessoas com deficiência, “identitarismo” é a luta por ser uma pessoa completa.

Não é. A impressão de que o identitarismo é a grande representação moderna da luta social de minorias, toda ela, mascara o fato de que na verdade é apenas um segmento pequeno, míope e bastante equivocado de uma luta bem maior.

O problema central do identitarismo é que ele não diz respeito a transformação social real, que necessariamente é algo sistêmico e amplo. Diz respeito a autoestima, a reconhecimento, ainda menos que conquistas para grupos específicos. A identidade, como diz seu nome. É um modo de ver o mundo e reivindicar direitos que, como lembrou o Leo Bernardes, nasceu nas universidades americanas, nas condições específicas de uma sociedade muito mais rígida que a brasileira — e não por acaso, lá é chamado de “cultura woke”, o que denota seu caráter obviamente oriundo da cultura religiosa puritana americana, quase messiânico; o sentimento que deu origem ao identitarismo é o mesmo que nos legou a Lei Seca — e que uma elite acadêmica brasileira, profundamente influenciada pelos Estados Unidos e esvaziada ideologicamente, tenta importar para cá, trazendo junto inadequações e desconsideração de contextos.

Esse trecho de “O Progressista de Hoje e de Amanhã”, de Mark Lilla (lembrando que nos EUA “liberal” significa “progressista”), ajuda a colocar as coisas em perspectiva:

A grande abdicação liberal começou na Dispensação Reagan. Com o fim da Dispensação Roosevelt e o surgimento de uma direita unificada e ambiciosa, os liberais americanos se viram diante de um sério desafio: desenvolver uma nova visão política do destino do país, adaptada às novas realidades da sociedade americana e aprendendo com os fracassos de velhas atitudes. Isso os liberais não souberam fazer. Envolveram-se na política identitária, perdendo o sentido do que compartilhamos como cidadãos e do que nos une como nação. Uma imagem do liberalismo de Roosevelt e dos sindicatos que o apoiavam era a de um aparto de mãos. Uma imagem recorrente do liberalismo identitário é a de um prisma que reflete um único raio de luz, produzindo um arco-íris. Isso diz tudo.

A política identitária certamente não representa nada de novo na direita americana. O mais impressionante durante a Dispensação Reagan foi o desenvolvimento da sua versão de esquerda, que acabou se tornando a doutrina seguida por duas gerações de políticos, professores, jornalistas, militantes liberais e filiados ao Partido Democrata. Não foi um acidente histórico. Pois o fascínio (e em seguida a obsessão) pela identidade não desafiava o princípio fundamental do reaganismo, o individualismo: ele o reforçava. A política identitária de esquerda se tratava, a princípio, de grandes grupos de pessoas — afro-americanos, mulheres — que buscavam reparar grandes erros históricos se mobilizando e se valendo de nossas instituições políticas para assegurar seus direitos. Mas nos anos 1980 essa política cedera lugar a uma pseudopolítica de autoestima e de autodefinição cada vez mais estreita e excludente, hoje cultivada nas faculdades e universidades. Seu principal resultado foi fazer os jovens se voltarem para a própria interioridade em vez de se abrirem para o mundo exterior. Isso os deixou despreparados para pensar no bem comum e no que deve ser feito, na prática, para assegurá-lo — especialmente a difícil e nada glamurosa tarefa de persuadir pessoas muito diferentes de si a participarem de um esforço comum. Todo progresso da consciência identitária liberal tem sido marcado por um retrocesso da consciência política liberal, sem a qual nenhuma visão do futuro pode ser imaginada.

(…)

O paradoxo do liberalismo identitário é que ele paralisa a capacidade de pensar e agir da maneira adequada para conseguir o que se diz querer. Vive hipnotizado por simbolismos: conquistar uma diversidade superficial nas organizações, recontar a história de modo a deslocar o foco para grupos marginais e não raro minúsculos, inventar eufemismos inócuos para descrever realidades sociais, proteger os olhos e os ouvidos de adolescentes acostumados a filmes de terror contra qualquer encontro perturbador com pontos de vista alternativos. O liberalismo identitário deixou de ser um projeto político e se materializou num projeto de evangelização. A diferença é a seguinte: evangelizar é dizer verdades ao poder. Fazer política é conquistar o poder para defender a verdade.

Não pode haver política liberal sem uma consciência de coletividade — do que somos como cidadãos e do que cada um de nós deve ao outro. Se os liberais esperam algum dia recapturar o imaginário dos Estados Unidos e se tornar uma força dominante em todo o país, não bastará que sejam melhores do que os republicanos em inflar o ego do mítico trabalhador braçal. Eles deverão oferecer uma visão do nosso destino baseada numa coisa que todos os americanos, de qualquer condição, de fato compartilhem. E essa coisa é a cidadania.

Cidadania é a palavra-chave aqui. A luta identitarista não é mais por direitos comuns, por igualdade. É sobre ser simplesmente ouvido num mundo midiático em que você só existe se existe nas redes sociais; daí a patacoada de brigar pelo uso de turbante, daí a criação de um conceito deletério como “apropriação cultural”, daí a transformação lamentável de um conceito inclusivo e significativo como o “lugar de fala” em instrumento de exclusão e reserva de mercado por essa minoria extremamente vocal. É o mesmo pessoal que reivindica o candomblé como eleeneto central de sua nova identidade mas fecha os olhos ao fato de que a maioria dos macumbeiros hoje são brancos: os negros estão é nas igrejas evangélicas, algo terrivelmente incômodo para eles, e que mostra ao menos uma certa desconexão com a realidade.

(Nos EUA foi pior. Sem a plasticidade cultural luso-brasileira, os negros americanos tiveram sua identidade cultural totalmente destruída — um pouco menos na Louisiana francesa, claro. Daí que em sua busca por uma identidade uma parte resolveu se reinventar no islamismo, algo que nunca fez parte da identidade cultural dos africanos nos EUA.)

Por isso é tão importante a “palavra”, por isso “ressignificar” é tão central em suas políticas. Foi no universo acadêmico, frequentado por uma elite cultural que vive não da ação, mas da palavra, mesmo que vazia e direcionada a ouvidos surdos, que essa abordagem cresceu e se multiplicou. Como digo aqui há uns 20 anos, esse pessoal parece achar que basta chamar uma pessoa de LGBTQIAPN+ para impedir que um homofóbico lhe desça a porrada.

Em uma esquerda que se viu órfã de um modelo viável de transformação a ser apresentado, com a queda dos regimes socialistas (e sem a capacidade de investigar e tentar entender o modelo chinês), foi fácil se fragmentar em disputas pequenas, localizadas, de pequenos grupos. O problema é que se tornou pequeno demais, e deixou de falar para a sociedade.

Uma matéria antológica na New Yorker, de 1916, mostra bem no que isso resultou. A matéria, publicada antes das eleições, acompanhava a campanha de Hillary Clinton.

Ali, George Packer já apontava o que havia de errado na esquerda americana: nas últimas décadas, o Partido Democrata havia se elitizado e assumido um discurso aparentemente voltado exclusivamente para as minorias: mulheres, negros, gays. Enquanto isso, a classe média branca, empobrecida pela desindustrialização do país e pela crise no setor de serviços causadas por gigantes online como a Amazon, se via abandonada pelos democratas, que se dirigiam às minorias e simplesmente ignorava essa parcela da sociedade. Não se trata de perda de privilégios, e sim de direitos: desempregada, em meio a uma epidemia de opioides que reflete a falta absoluta de perspectivas, ela se via numa situação não muito confortável, forçados a escolher entre o Partido Democrata aliado ao rentismo globalizado, e um lado, e o Partido Republicano aliado à elite produtora nacional do outro.

A escolha era óbvia. Resultado: perda de direitos por brancos, mulheres, negros, gays. Como diria Dilma, perdeu todo mundo. É o que costuma acontecer quando se perde a ideia de conjunto.

Sem pensar muito, posso mencionar dois exemplos graves da cegueira e estupidez dos identitaristas. Um já foi abordado aqui: um jogador de vôlei fez cara feia para a ideia de um “Superman gay”, as pessoas caíram matando em cima dele e ele perdeu o emprego. Por essa perseguição, se transformou em deputado — e agora não se restringe a dar opinião, agora ele vota projetos contra gays, contra a igualdade racial, contra o direito ao aborto.

O episódio lembrou o quanto há de autoritário e totalitário nesse movimento que se pretende exclusivo. O que chamam de cultura de cancelamento é mais que uma resposta legítima a opiniões contrárias. Em nome do respeito, da defesa de “ideias certas”, tolhe não apenas manifestações racistas, mas também quem tem uma visão levemente diferente da deles.

O outro exemplo é ainda mais complicado. Há cinco anos, a historiadora Lilian Schwarcz resenhou um espetáculo da Beyoncé para a Folha de S. Paulo. O tom da resenha era elogioso, mas ela fez algumas reparações ao final. E disse que a Beyoncé precisava “entender que a luta antirracista não se faz só com pompa, artifício hollywoodiano, brilho e cristal”

O mundo caiu. Schwarcz levou pancada de todos os lados do movimento identitário, lhe negando, para começar, o tal “lugar de fala” — no que parece ser uma manifestação clara de uma certa cultura de gueto, de um sectarismo tosco e infantil.  Tudo isso culminou em um pedido de desculpas, em que Schwarcz reconheceu o seu lugar de branca e, portanto, impossibilitada de dar sua opinião sobre racismo ou mesmo fazer reparos estéticos ao que se pretende uma obra de arte. Foi o pedido de desculpas mais indevido que já vi.

Eu não conheço a obra de Lilia Schwarcz. Li apenas um de seus primeiros livros, “Retrato em Branco e Preto”, e isso há mais de 30 anos. Tampouco vi o tal espetáculo. Pela descrição, era uma adaptação tipicamente hollywoodiana, com todos os seus excessos, de “O Rei Leão”.  Se for isso mesmo, era simplesmente uma merda — ruim em sua origem, ruim em sua execução. Negritude não redime a breguice hollywoodiana. Mas dizer isso, para os identitaristas, parece ser o equivalente a assinar a ficha de filiação à Ku Klux Klan.

Nesse affair, infelizmente, não há inocentes. Imagino que a Schwarcz tenha pedido desculpas porque é esse o seu tema de estudo, é para esse público que ela escreve e publica livros. É no ambiente tóxico da Academia que ela circula. Na minha opinião, ela foi simplesmente covarde e pensou no leitinho das crianças — mesmo sendo uma das donas de uma das maiores editoras do país.

Mas esse clima de autoritarismo, de policiamento do pensamento é, talvez, o mais assustador. Alguns anos atrás o Itamar Vieira Júnior pediu a cabeça do Leandro Narloch na Folha de S. Paulo. Ele não queria ver opiniões como a dele no jornal, o que ilustra a dificuldade extrema desse pessoal de conviver com a pluralidade de pensamento, ou mesmo de combater ideias divergentes. Essa vocação para calar os outros é preocupante.

Mais grave, no entanto, é a tentativa de revisão da história. O identitarismo nos legou duas heroínas no Livro de Aço: Dandara e Luiza Mahim. O fato de nenhuma das duas ter existido — no caso de Mahim, mãe de Luiz Gama, não existe como heroína, já que não há nenhum indício de que tenha sequer participado da revolta dos Malês, que nos últimos 40 anos adquiriu uma proeminência talvez não muito justa — não importa para esse pessoal, porque o que conta, mesmo, é a fantasia adequada. Precisam tanto de uma simbologia que se adeque ao seu discurso que, então, a realidade é o que menos importa. Menos mal que Luiz Gama — este um verdadeiro gigante, um dos maiores de nossa história — também esteja no tal Livro.

Vem daí também a insistência em definir a escravidão brasileira como tão ruim ou pior que a americana.

Os Estados Unidos receberam cerca de 400 mil escravos africanos. Quando da Emancipação, havia 4 milhões de escravos e 490 mil negros livres, 11% da população negra no país. A verdade é que, em 1860, a “peculiar institution” não estava sob risco imediato nos estados escravagistas; o que se discutia era sua expansão para os novos territórios. Lincoln só assinou a Emancipação depois de bem adiantada a Guerra de Secessão, e fez isso para conseguir mais soldados e mais apoio no território Confederado

O Brasil traficou quase 6 milhões de escravos da África. Em 1872, havia 1,5 milhão de escravos e 4,2 milhões de negros livres. O número de escravos desabou ainda mais rapidamente nos 16 anos seguintes, na esteira do maior movimento popular da história até então, e da certeza de que a Abolição era inevitável.

Pode não ser melhor ou pior; não acredito que seja possível qualificar um sistema escravagista como melhor ou pior que outro. Mas é preciso ser muito estúpido para achar que essa diferença de números, e a presença de uma população negra livre e numerosa, ainda que absolutamente oprimida pelo racismo e pela estrutura socioeconômica do país, não geram uma dinâmica de relações sociais muito mais complexas que aquelas condicionadas pelo binarismo americano. No mínimo, inviabilizam qualquer tentativa cega de aplicar o mesmo receituário americano aos problemas nacionais.

Eu considero que uma das grandes contribuições brasileiras à humanidade é a miscigenação generalizada — “Que se misture tudo!”, dizia Gerônimo. É aterrorizante ver grupos identitaristas chamando, hoje, essa miscigenação de genocídio. Não é à toa que eles insistem em colocar na boca de Gilberto Freyre a expressão “democracia racial”, que na verdade foi dita por militantes negros americanos ao verem no Brasil uma situação social muito diferente da que conheciam.

Falando nisso, e de volta a Lilia Schwarcz, mais recentemente ela publicou um tweet em que diz exatamente isso, que a miscigenação racial neste país é o resultado de estupros. É um pressuposto que tem menos base histórica do que adequação forçada à narrativa dominante de um tempo. Não se trata nem mesmo de entender qualquer relação interpessoal entre senhores e escravos como “estupro estatutório”, devido à estrutura de poder. Mas de negar a variedade e a complexidade dessas relações em uma estrutura de dominação, negar inclusive protagonismo aos milhões de negros livres que já existiam antes da Abolição e que, sim, tomavam o que consideravam ser as melhores decisões.

Nessa moda identitarista de tomar como ofensa pessoal quaisquer posições em relação a grupos, mesmo aqueles perdidos no tempo, eu poderia dizer que a honra da minha família foi atacada pela Schwarcz. Eu, como grande parte dos brasileiros, descendo de escravos e de senhores de escravos. No ramo familiar que posso rastrear mais facilmente — aquele eminentemente branco e “fidalgo” —, meu pentavô mereceu um artigo nos jornais de Sergipe e do Rio por manter escolas para ensinar os filhos dos escravos a ler e por mantê-los em seu engenho mesmo depois de velhos; seu neto, meu trisavô, casou com a filha de um de seus ex-escravos. Pelo menos nesse ramo, eu posso garantir que não houve estupro nenhum.

O Marcus finaliza dizendo que o que tenho escrito sobre o assunto lembra a ele Wilson Gomes e Pablo Ortellado. Nunca li nada do Ortellado, mas conheço um pouco do Wilson Gomes. Não creio que o Marcus tenha dito isso como elogio, mas, sinceramente, pelo menos no que se refere ao Gomes não acho que eu esteja em má companhia.

Isso me lembrou outro sujeito, seu colega de UFBa, que conheço um pouco melhor: Antônio Risério. Seu “A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros”, em que denuncia o binarismo artificial que os identitaristas tentam aplicar à sociedade brasileira, é um bom livro, e obviamente é execrado por esse pessoal. Já faz algum tempo que Risério vem sendo atacado com força pelos setores identitários, e eu tenho notado um fenômeno extremamente previsível: Risério tem se aproximado da direita, até por uma questão de sobrevivência e resistência aos ataques.

Ou seja, o identitarismo apenas divide, reduz. Cria guetos, justamente aqueles que devia tentar extinguir. Ao ver o mundo pelo seu umbigo e com as lentes erradas, focando no que é acessório, enfraquece o movimento social, reduz à caricatura, gera apenas fraqueza. Não é um bom caminho.

Mas, lá no fundo, este velho marxista-leninista é um otimista. Como todo bom materialista dialético, ainda tenho a esperança de que dessas contradições surja uma síntese que expurgue a palhaçada exagerada dos identitaristas. Não sei se viverei o suficiente para ver esse dia. Mas isso não quer dizer que eu vou fechar os olhos para sua estupidez.

Bom dia, todes e todes

Defensores dessa estupidez que chamam de “linguagem inclusiva” adoram dizer que “a linguagem só existe em movimente, que nomear é dar pertencimente, que linguagem é instrumente de dominação”.

A desculpa da mobilidade é boba, e profundamente elitiste. Do contrário, haveria esforço para normatizar gramaticalmente os pobremas que o povo enfrenta, as abrobas que comem sentados em táubas debaixo de uma arve, depois de assentar uns broco, enquanto houve os jogos do Framengo. Quem se mete numa discursão defendendo a imperiosidade de falar todes não se importa se isso é uma excessão que só faz sentide para uma pretensa elite cultural cevade nos campi país afora. Para eles, falar todes vai mudar a sociedade. Eles têm fé de que um homofóbico não vai encher um gay de porrada se ele invocar a palavra mágica — LGBTQIAPN+! — e problematizar os seus pronomes.

O problema é que esquecem também de dizer que esse movimento é elitizado porque nada disso é fundamental, é apenas reflexo de uma situação estrutural mais importante. E agora que a esquerda finalmente parece começar a enxergar que perdeu quase totalmente sua ligação com o povo, que a direita tem se apropriado de grande parte dos temas realmente relevantes, talvez haja uma chance de que finalmente entendam isso e busquem caminhos mais sólidos.

Essa é uma discussão que nasceu nas universidades americanas; veio para o Brasil junto com o binarismo que domina a discussão racial hoje em dia, e que obriga os mais radicais a fazerem malabarismos inimagináveis nos Estados Unidos, como a transformação de mulatos e morenos em uma supercategoria de “pretos” e a inclusão de pessoas com experiências, privilégios e dificuldades totalmente diversas num só balaio para justificar a adoção de táticas que só fazem sentido dentro do one-drop rule.

Trata-se de uma elite intelectual — e por elite intelectual eu me refiro, abrindo mão de meu próprio conceito de “elite”, ao pessoal acadêmico que só existe em função da universidade, que retira dela o seu sustento e seu próprio significado e se especializa em nichos cada vez mais estreitos do conhecimento que se retroalimentam num movimento de falso moto-perpétuo e se tornam cada vez mais distantes da sociedade em volta.

É esse pessoal, que mexe essencialmente com a palavra, que lhe dá uma importância muito maior do que a real. E o resultado é que, distanciada das pautas estruturais da sociedade, essa esquerda não se vê capaz de oferecer uma alternativa que consiga se impor como confiável, e se vê vítima de sua própria incapacidade de acreditar nos princípios que sempre a nortearam.

Enquanto isso a direita se apropria da mensagem de mudança. Enquanto essa esquerda canta loas à cultura da favela, a direita diz o óbvio: favela é uma droga, o que a gente tem que fazer é tirar as pessoas dela. Enquanto uma elite branca — e esse foi o dado mais curioso do último Censo — embarca nas religiões de matriz africana em busca da remissão de pecados de seus antepassados, o negro pobre deixa seu dinheiro nas caixas de dízimo das igrejas protestantes, que variam entre a direita, a extrema direita e a picaretagem.

A direita radicaliza com AR-15 e um discurso de conservadorismo de costumes e rebelião social contra inimigos imaginários, cada vez mais racista, e principalmente cada vez mais fascista. A esquerda radicaliza falando todes. Sei não, mas acho que não vamos ganhar essa guerra.

Claudio Abramo

Conversando com duas amigas jornalistas dia desses, ambas chegando aos 40, uma formada na Federal e outra em uma particular, pergunto o que achavam de “A Regra do Jogo”, de Cláudio Abramo,

Elas nunca tinham sequer ouvido falar. Nem do livro, nem do autor.

Foi um choque. Até então, me parecia inadmissível que um jornalista não conhecesse esse livro, ou “Minha Razão de Viver”, do Samuel Wainer. Agora tenho a impressão de que o único jornalista brasileiro que conseguiu escapar da sina do papel para embrulhar peixe no dia seguinte é o Assis Chateaubriand, porque seu livro foi um fenômeno de vendas e sua vida extrapolava em muito o jornalismo.

Agora me pergunto como é que “A Regra do Jogo”, publicado em 1988, saiu do currículo de leituras das faculdades de jornalismo — se é que ele já esteve em alguma, dúvida que nunca tive mas que agora me assola. E a única resposta que posso dar é a hipótese de que o mundo universitário afundou em uma mediocridade tão avassaladora e tão à direita que um livro como esse é considerado na melhor das hipóteses perigoso, ou meramente desnecessário, o que é mais provável.

“A Regra do Jogo” é um dos livros mais importantes sobre jornalismo lançado no Brasil — junto com o “Manual do Peninha”. Traz um longo depoimento autobiográfico de Cláudio Abramo em sua primeira parte, centrado especialmente nas grandes reformas editoriais que fez n’O Estado de S. Paulo e na Folha de S. Paulo, selecionado a partir de algumas entrevistas; na segunda parte, suas visões sobre o jornalismo. Tudo isso entremeado por uma seleção de artigos escritos ao longo de mais de 30 anos.

Abramo era o sujeito que disse que a ética do jornalismo é a ética do marceneiro — esse é, aliás, o subtítulo do livro. Não existe uma ética específica para um jornalista. Ele não tem nada de especial, nada de diferente em relação a outros cidadãos; como um marceneiro, não pode mentir, não pode roubar. O resto é besteira, é conversa para boi dormir. Abramo resume em uma linha o que as universidades estendem por uma matéria que dura um semestre inteiro. O curso de Direito também tem uma disciplina chamada Ética, mas acho que tal matéria, em tal curso, deve ser um chiste, um respiro humorístico, uma brincadeira que fazem com os alunos que precisam estudar para a prova de Teoria do Processo.

Claudio Abramo foi uma lenda da era de ouro do jornalismo brasileiro. Era daqueles últimos humanistas que o século XX e o refinamento do sistema de formação de mão de obra enterrou em universidades e repartições públicas: um trotskista com quase nenhuma educação formal, mas dono de uma cultura fenomenal e extremamente abrangente porque criado em um ambiente favorável a isso.

Quando “A Regra do Jogo” foi publicado, ainda havia o tal Segundo Mundo, e sua existência balizava o pensamento ocidental.

Um ano depois, no entanto, o bloco socialista começou a ruir, e a vitória final do capitalismo e o fim da história foram proclamados. O pensamento marxista, até mesmo a crítica dos processos de formação de riqueza começaram a sair de moda. A esquerda, de modo geral, incorporou a derrota, passou a trabalhar dentro do escopo neoliberal e aderiu ao identitarismo como disfarce inadequado para a sua capitulação. Abandonou os temas estruturais e se perde em loops infinitos sobre a ressignificação de palavras, sobre identitarismos, masturbação sub-intelectual cada vez mais rasa e mais delirante, bobagens que abriram uma autobahn para a direita, hoje mais capaz de compreender a realidade e estabelecer diálogos com o povo.

Ao mesmo tempo, o academicismo cada vez mais hermético, pequeno e autorreferente se consolidava nas universidades, reforçando progressivamente a noção de universidade como formadora de mão de obra cada vez menos especializada e geradora de um excesso de conhecimento inútil ou desnecessário — a Universidade Federal de Sergipe tem um curso chamado “Ciências da Religião”, e sobre isso eu me recuso a falar. Mais recentemente, a ascensão da extrema-direita nas universidades de todo o país, inclusive nos departamentos de ciências humanas, ocupando o espaço que essa “nova esquerda” abriu, consolidou um pouco mais esse processo, ameaçando a universidade no que ela tem de mais necessário para a sociedade.

Num ambiente desses, um livro como “A Regra do Jogo” é obra a ser evitada.

***

Como disse há algum tempo Jeff Jarvis, do BuzzMachine, um dos pioneiros da blogoseira, “Informação confiável, de qualidade, é cada vez mais o reduto dos poucos privilegiados que podem pagar por isso, enquanto a desinformação sempre será farta e gratuita”.

O que escapa a isso é caça-cliques. Um passeio pelos portais de notícias é quase um desfile de idiotices, de notícias irrelevantes encaixadas por assessorias que aproveitam a busca desesperada por visualizações para vender seus interesses.

É dentro desse contexto que as universidades têm criado um paradoxo curioso, e assustador. Se tornaram, ao menos em parte, validadoras de ignorância, especialmente nas áreas de humanas.

Há uma cada vez maior turba de meninos que saem das universidades sabendo o básico sobre o nicho de conhecimento em que resolveram seguir carreira Publicidade, jornalismo, engenharia de alguma coisa menor. O fato de terem um diploma, de terem avançado no ensino formal e ao menos em tese dominarem uma área de conhecimento que o resto do mundo não domina, acaba validando a sua ignorância sobre quase todo o resto.

Exagero, claro, mas é como se as universidades, cada vez mais, formassem autistes savants.

Se alguém se pergunta como é que as tias do zap nasceram, como o bolsonarismo se espalha pelas redes, como o terraplanismo se tornou um fenômeno a ser notado, talvez esteja aí ao menos parte da sua resposta.

Um dia, já não lembro quando, o jornalismo sentia que tinha uma missão civilizacional a cumprir, mais ainda do que informar. Mas aqueles axiomas que o definiram, que definiram o orgulho que jornalistas pareciam ter pelo papel que cumpriam no mundo, hoje são — quando muito — desculpas. Hoje sua missão é sobreviver, é garantir que o público pague as contas dos portais. As perspectivas são muito ruins. E ao ver que um pessoal que entrou na universidade no final dos anos 90 já não sabia quem era Claudio Abramo, nem teve a chance de conhecer um livro lançado dez anos antes, eu entendo um pouco mais como se chegou a isso.

A lista do Bia

O Biajoni publicou uma lista dos seus filmes preferidos. Demorou mais de 20 anos para ser feita. Ele fala de algo assim desde 2003, pelo menos.

Devo dois filmes ao Bia: um é Dogville, que não fui ver no cinema porque achava que era teatro filmado, mas que assisti por causa de sua recomendação entusiasmada; o outro é “Adaptação.”, cujo final o Bia explicou para mim e me fez ter outra visão do filme. Nada disso justifica, no entanto, o fato de “Casablanca” não estar na lista dele. Uma lista sem “Casablanca”, qualquer lista, seja de quem for, é como pão sem manteiga. É uma tristeza que o filme, que nos anos 80 viu uma espécie de renascimento (talvez em grande parte graças ao “Sonhos de um Sedutor” de Woody Allen), tenha sido relegado ao quase esquecimento neste século. Como é um século burro e idiotizado, talvez seja compreensível.

Sempre achei que não poderia fazer uma lista baseada nesse critério. Tem filmes que eu me recuso a assistir de novo porque tenho medo que percam o encanto, e no entanto gosto muito mais deles do que dos que revejo. Não é o caso, mas quando assisti a “O Campeão” pela primeira vez, caí em pratos, o que era incomum mesmo naquele tempo, porque meu coração sempre foi mais frio do que cu de foca; revi depois e a cena de Ricky Schroeder chorando o pai morto não me dizia mais nada — curiosamente, me emociono sempre que vejo o reencontro do garoto com Chaplin em The Kid. O Bia cita Birdy, um belíssimo filme de Alan Parker; me apaixonei por ele quando o vi, mas revê-lo não fez bem. Talvez por isso eu não tenha coragem de assistir novamente a alguns filmes que me fascinaram: não ouso, por exemplo, rever “A Paixão de Joana D’Arc” por medo de seu impacto — isso num filme que fará 100 anos em 2028 — se perder. Como ele, há tantos.

Por exemplo, vi Sweet November, um desses filminhos mal avaliados que ninguém viu mas que eu adorei, na TV preto e branco de minha avó. Depois de procurar muito consegui achar o filme, mas nunca assisti novamente: ele é colorido, o que destruiria minha percepção original, e para piorar foi conspurcado por uma refilmagem tenebrosa com Keanu Reeves no início dos anos 2000; seria inevitável fazer, a cada minuto, uma comparação entre os dois, e este certamente não é um filme que se presta a uma análise racional.

O Hitchcock favorito do Bia é o “Psicose”; o meu sempre foi “Janela Indiscreta”, embora o tempo me tenha feito apreciar cada vez mais “Ladrão de Casaca”. De Woody Allen o Bia gosta mais de “Memórias”, e eu sempre fui apaixonado por “Manhattan”. Curiosamente, eu esperava a enxurrada de filmes de Brian de Palma, mas não os tantos filmes de Allen.

É uma surpresa concluir que o Bia não é lá grande fã de comédias; Allen não conta, é um tipo sofisticado demais. O Bia, aquele puto, não tem senso de humor. Como é que pode não haver um filme de Chaplin que ele reveja constantemente? Ou Djéury Líus? Nenhum Python, pelo amor de Deus? Para piorar, ele certamente submete a sua criança interior a trabalhos forçados, uma espécie de David Copperfield da sala escura: nenhum desenho animado na lista.

Também lembro do impacto de assistir a Pulp Fiction e sair do cinema tentando compreender o que tinha acabado de ver. Mas ele gosta dos três filmes da trilogia do dólar de Leone, os únicos westerns na lista. Eu sempre digo que “Sete Homens e um Destino” é melhor que “Os Sete Samurais”, mas “Por Um Punhado de Dólares” não é melhor que Yojimbo — mesmo que praticamente tenha fundado um novo subgênero, o spaghetti, do qual não sou grande fã.

Partindo para outro gênero, definitivamente não sou exatamente um grande fã de Watchmen.

Achei engraçado que o Bia tenha saído com medo do cinema depois de assistir a “O Sexto Sentido”; eu saí encantado, repassando várias vezes o filme na minha cabeça em busca das pistas que o canalha do Shyamalan tinha espalhado pelo filme. Esse é um dos filmes a que assisto de vez em quando: eu vejo pessoas mortas, o tempo todo. Quem diz que “Beleza Americana” era melhor que “O Sexto Sentido” é capaz de qualquer atrocidade.

A presença de “Elvis e Madona” na lista é compreensível, porque somos todos humanos, demasiadamente humanos; mas a verdade é que o livro do Bia é muito melhor que o filme. Quando o li, antes de ver o filme, mandei um email para ele com um bocado de críticas; aí vi o filme e percebi o tanto de besteiras que tinha dito.

Falando em filmes brasileiros, descobri que não costumo rever tantos. Há 10 anos redescobri “A Menina do Lado”, e o vi mais umas duas ou três vezes, fascinado com a sua delicadeza; mas é incomum assistir a eles, mesmo sabendo que alguns me encantariam a cada nova visita, como “O Bandido da Luz Vermelha”. Aliás, uns tantos anos atrás eu e o Bia publicamos uma lista de 25 melhores filmes brasileiros; vi agora horrorizado que ela não tem, por exemplo, “Eles Não Usam Black-Tie”. Quero nem olhar os outros absurdos. Quem esculhambou essa lista estava coberto de razão.

Revoltante é apenas a presença de Fletch; dia desses descobri que criei uma memória falsa, porque achava que era o Alex Castro, fã do personagem como eu, quem gostava desse filme equivocado; era o energúmeno do Bia. Pensei tão mal do Alex à toa, e dessa vez injustamente.

Fora isso, muitos filmes de terror, gênero de que não gosto muito. Um bocado de filmes que não vi, alguns de que nem tinha ouvido falar. Agora quero assistir a alguns deles. E um assombro: o Bia assistiu mais de 22 vezes a “Coração Satânico”. Eu podia jurar que o seu filme mais assistido seria algum de De Palma, de preferência um ruinzinho. Por outro lado, é uma surpresa ver que “O Portal do Paraíso”, filme singular porque sua ambição o habilitava a ser realmente grande, mas que fracassa miseravelmente, não está na lista. Agora entendo: o Bia defendia esse filme só da boca para fora.

Depois de ver a lista, meu primeiro pensamento foi: eu jamais poderia fazer uma lista com esse critério porque só revejo comédias românticas, gênero absolutamente desvalorizado pelo qual sempre tive uma queda. Notting Hill, “Em Algum Lugar do Passado”, Melody, Harry & Sally, essas coisas. Acho que é por isso que, quando eu tinha uma lista de 100 melhores filmes, o Bia reclamava que era uma lista acadêmica, no mínimo racional, e ele preferia uma lista mais pessoal — como essa que ele finalmente fez. Eu achava que ele tinha razão, mas dane-se se você tem razão, e dava o dedo para ele.

Mas depois de ver a lista do Bia fui pensando nos tantos filmes que revejo com frequência ao longo da vida. Faroestes como “Rastros de Ódio”, “Os Brutos Também Amam”, “Sete Homens e um Destino” e “Era Uma Vez no Oeste”. Noirs como “Relíquia Macabra” e The Naked Kiss. Qualquer coisa com Humphrey Bogart, Marlon Brando, Chaplin e James Dean. Uns tantos italianos como “A Terra Treme” e “Ladrões de Bicicleta” e “Milagre em Milão” e “Cinema Paradiso”. L’Argent de Poche. O bom cinemão hollywoodiano de “…E o Vento Levou”, “Os Dez Mandamentos” e “Ben-Hur”.

Agora, graças à lista do Bia, e usando esse critério, percebo que a minha era, sim, muito, muito pessoal. Não interessa se são óbvios. É desses filmes que eu gosto de verdade — desses e de Notting Hill. Agora estou em paz comigo mesmo.

Oscars 2025

Preciso confessar minha má vontade em assistir a Wicked: Part I. Preciso confessar também que, quando isso acontece, o que me move é a esperança de que o filme me surpreenda e mostre que eu estava errado. Wicked não faz nada disso; é só o filho bastardo do Leão Covarde e Hermione Granger, coleção tediosa de clichês de um estilo de cinema americano que se esgotou na década passada, da trilha sonora ao desbarato de CGI, da fotografia de manual à exaustão de um mundo de fantasia obediente ordenhado sem cessar desde o início do século. É a Universal entrando de sola na prática da Disney de raspar o tacho de produções antigas, e o resultado é um filme quase impossível de assistir até o final. Para piorar, já anuncia de cara que vem outro por aí. Perderam completamente a vergonha. Uma colonoscopia é um programa mais agradável.

Dune: Part 2 é a conversão final de Hollywood ao sistema de sequelas (sic) que se tornou a norma na indústria. O primeiro era Star Wars escrito da maneira certa; este é só uma continuação. Mas que ninguém espere “O Poderoso Chefão II”, que isso ele não é. É por essas e outras que a Academia devia perder a vergonha e admitir séries em sua lista de premiações. O resultado seria melhor — talvez, talvez — e faria mais para tentar salvar o cinema do que a briga por estreias em salas de exibição.

Apesar de ser estranho um filme sobre a Igreja Católica sem menininhos com a boca cheia — de hóstias, meu filho, de hóstias —, Conclave é uma fita bem conduzida, correta. Também é conservadora como a Santa Madre, mesmo quando aposta em uma situação delirante como um papa transgênero do terceiro mundo, e se destaca, mesmo, unicamente pela atuação soberba e contida de Ralph Fiennes e por um mistério ainda mais indecifrável que a Santíssima Trindade: a indicação de Isabella Rosselini ao prêmio de melhor coadjuvante. É melhor que aquele outro filme sobre papas dirigido pelo Fernando Meirelles — pelo menos aqui o cinegrafista não sofre do mal de Parkinson —, mas no fundo é medíocre e conformista. A ele resta rezar dez Ave Marias e cinco Pais Nossos e ir com Deus.

Anora é “Uma Linda Mulher” misturada com Tangerine, do próprio Sean Baker. Não é ruim de verdade, tampouco é bom, e em alguns momentos lembra “Triângulo da Tristeza”, com o mesmo discurso elitizado, simplório e míope sobre a luta de classes. Se pretende mais profundo do que aparenta à primeira vista; como nem sempre as aparências enganam, o filme é raso, mesmo. Aparentemente é o favorito para ganhar o Oscar, compreensível quando se lembra que “CODA” ganhou há alguns anos. Ao menos tem uma grande qualidade, e isso é inegável: tem peitinhos, bons peitinhos. Peitinhos andavam em falta nas cerimônias do Oscar nos últimos anos. Já é alguma coisa.

A Complete Unknown é uma espécie de Bohemian Rhapsody sobre um artista mais importante e realmente revolucionário. No fundo é óbvio, previsível, como virtualmente toda cinebiografia. Mas tem o clima certo, Chalamet personifica um bom Dylan, o diretor faz as escolhas certas dos pontos realmente significativos na primeira parte da vida de Dylan e conta direito a sua história, embora sem nada de realmente brilhante. Para fãs do bardo como o autor destas maltraçadas, é muito interessante; como cinema, não tem absolutamente nada demais.

Todo mundo já viu Ainda Estou Aqui, então todo mundo tem sua opinião formada. É bom cinema, um concorrente digno com grandes qualidades, da direção de arte esmerada à fotografia elegante. É também uma cinebiografia que obedece fielmente aos princípios básicos do gênero, e no fim das contas é carregado pela interpretação estarrecedora de Fernanda Torres, de longe a melhor entre as indicadas; além disso, tem mais significado para brasileiros que para espectadores alheios à nossa realidade e a nossa história. O Brasil já concorreu com filmes melhores — “Central do Brasil” e, principalmente, “Cidade de Deus” — e piores — “O Quatrilho”. Não tem (ou não deveria ter) a mínima chance, claro, e se ganhar o Oscar de melhor estrangeiro vai ser apenas por causa da campanha gigantesca feita pela distribuidora.

Nickel Boys é um filme sobre a experiência negra em uma América racista, segregada e violenta. É o de sempre: a tese e a denúncia validadas pela experiência individual. Mas não é seu panfletarismo o problema aqui: agora essa história é contada por câmeras subjetivas que, se se elevam acima de experiências similares anteriores, ao mesmo tempo fazem com que suas quase duas horas e meia pareçam durar muito mais tempo. No fim das contas, é mais ou menos o mesmo filme a que assistimos de vez em quando, e não fosse a sua ambição formal, estaria mais baixo nesta lista.

Misture “O Retrato de Dorian Gray” e “A Coisa” e “A Mosca” e “Carrie, a Estranha”, chame a Hammer para produzir e você terá The Substance. É um bom filme, em que pese toda a sua previsibilidade, dirigido com estilo e visão por Coralie Fargeat. E talvez o melhor dele seja a falta de vergonha e pudor em assumir o final mais absolutamente escatológico e alucinado e demente que já se viu em um concorrente ao Oscar de melhor filme. Quer dizer, o final e o fato de também ter peitinhos, embora os de Demi Moore, que em primeiro lugar oferece uma grande atuação, já tenham visto dias melhores.

The Brutalist bem poderia se chamar “O Brutalizado”, e não deixa de ser mais um daqueles exercícios de masoquismo judeu como “A Escolha de Sofia”, “A Imigrante” ou o belo “O Filho de Saul”, que buscam convencer o mundo de que o sofrimento ainda é propriedade exclusiva do povo hebraico. É mais longo que o Antigo Testamento e igualmente fantasioso, porque quem anda tomando no cu hoje em dia não são os judeus, são os palestinos. E diante disso, é impressionante que o resultado seja o filme magnífico que é. The Brutalist conta sua história de maneira excepcional, com uma fotografia excelente, direção soberba e grandes interpretações, especialmente de Adrien Brody. Um dos dois melhores concorrentes ao Oscar — e se alguém disser que é o melhor, eu não vou discutir.

O pachequismo tupinambá (e o panchismo mexicano, para sermos justos) escolheu Emilia Pérez como seu arqui-inimigo e se empenhou naquilo que os gringos chamam de hatchet job, algo quase inevitável em plagas onde uns oram para pneus e outros fazem de “Ainda Estou Aqui” o encarregado do resgate impossível de uma nação estupidificada e dividida. Acontece que “Emilia Pérez”, que não tem nada com isso, é de muito longe um dos dois melhores entre os concorrentes ao Oscar, e só ganha de “O Brutalista” por sua inventividade e sua contemporaneidade. É duro, é lírico, com reviravoltas surpreendentes e letras sublimes em vários momentos. Um belíssimo filme sobre o amor, sobre a natureza humana, sobre a inexorabilidade do destino. E no mínimo serve para nos lembrar que, como dizia um ensaio clássico de Gore Vidal, “sexo é política”.

Cenas dos Próximos Capítulos

Uns meses atrás falei que nunca gostei de novelas e o Leo Bernardes disse que eu era noveleiro enrustido.

Não é verdade. No início desta ainda curta passagem por este vale de lágrimas, eu odiava novelas, porque impediam que eu visse seriados e desenhos na TV Itapoan. Mais tarde, aprendi a tolerá-las, e cheguei a assistir com alguma regularidade a algumas. Hoje novelas antigas me interessam, por um tipo especial de nostalgia e curiosidade. Mas isso as pessoas já deviam saber, já escrevi sobre elas neste blog.

O que ninguém por esta internet afora sabe é que já ganhei a vida escrevendo resumos de capítulos de novelas para uma rádio do interior de Sergipe.

Sabe como é. Eu era jovem. Os tempos eram difíceis. Eu precisava de dinheiro. Às favas com os escrúpulos de consciência.

Ainda tenho alguns desses textos, que se não me engano sobreviveram em um disquete à primeira perda de um HD. São seis, o que me faz acreditar que eu escrevia todos os programas da semana seguinte de uma vez.

No fundo, era uma espécie de picaretagem — falo envergonhado em “picaretagem” como se rádio fosse outra coisa. Funcionava assim: as revistas semanais de fofocas, como a Contigo! e umas outras, costumavam publicar os resumos dos capítulos das novelas da semana seguinte; antigamente as pessoas eram mais sensatas e não tinham tanta raiva de spoilers. Eu recebia as revistas, cozinhava seus resumos, acrescenava o que fosse preciso e mandava por fax para a rádio. Depois, com o meu primeiro computador, passei a fazer isso de casa, indo para o escritório da rádio para enviá-los. Acho que foi por isso que esses textos — não chegavam a ser exatamente roteiros — sobreviveram.

Como os resumos das revistas eram sempre muito curtos, telegráficos até, eu precisava aumentar o texto para garantir tempo de programação. Fazia isso falando besteira, enchendo linguiça e tentando utilizar uma linguagem mais leve, mais coloquial. O nome do programa era o mais óbvio possível, e perfeito: “Cenas do Próximo Capítulo”.

Assim, se a revista dizia algo como “Ilka encontra Ataliba com três mulheres no Quem Me Quer, chora e termina o namoro”, o trecho ganhava o seguinte título: “No capítulo de hoje de ‘Fera Ferida’, Ilka pega Ataliba no cabaré!” O texto seguia a cronologia de cenas no resumo da revista. E o trecho específico sobre essa cena virava isso:

E não é que a Ilka Tibiriçá, que anda mais enrolada com o Ataliba Timbó do que pé de maracujá em cerca de arame farpado, dá um fora no ex-jogador, ex-namorado e ex-homem? Pois é, gente. Acontece que hoje a moça, que pode ser agoniada mas é uma senhorita decente, pega Ataliba com três moças no Quem Me Quer. Três, é mole? Justo Ataliba, que não conseguia dar conta de uma só. E aí ela cai no choro. Com razão, né? Mas cá pra nós, chorar por um cabra safado desses? Tenha santa paciência! Antes dela dar aquelas comidinhas pro Ataliba, ele não era capaz de pegar nem meia mulher, quanto mais três. Agora taí, esbanjando. Tome prumo de homem, Ataliba… Mas olha, tem uma moça que também precisa tomar tenência na vida. Linda, mais uma vez, vai atrás de Flamel. Ô, mulher, se respeite… Parece mulher de malandro, gente!

Acho que cada novela era abordada em um intervalo comercial diferente da programação normal, ao longo do dia. Não sei. Na verdade, eu nunca ouvi os programas que escrevia, porque eram feitos ao vivo. Não imagino que ficassem bons, porque não eram bons locutores os que andavam por ali.

Mais importante, talvez: faltava assistir às novelas. Eu não vi mais que uns poucos capítulos esparsos de cada uma delas: à noite eu estava na universidade, bebendo em algum bar do Rosa Elze, conjunto que fica em frente e era então ainda mais barra-pesada do que é hoje, ou tentando sem sucesso arrastar alguma incauta para uma noite de prazer indizível nas cabines da biblioteca, ou assim eu tentava convencê-las, coitadas — coitadas, não; moças de sorte e juízo, porque nunca aceitavam. As aulas de Processo Civil não eram exatamente o que eu mais frequentava naquele antro do saber. E assim, o que eu sabia das novelas que descrevia para o público sertanejo era apenas o que lia nos resumos e em eventuais matérias daquelas mesmas revistas.

Não tinha como dar certo.

Fazia décadas que eu não lia esses textos. Olhando agora, percebo como eram ruins. Faltava a este garoto a tarimba do rádio, o ritmo da palavra falada, a interação com os locutores, a compreensão de que o texto podia ser um pouco mais bombástico, mais conversado, mais empolgante — “Pega fogo, cabaré! Hoje Ilka pega Ataliba com três quengas no Bem Me Quer!”. Faltava também o domínio da linguagem sertaneja, que deveria estar aí, nesses textos. Faltava tanta coisa. Fosse mais velho e levasse as coisas mais a sério, em vez de apenas escrever eu insistiria em produzir e dirigir o programa — pensando nele como um todo, não apenas como texto.

Dane-se. Mais um para a lista de coisas que eu poderia e deveria ter feito melhor ao longo da vida. Pegue a senha 2746 e sente ali no fim na fila, por favor.

Mas tinha um programa ainda pior, porque esse não era o único que eu escrevia. “Vida de Artista” era um programa de fofocas que ia ao ar aos sábados. Essencialmente as matérias dessas revistas reescritas e condensadas. Desse só sobrou um, e era muito ruim. O texto do programa que sobrou tem menos humor, mais maldade e é mais duro: o programa me parece, lido superficialmente agora, um grande equívoco. Certamente não é nada que se compare a tantos programas bem sucedidos que hoje existem por aí. Sônia Abrão pode ficar tranquila: eu jamais poderia tirar o seu emprego.

Eu realmente não consigo lembrar se esses dois programas faziam sucesso ou não. Acho que não, porque tenho a sensação de que não duraram muito, mas não lembro a razão. Por mais inacreditável que pareça, tampouco sei como meu período como redator de rádio chegou ao fim: não sei se fui dispensado ou se fui fazer outra coisa que desse um pouquinho mais de dinheiro; foi mais ou menos nessa época que fiz minha primeira campanha eleitoral.

Já se passaram mais de 30 anos. Não existe mais Contigo!, não existe mais fax, e telenovelas são uma sombra do que foram um dia na vida cultural destes tristes trópicos. Sobrevivi a tudo isso. Posso reclamar, não.

A loura, de volta

Dorothy Parker voltou a ser publicada no Brasil.

Era absurdo, mas até poucos meses atrás não havia nenhum livro de Dorothy Parker em catálogo por estas bandas. A Companha das Letras relançou “Big Loira e Outras Histórias de Nova York”. Se alguém tem dúvidas de que o livro é excelente, basta olhar uma das pouquíssimas resenhas publicadas por leitores no site da Amazon:

Os contos me deixaram meio deprimida. Ficaram datados: falam de mulheres e homens que bebem, que traem e que não têm muitos objetivos na vida. São deprimentes e deprimem o leitor/ leitora. Talvez na época em que foram escritos refletissem uma realidade que precisasse ser conhecida e discutida. Me decepcionei, infelizmente.

Se há recomendação melhor para que se compre e se leia o livro com urgência, eu não conheço. Só posso dizer que fico feliz por saber que pessoas que bebem, traem e não têm muitos objetivos na vida são coisa do passado, e triste por ver como o nível intelectual da Tupilândia decaiu tão absurda em umas poucas décadas.

Parker é uma das grandes escritoras americanas do século XX, ponto. Não conheço sua obra poética. Conheço a contista, que vai muito além da crônica dos roaring twenties. The Portable Dorothy Parker, uma coletânea alentada de seus melhores contos, é um daqueles livros essenciais na literatura americana. Seus contos têm uma causticidade irônica que disfarça uma capacidade extrema de ver o tragicômico nas pequenezas da vida. Há uma ironia e uma melancolia extrema em seus contos, mas há também uma comiseração e empatia em relação aos seus personagens, talvez condescendente, mas sempre humana.

Por isso era um absurdo que não houvesse nada dela no Brasil. Já tinha havido. No final dos anos 80, foi lançado aqui “Big Loira e Outras Histórias de Nova York”. Era uma coletânea de alguns contos da moça, traduzida pelo Ruy Castro.

Eram tempos instigantes, aqueles. A Companhia das Letras era então uma editora jovem e ousada. E em torno dela circulava uma geração, então na casa dos seus 40 anos, que tinha sido formada nos anos 50 e 60, quando a indústria cultural americana impunha um novo padrão ao mundo. Gente como o próprio Ruy Castro, Sérgio Augusto, alguns outros. Graças a esse ambiente, a literatura americana do século XX, provavelmente a mais rica de seu tempo, foi publicada extensivamente pela editora: como Parker, Cheever, Bellow, Bashevis Singer, Malamud, Doctorow.

Parker é uma das melhores dessa safra, competindo apenas com Cheever.

A nova edição troca “loira” por “loura”, não sei se por imposição da nova ortografia ou por simples evolução do vernáculo. A nova capa é adequada, embora a original fosse mais sofisticada; a nova, sei lá por quê, me lembra os livros da Codecri. Tampouco sei se a tradução é a mesma. O que sei é que, seja como for, vale muito a pena.

Sobre livros

Parei de ler o conto de Tchekov porque naturalmente lembrei de John Cheever, e consequentemente lembrei de Dorothy Parker — mas agora a lógica é só minha porque descobri um e outra na mesma época. Coloquei o livro de lado, o cinzeiro na barriga e fiquei olhando para as vigas e ripas do telhado que tive que fazer e refazer porque primeiro reutilizei as telhas antigas da casa velha e elas eram ruins. Fidel está deitado ao pé da cama, Ceci sempre agoniada entra e sai do quarto, esperando acordar meu sobrinho que dorme no quarto ao lado.

No que penso é simples, penso nisso de vez em quando.

Tenho a impressão de que as pessoas estão lendo de maneira diferente. Talvez seja a minha ancianidade, a minha impaciência, ou a minha intolerância que não para de crescer, e então não vejo mais o que está à minha volta; mas leitores como os que eu via, que se aproximavam de livros como quem encontra fortuitamente um desconhecido na rua, esses eu não vejo mesmo. Vejo gente que descobriu um autor qualquer, normalmente menor, na universidade, e fala dele como velhinhos falam de Joyce ou Mann, ou um grupo de autores, quase sempre contemporâneos ou defuntos ainda frescos, porque eles são mais palatáveis a uma cultura imediatista, excessivamente abundante, uma corrida de ratos em que já não se sabe qual o prêmio, mas se sabe que não dá para deixar de correr.

Nas internets não vejo muitas conversas sobre literatura que não façam parte de guetos universitários, onde meninos são guiados pelos caminhos de escritores que interessam aos seus professores e seus artigos publicados em revistas que ninguém lê; parece haver mesmo uma competição cujas regras só eles conhecem, uma busca por autores que eles conheceram antes que o resto daquele seu pequeno mundo — “antes que fosse modinha”, como dizem em seu dialeto —, que possam lhe dar uma certa primazia no conhecimento e que reflete uma certa obsessão permanente pelo novo que vai lhe fazer diferente e talvez melhor, como se um livro fosse um vestido de costureiro chique.

Vejo mais frequentemente conversas sobre livros, mediadas pelo consumo e pelo mercado, sobre edições bonitas com todos aqueles truques supérfluos que as editoras usam para tornar uma sequência de folhas de papel sujas de tinta em um objeto mais desejável pelo seu valor como objeto do que pelas palavras e frases que formam, como letras grandes e papel com gramatura maior e capas duras, sempre mais respeitáveis que brochuras.

Aí eu lembro que literatura também é moda. Nos anos 80, uma geração americanófila exercia uma influência enorme; isso mudou, se tornou mais diverso, paradoxalmente mais rico e menor; mas ainda assim é moda. A nova moda agora são autoras negras, parece. Amanhã talvez sejam índios, eu não sei.

Lembro também que houve um tempo em que havia uma certa unidade em torno de livros, que a internet matou. Graças a um ecossistema que incluía jornais e revistas, essas coisas que ninguém mais compra, alguns livros extrapolavam os limites do mercado, vendiam tiragens bem maiores que as três mil por edição de praxe. E esses livros ajudavam a criar elos em comum entre as pessoas. De memória, é fácil lembrar de tantos: “Vastas Emoções, Pensamentos Imperfeitos”, “Estorvo” numa resenha magnífica de Roberto da Matta na Veja (ou será que minha memória me trai mais uma vez?), “Perestroika”, “Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar”, “Personas Sexuais” de uma Camille Paglia que o identitarismo enxotou da moda. Tudo isso acabou. Alguns livros, por suas qualidades, conseguem superar seus guetos, mas ao mesmo tempo porque se adequam a uma percepção cada vez mais “nidificada” do mundo. “Torto Arado” talvez seja o melhor exemplo: se destaca ainda mais por outro elemento que não suas qualidades óbvias, mas porque está perfeitamente inserido naquilo que a nova elite intelectual quer ouvir e permite dizer.

Por isso penso no meu sobrinho que Ceci está esperando acordar, que parece saber tantas coisas, muito mais do que outros meninos de sua idade, mas que no entanto não parece ler tanto; e então fico com a impressão de que esse conhecimento vem pelo YouTube, ou de alguma outra rede social, e a maneira como se relacionam com esse conhecimento é diferente, e a própria natureza desse conhecimento é diferente. É um mundo diferente o que se forma à minha frente. Então talvez seja por isso que não vejo as pessoas falando de Cheever, nem ostentando o sorriso amargo que um conto de Dorothy Parker deixa na cara das pessoas.

Ontem matei uma aranha marrom antes que a curiosidade de Ceci a fizesse ser picada; e lembrei que se contasse isso nas internets algum desses moços ou moças que não conseguem mais viver sem tentar impingir aos outros suas boas intenções telúricas iria dizer que não se deve matar aranhas, porque elas fazem parte do ecossistema e são criaturas de Deus iguais em direitos a mim e superiores ao mendigo sem as duas pernas, porque comem isso e aquilo, sei lá que diabo elas comem.

Eu mato, mato, mato com gosto. Mais gosto, só em matar lacraia, porque eu já fui picado por uma e o seu veneno, em vez de me transformar no Homem-Lacraia porque eu não fui criado por Stan Lee, fez de mim o Psicopata do Piolho de Cobra, um vingativo raivoso que começa a tremer de ódio e a espumar pela boca quando vê uma lacraia.

Mas a conversa era sobre livros, acho. Ou não, não sei mais. Retomei o conto de Tchekov, que é o melhor que eu podia fazer.