Paulo Francis: fim de temporada

Andei passando os olhos pelo acervo do Pasquim na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, muito superficialmente. Li algumas matérias clássicas, como a %#&! entrevista com a Leila Diniz e o artigo “Um Homem Chamado Porcaria” com que Paulo Francis agraciou seu futuro patrão, Roberto Marinho, ofendendo-o com o que o seu vocabulário parecia ter de pior: “negro!”

E aí fiquei pensando no Francis, morto há quase três décadas mas que ainda hoje inspira meliantes medíocres de direita, embora em menor grau do que há 20 anos, por exemplo. O pessoal que se reunia em torno dos Wunderblogs — há quanto tempo você não lê esse nome, hein? — e quetais tinha veneração por ele, e mesmo hoje há quem o respeite mais do que devia.

Já escrevi sobre ele aqui. O post é de quase 20 anos atrás. E depois de tanto tempo, é engraçado ver o quanto o panorama mudou. Quase tudo o que servia de referência então desapareceu ou se transformou quase além do reconhecível. Ainda assim, mudei de opinião em alguns detalhes, mas o básico continua válido.

O que me importa, no entanto, são justamente os detalhes.

Francis se sustentava em uma época em que jornalistas podiam falar quase todas as asneiras que quisessem sem serem punidos pelo público. Sem internet, era fácil escrever o que se queria porque dificilmente alguém checaria a informação. No que ele escrevia, sempre houve uma série de exemplos de erros crassos, mesmo de vigarice — quando, por exemplo, ele apresenta como sua uma conclusão de Edmund Wilson sobre o materialismo dialético.

Eu certamente superestimava sua “solidez cultural”. Há uma entrevista do Francis ao Roda Viva disponível no YouTube. São impressionantes as posições rasteiras dele a respeito de tantas coisas. Para ele, naquele momento, todos os problemas do Brasil se restringiam à presença do Estado na economia — mais ou menos como o gado bolsominion, aquele que pede ajuda a ETs e reza para pneus de caminhão, fala da corrupção como se fosse algo palpável, isolado e possível de ser erradicado por um ladrão de joias medíocre e vulgar. Francis citava números falsos a rodo, porque como todo bom embusteiro sabia que sempre podia contar com a ignorância do resto da humanidade. E o elitismo descarado e afetado, principalmente em relação a tudo o que cheirasse a popular, ainda era aceito nos anos 90.

Isso lembra que Paulo Francis se tornou um ícone pelo que escrevia, com talento, vivacidade, brilho. Era muito fácil engolir como verdade e fato as bobagens que ele contava errado ou plagiava, porque ele sabia como contar. Isso não lhe tira o mérito de possuir uma cultura variada, abrangente, algo cada vez mais raro nesses tempos em que as pessoas são formadas nos bancos estreitos das universidades e restringem e sufocam cedo demais suas curiosidades; mas ridiculariza aqueles que vêm nele algo próximo a um pensador.

Paulo Francis permaneceu tanto tempo porque fez parte de um momento importante para a geração que chegou ao terceiro milênio em sua maturidade.

Na segunda metade dos anos 80 havia uma geração de jornalistas culturais que fez história e ditava o que se devia gostar ou não, num tempo em que a distinção entre intelectuais e jornalistas não era tão grande como hoje. Era uma turma boa: Sérgio Augusto, Ruy Castro, Paulo Francis, uns tantos outros — o Ruy Castro, por exemplo, chegaria à Academia Brasileira de Letras, numa eleição certamente mais merecida que a de sicofantas como Merval Pereira.

Era gente formada nos anos 50, sob a influência do processo de americanização do país a partir das indústrias cinematográficas e musicais, com uma pequena ajuda do USAID. Ao chegar à maturidade, se tornou uma geração que gosto de definir como novaiorquina putativa. No pós-guerra, os Estados Unidos haviam se tornado o grande motor da cultura mundial, em um modelo novo e dinâmico que a unia ao mercado de massas. E essa geração se formou sob essa influência. Ruy Castro até hoje sonha com musicais da Browadway; Francis, especialmente, depois que migrou para a metrópole se especializou em contar para os botocudos cá do hemisfério meridional o que acontecia na Big Apple, do low ao highbrow.

O parágrafo acima não tem nenhuma intenção de ser derrogatório. Em boa parte, essa geração desempenhou um papel fundamental, atuando como tradutora dessa intelectualidade específica, arejando o ambiente e trazendo os seus padrões para o Brasil, enriquecendo o nosso mundo. Por exemplo, Ruy Castro traduziu e selecionou contos de Dorothy Parker num livro que, se não me engano, tinha prefácio do Sérgio Augusto — que por sua vez selecionou os contos de “O Mundo das Maçãs”, de John Cheever. Conhecer o cinema e a literaturas americanos permitiu a Sérgio Augusto escrever o indispensável “Este Mundo é um Pandeiro”.

Mas todo esse pessoal envelheceu — e virtualmente todo envelhecimento traz consigo algum nível de inadequação ao novo mundo. Mais importante, o panorama cultural mudou muito — por um lado ficou mais diverso, o que é bom, e por outro mais medíocre, o que é ruim. A minha desconfiança é que Paulo Francis enveredaria pelo pior desses caminhos. Se estivesse vivo, sou capaz de apostar que ele seria pior que gente como Augusto Nunes e outros sabujos do reacionarismo, porque sempre foi maior que eles.

Reconheço, claro, que meu pessimismo não é infalível e que existem outras possibilidades. Além de uma cultura geral que ainda hoje se sustenta, de um início de vida como diretor e crítico de teatro, e de um mínimo de formação política, Francis se dava a liberdade de pensar. É uma esperança à qual aqueles que gostavam dele podem tentar se agarrar, por tênue que seja. Além disso, ao seu conservadorismo ele sempre foi capaz de adicionar uma camada agradável de verniz cultural, talento verdadeiro e mordacidade; talvez, então, conseguisse se livrar da sina triste de chegar a um fim melancólico de vida espalhando fake news no WhatsApp e apresentando algum programa na JovemPan.

Mas não leve muita fé nisso. O mundo seria bem mais cruel com ele hoje.

Aliás, provavelmente já está sendo. Olha a tal entrevista ao Roda Viva. Por ser vídeo, é bem possível que essa entrevista venha a se tornar a primeira referência a Francis nos anos que virão. Sempre que alguém for pesquisar sobre o nome, se é que alguém vai fazer isso, vai preferir essa entrevista aos livros que ficaram. O mundo é assim, é cada vez mais raso, mesmo. E é injusto, porque ele era maior do que aquilo.

Let it Be, de novo e finalmente

A Apple Corps. anunciou o relançamento do filme Let it Be — o original, lançado há 54 anos —, agora restaurado, remasterizado, essas “res” todas que viabilizam as arapucas para fãs em que a empresa se especializou nas últimas décadas.

A princípio não entendi direito: lançá-lo depois do excelente Get Back, de 2021, parece um anticlímax, quase um contrassenso.

Assisto de vez em quando a esse filme há mais de 40 anos. No dia 14 de dezembro de 1980, o domingo seguinte ao assassinato de John Lennon, a TV Aratu exibiu Let it Be. Era um dia nublado, abafado, depressivo. Havia visitas lá em casa e as pessoas comentavam tristes sobre o assassinato bárbaro daquele tal John Lennon, que eu nunca tinha visto mais gordo. Lembro de assistir a pedaços do filme e considerá-lo uma das coisas mais chatas que eu já tinha visto, pior que “Concertos Para a Juventude” e corrida de Fórmula 1, perfeito para completar aquele domingo trancado em casa.

Seis anos depois as coisas tinham mudado. Eu era um beatlemaníaco que agarrava com sofreguidão cada chance de ver algo novo sobre os Beatles — naqueles tempos, novidades sobre a banda eram algo suficientemente raro para transformar em um acontecimento cada nova informação, cada nova música desencavada de um disco pirata. Apareceu uma cópia em VHS, mais gasta que as frases decoradas que McCartney diz entre uma e outra canção de seus shows, e claro que eu tinha que ver.

Hoje parece haver uma lavagem cerebral coletiva, propiciada pelas redes sociais, que transforma fãs em lemingues siderados a considerar obras-primas qualquer lixo lançado sob a marca Beatles, das caixas remasterizadas de aniversário, cheias de sobras de estúdio sem nenhum interesse artístico ou musical, a mediocridades lancinantes e vergonhosas como Now and Then. Nas redes sociais, o que não falta é gente sem-noção e sem estética se dispondo a chorar antecipadamente pelo filme que já nasceu defunto. A canção morreu, diz Chico Buarque há muito tempo, e essas são suas carpideiras, chorando por vício e costume, apenas.

Meus cachorros têm mais dignidade.

Talvez por serem outros os tempos, para mim o filme tinha exatamente quatro momentos razoáveis: a versão mais longa de Dig It, a versão rock de Two of Us, a jam onde cantam Shake, Rattle and Roll, e obviamente o show no telhado. O resto era chato, continuava chato como quando eu era ainda criança. Não entender inglês não contribuía muito para gostar do filme, claro, mas a verdade é que os diálogos melhoram muito pouco a situação.

Let it Be era só um filme ruim. Muito melhor assistir a This is Spinal Tap. Ou mesmo Rockshow.

Ao longo dos anos seguintes assisti ao filme inúmeras vezes. Minha opinião nunca mudou. Em algum momento percebi que ele podia ser visto como uma história de redenção pela música: o começo difícil em Twickenham, a melhora dos ânimos no estúdio da Apple em Saville Row, finalmente o congraçamento do show no telhado. Sempre disse que a percepção do filme seria completamente diferente, não tivessem os Beatles se separado oficialmente um mês antes de seu lançamento.

Também disse que o filme é ruim, malfeito, uma tarefa muito acima da experiência e provavelmente do talento do diretor Michael Lindsay-Hogg — e a maior prova disso é que Let it Be, em sua mediocridade, em sua incompetência, é a única obra pela qual Lindsay-Hogg será lembrado. Era ululantemente óbvio ser possível fazer algo melhor com o material existente.

Com Get Back, Peter Jackson provou que era. E fez pior: lançou luz sobre o papel deletério de Lindsay-Hogg na epopeia de erros que foram a ideia e a execução do Let it Be.

É por isso que soa estranho o seu lançamento agora. Let it Be já estava restaurado há muito tempo, e algumas cenas puderam ser vistas já no Anthology. A restauração agora lançada deve ser outra, com melhores recursos, algo similar ao filme de Peter Jackson. De lá para cá a longa e sinuosa estrada se estendeu muito além do que se podia imaginar, e é por isso que, à primeira vista, parece não fazer sentido o seu lançamento agora, quando ele poderia ter sido parte do grande pacote que incluiu o Get Back e a edição de aniversário do Let it Be em 2021: “Tá aqui um grande documentário, e junto vai essa desgraça para vocês verem a bagaceira que fizeram antes”.

Mas é estranho só à primeira vista. A lógica da Apple é a do caça-níquel, do camelô. Por que lançar tudo junto se vale mais a pena lançar cada parte em separado? Além disso, o Get Back pode ter ajudado a amenizar o efeito depressivo que Let it Be sempre exerce nos seus espectadores, mudando a perspectiva com que se olha para o filme original. Agora podemos olhar para a obra de Lindsay-Hogg como um técnico de laboratório olha para um exame de fezes.

Que o cheiro do parágrafo acima, porém, não seja levado tão a sério. A irritação deste post não é com o filme, que é apenas chato e medíocre e merecia ser obliterado da história em favor do Get Back, como o compacto duplo Magical Mystery Tour original foi substituído pelo álbum americano. O incômodo é com a vulgarização progressiva e agora aparentemente incontrolável de uma obra estelar como a dos Beatles, e com a estupidez crescente do público consumidor. Um fã dos Beatles que ainda não tenha visto o Let it Be é, certamente, um fã novo que não achou que valesse realmente a pena o esforço de busca para assistir ao filme. Pra ele, o lançamento pode significar alguma coisa. Infelizmente, só para ele.

Correios e celulares

Fora matar meninos, institucionalizar a grande corrupção, amordaçar todo um país e depois entregá-lo destruído e com a alma um pouco piorada, teve algumas coisas que a ditadura militar fez bem.

O sistema de comunicações que os milicos deixaram era exemplar. Nem parece obra de uma gente que hoje só entende de ajudar ladrões de joias e pintar meios-fios. O caso das telecomunicações é o mais óbvio, porque um sujeito em Canindé do S. Francisco conseguir ligar direto para qualquer lugar do mundo era algo que não existia de maneira universal sequer nos EUA. Mas também dignos de orgulho eram os Correios. Em 1986, uma carta enviada de uma capital para outra normalmente chegava no dia seguinte. Mais tarde, o Sedex fazia com que uma encomenda estivesse com o destinatário antes das dez da manhã do dia seguinte.

A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos era exemplo de eficiência. Era também um instrumento importante de integração nacional, apenas para ficar nos valores caros à milicada que, hoje, abdicou de qualquer senso de moral.

Pensei nisso quando lembrei de um tweet de Lula há algum tempo. Ele falava sobre a necessidade de combater a privatização dos correios. Lembrou que “em mais de 2 mil municípios onde não existem agências bancárias, os Correios são a única instituição a atender moradores e negócios locais. E quem vende ou compra pela internet sabe que pode contar com uma eficiente rede de logística que abrange todo o território nacional.”

Dois mil municípios equivalem a 40% do total brasileiro. O tamanho do estrago que a privatização dos Correios faria nas vidas de milhões de brasileiros não pode ser estimado, embora hoje fosse menor do que há alguns anos: a distribuição de impressos passou a ser mínima, contas chegam por email ou pelos aplicativos de celular. Gigantes do varejo constroem suas próprias redes de logística, e os caminhões do Magazine Luíza chegam a buracos inimagináveis.

Ainda assim, seria um estrago considerável.

Para isso, no entanto, os privatistas contam com a estupidez do brasileiro médio. Dia desses vi um comentário raivoso de um sujeito que tinha comprado algo, escolhido a entrega mais barata (pelos Correios, óbvio) e então ficava reclamando da demora, e que era por isso que os Correios tinham que ser privatizados. Ele não conseguia entender que no mundo sem Correios ele pagaria ainda mais pela mesma demora.

O desmonte começou ainda no governo Sarney. Collor aprofundou o processo, inclusive mudando o nome para permitir uma posterior privatização; mas a coisa alcançou seu ápice durante o governo FHC, que abriu uma porção de miniagências terceirizadas, avançando ainda mais no propósito de Collor e consolidando a decadência do serviço.

Lula interrompeu esse processo, mas fez algo igualmente danoso: utilizou a empresa como moeda de troca política, entregando-o ao PTB de Roberto Jefferson. Foi nos Correios que estourou o escândalo do Mensalão.

Privatizar os Correios é repetir a canalhice com a nação feita durante a privatização das telecomunicações.

Me impressiona ver como as pessoas continuam defendendo a privatização, tolerando os preços irrisórios com que estatais foram vendidas, alegando que hoje a situação é muito melhor, lembrando que demorava-se anos para conseguir uma linha de telefone.

Parte disso é burrice, parte é ignorância, parte é má fé. A burrice está em não ver que essa universalização dos serviços telefônicos se deve não à privatização, mas à evolução tecnológica. A ignorância, em talvez não saber que já no início dos anos 90 — também graças ao barateamento da tecnologia, a modelos mais eficientes de gestão e parcerias com a iniciativa privada — telefones tinham deixado de ser um objetivo inalcançável e chegavam a cada vez mais casas. A má fé está fingir que não vê o que está diante de seus narizes.

Em 1997, só havia uma operadora de celular em Sergipe, a estatal Telergipe. 27 anos depois, Tim, Claro e Oi têm cobertura pífia no interior do estado. A única operadora a abranger de maneira consistente esse território é a Vivo. Não porque foi a única a fazer investimentos, o que provaria a tese de que a mão invisível do mercado faz mais que tirar dinheiro de pobre. Mas porque foi quem acabou ficando com a antiga Telergipe, e herdou a infraestrutura que ela tinha construído com dinheiro público.

Eu ainda continuo desconfiando da mão leve do mercado.

Uma estreia na vida

Em 2009 eu estava numa cidadezinha perto de Londres, St. Albans. Visitava uns primos de minha então mulher. Cidadezinha simpática, aquela: tem umas casinhas em estilo Tudor, uma torre onde um rei francês qualquer ficou preso, umas ruínas romanas, um pub interessante que se diz o mais antigo da Inglaterra, o Ye Olde Fighting Cock, e a catedral onde João Sem Terra assinou a Carta Magna.

Eles tinham um casal de amigos, também brasileiros, que apareceu por lá. Eram os típicos emigrantes brasileiros: vindos do sul ou sudeste, jovens de classe média, tinham ido para Europa fazer serviços que jamais fariam aqui: ela era babá e ele entregador, acho.

Enquanto conversavam, eu olhava para eles e ficava pensando num passado que já era distante, mas não tão distante quanto agora. Foi naquele momento que percebi que talvez devesse ter feito as coisas de maneira diferente.

20 anos antes, finzinho de adolescência, o que eu mais queria era ir para a Europa, o centro do mundo, o lugar dos museus, das bibliotecas, dos escritores, dos cafés, das moças com um je ne sais quoi. Passar um ou dois anos conhecendo o que podia, vivendo a vida cosmopolita de um jovem despreocupado com o futuro.

Só não fui porque, além de frouxo, eu sentia que não podia largar as tantas responsabilidades. Tinha trabalho, faculdade, família. Não podia abrir mão de nada daquilo.

Foi ali em St. Albans, olhando aquele casal, que finalmente entendi que podia ter ido. A água que tinha passado embaixo daqueles 20 anos de ponte tinha me mostrado que não havia nada que eu não pudesse recuperar depois. Que minha família viveria sem mim, que eu poderia retomar a faculdade depois, que sempre haveria trabalho para eu fazer. Mais importante: talvez até tivesse voltado melhor, mais disciplinado, mais adulto, menos arrogante.

Naquele momento me arrependi de não ter feito o que quis ter feito um dia.

No fim das contas aquilo apenas se juntava a uns tantos arrependimentos que eu sempre tive, e a mesma água debaixo da ponte que tinha me mostrado isso tinha me feito não me preocupar com o que deixei de fazer na vida.

Porque sempre achei que a coisa mais idiota que alguém pode dizer é que só se arrepende do que não fez. É gente que não aprendeu nada na vida. Nunca me arrependi dessas coisas imaginárias, só das bobagens tantas e tantas que fiz ao longo da vida. Mas daquela vez fiquei pensando que tinha tomado a decisão errada. Anotei e deixei para lá, que o que não tem remédio, remediado está.

Mas St. Albans é longe demais, no espaço e agora no tempo. Lembrei disso porque, conversando com o Bia dia desses, ele me disse que devia ter feito isso e aquilo. O Bia é mais velho, mas lá no fundo é mais jovem que eu. Não fico penndo nessas coisas. Até porque essa ânsia de cosmopolitismo, que eu já tive, embora talvez de maneira mais difusa, é coisa de jovem. Hoje o que eu realmente gosto é de ficar deitado na rede, lendo no silêncio, sem sinal de celular e olhando os cachorros, beber vinho nas noites mais frias enquanto converso sobre o passado com essa mesma família que eu não pude abandonar por um ou dois anos.

Claro que não sei se se fiz o melhor que podia. Mas sei também de outra coisa: não importa. Talvez isso seja o melhor de envelhecer. É ficar em paz com o seu passado e fizer: eu fiz o que pude. Tá bom assim.

Beijinho, beijinho, tchau, tchau

Li as “Memórias” da Xuxa. Sei lá o que deu em mim. Nunca fui lá muito afeito a biografias e autobiografias, com exceções como as tantas sobre os Beatles, mas ultimamente andei lendo uma série delas. Nenhuma me deixou satisfeito, mas eu sei por quê: mesmo errado, sempre espero de uma autobiografia algo como as memórias de Casanova, ou algo abrangente como o trabalho de investigação feito por biógrafos como Peter Guralnick ou Mark Lewisohn. Em suma, uma autobiografia é para eu ficar sabendo de coisas sobre você que não posso saber de outra forma. Do contrário, seu livro é apenas exibicionismo barato, bazófia em mesa de bar, inútil para qualquer coisa além da satisfação da sua vaidade.

Meu próprio espanto diante desse livro vem do fato de que nunca tive nenhuma ligação emocional com a Xuxa. Mesmo criança detestava programas infantis de auditório, como “Parquinho” e “Recreio” em Salvador. E quando o “Xou da Xuxa” estreou eu já era velho demais para me interessar pelos desenhos que apresentava.

Mas mesmo em 2024, muita gente tem uma ligação emocional ainda forte com o que ela representou em seus passados, e esse é um fenômeno interessante. Além disso, Xuxa foi um dos grandes símbolos sexuais da minha geração, para dizer o mínimo. Sua existência não pode passar despercebida por nenhum brasileiro que tenha assistido à TV nos anos 80 e 90. E confesso: por 15 reais eu compro até livro de mashup entre ewoks zumbis e o amante de Lady Chatterley.

É uma obra muito ruim. É óbvio que ela não quer um relato realmente franco. Ela tem consciência de quem é e sabe o que deve dizer, dentro dessa perspectiva. Talvez por isso o título “Memórias”, naturalmente mais vago. Ela não quer elaborar muito, não quer refletir sobre sua vida e o sentido dela. Não quer contar o que não lhe é útil ou interessante. Ela está simplesmente deixando registrada a imagem que quer deixar para o seu público.

Mas ainda que se admita esse escopo tão limitado, o livro é esparso, insuficiente. Mesmo quando aborda temas dolorosos, como os abusos de que foi vítima na infância, Xuxa é discreta, quase reticente. Nas memórias de Xuxa Meneghel não há a possibilidade da merda no ventilador, do balde chutado, da abertura do peito; mas mesmo coisas que poderiam ser interessantes — o seu cotidiano em Nova York, a rotina de gravações do Xou da Xuxa, as pessoas interessantes que ela encontrou na vida — estão ausentes.

Os capítulos são curtos. As histórias são poucas. A verdade é que qualquer pessoa que corra os arquivos de revistas de fofocas dos últimos 40 anos poderia escrever uma biografia muito mais aprofundada, apenas com o que foi publicado nelas.

O livro traz um texto medíocre, de um tipo comum de jornalismo para iletrados, quase padrão nesse tipo de literatura. Pode ser apenas impressão, e quem sabe ele traduza com fidelidade as inflexões da própria Xuxa; mas eu já vi esse texto milhares de vezes antes, texto de ghost writer que simplifica demais o original.

Diante de tudo isso, o trecho mais interessante do livro talvez seja o momento em que ela fala sobre o comportamento do seu cão quando ela o namorado, Junno, faziam saliência:

Como ele sempre estava com a gente, quando a gente namorava na cama, ele virava de costas para não ver. Quando acabava, ele vinha com aquele sorriso e a gente dormia.

Gargalhei por uns 15 minutos depois de ler a cena, porque não consigo mais deixar de imaginar o cachorrinho latindo para dizer: “Ei, Junno, não é assim não, porra! Primeiro cheira o cu dela, cheira! Isso! Agora morde o pescoço! Maravilha, garoto! Pode montar! Aê, meu filho! Joga duro aí que vou ficar de vigia pra que ninguém jogue água fria em vocês!”

Curiosamente, as referências a sexo em todo o livro são raras, sempre contidas, quase pudicas. Isso é surpreendente, principalmente em comparação com as revelações feitas por ela no podcast de Sergio Mallandro recentemente. Ah, se os adolescentes dos anos 80 ouvissem a Xuxa falando que gosta de sexo anal, como ela contou no tal podcast.

O problema é que não são os segredos de alcova da Xuxa que me interessam, mas sim outro tipo de detalhes da vida privada. Parece faltar a ela a compreensão da dimensão correta de sua existência e do que é realmente interessante em sua vida para o público e para a História; e assim nos deparamos com informações absolutamente sem importância como o cachorro que se recusava a ser voyeur involuntário ou quantas tatuagens ela tem ou o que mudaria nela mesma ou uma longa peroração sobre as vantagens éticas do veganismo.

Talvez por isso, num livro tão rarefeito, o que mais chama a atenção não é uma informação, e sim duas grandes omissões.

A primeira chega a ser canalha, e é talvez o ponto baixo do livro: o capítulo breve que ela dedica ao filme “Amor Estranho Amor”, de Walter Hugo Khoury. Para quem não lembra, uma Xuxa ainda em início de carreira fez o papel de uma prostituta que tenta dormir com o filho de outra prostituta, interpretada por Vera Fischer. Do jeito que ela escreve agora, parece que apesar de ter feito contra a vontade, ela desde o início foi uma defensora pública do filme, atacado pelas forças conservadoras da sociedade brasileira. Isso não é só mentira, é safadeza pura e simples.

Hoje ela diz para as pessoas verem o filme. O que é curioso, já que ela moveu um processo proibindo justamente isso. Durante um bom tempo, Xuxa pagou 60 mil dólares anuais para que o filme não fosse exibido, e isso destruiu as possibilidades comerciais do filme. Mais recentemente, perdeu uma ação contra o Google em que pedia a proibição de menções ao filme em seus resultados de buscas.

Xuxa deve desculpas ao Khoury, que viu um bom filme seu ser censurado porque Xuxa achava que ele não ia bem com sua imagem de “rainha dos baixinhos”, e ao ator Marcelo Ribeiro, que faz o menino que ela tenta comer e que já reclamou várias vezes de ter tido sua carreira interrompida pelo processo da Xuxa. Aqui ela tenta reescrever a sua história de maneira cínica, e além de se expor ao ridículo, tudo o que consegue é levantar a suspeita de que mais trechos de sua trajetória foram tratados da mesma forma.

A outra omissão é mais complexa. Diz respeito a Marlene Mattos, sua ex-empresária, ex-guru, madrinha de sua filha e reconhecida universalmente como a principal responsável pela sua ascensão a ícone absoluto de toda uma geração.

Não é exagero. No YouTube é possível achar trechos do programa que a Xuxa apresentava na TV Manchete. É a mesma Xuxa, com o mesmo talento, o mesmo carisma incomparável, a mesma singularidade a que nos acostumamos. Mas ainda um diamante bruto, que não deixava perceber o tamanho do seu potencial. Foi na Globo que ela desenvolveu uma imagem muito maior que a vida, absoluta. E foi Marlene Mattos a grande responsável por isso.

Com Marlene, Xuxa chegou à capa da Veja em 1991 numa matéria que falava sobre sua fortuna de 19 milhões de dólares, na época. Marlene era devotada à sua garota: enriqueceu e fez da Xuxa uma milionária, dirigindo sua carreira com mão de ferro, fazendo o que era necessário para que ela continuasse sendo a autoproclamada “Rainha dos Baixinhos”.

Enquanto estiveram juntas, formaram um time imbatível. Um amigo dirigiu a Xuxa num spot para rádio da campanha contra a poliomielite infantil, no final dos anos 80. As duas chegaram juntas: Xuxa extremamente simpática, parecendo uma menina acompanhada da mãe contra quem tentava se rebelar timidamente, resmungando protestos, e Marlene direta, grossa, rude. Depois de gravar o primeiro take, ele pediu que ela fizesse mais um, e que fosse “mais Xuxa”. Ao lado dele, na mesa de controle, com o mau humor que lhe era proverbial, Marlene lhe perguntou: “E quem é que você acha que tá lá dentro?”

Xuxa e Marlene desempenharam uma simbiose quase perfeita. Juntas, conquistaram o Brasil e a Argentina. Separadas, jamais conseguiram ter o mesmo sucesso. A Marlene veio parar em Sergipe, administrando um hotel-fazenda por uns tempos. Não sei onde anda.

É essa Marlene que é quase totalmente ignorada na biografia.

Na matéria da Piauí que fala desse livro e da série do Globoplay, Xuxa diz que se afastou de Marlene porque passaram a discordar sobre os rumos de sua carreira. Marlene achava que Xuxa devia migrar para o público adulto. Xuxa, encantada com a recém-maternidade, queria fazer o “Xuxa Para Baixinhos”. Na matéria, Xuxa se autocongratula e diz que estava certa: os discos e vídeos dessa série venderam milhões de cópias.

Mas ela está mentindo para o leitor, e provavelmente também para si mesma.

“Xuxa para Baixinhos” pode ter vendido os tubos, mas no final das contas Xuxa acabou foi na Record. Ela não entendeu ou não aceitou o que Marlene sabia institivamente: que a Xuxa precisava envelhecer com seu público. E que, en passant, ela era maior que a Bia Bedran. O que Marlene e a torcida do Flamengo entendiam é que Xuxa poderia ter sido a nova Hebe Camargo, o que parece mais que óbvio num mundo onde Luciana Gimenez alcançou alguma permanência. Em vez disso, ali a musa do Pelé deu início a uma carreira errática que terminou com ela fazendo alguma coisa em algum lugar, eu não sei mais.

E mesmo com tudo isso, ainda assim o livro é bem-sucedido: o leitor chega ao fim simpatizando com essa mulher que desempenhou um papel importante na cultura e no imaginário nacional, e que no fim das contas acumulou qualidades que hoje, em um país piorado e cada dia mais medíocre, são admiráveis.

Isso é tudo que tenho para dizer. Mas antes de ir embora, queria mandar um beijo para o papai, para a mamãe e para a Xuxa.

Identidades

Meu cachorro é um cão equilibrado, tranquilo. Nunca fez mal a ninguém além dos pés de minhas cadeiras, minha edição de “O Gene Egoísta” e umas galinhas incautas que chegaram perto demais, nunca precisou. Meu pastor alemão é um poodle.

Eu sei que ele se identifica com um poodle. Um poodle melhorado, porque não é nervoso, não fica chorando quando saio, não tem medo de fogos de artifício, nem medo de outros cachorros, mas ainda assim um poodle.

É isso que vou responder quando as pessoas perguntarem se tenho cachorro. Tenho, sim, tenho um poodle. E na rua, quando os poucos que se atrevem a chegar perto de mim perguntarem “é um capa preta?”, eu vou dizer que não, é um poodle.

E se você alguma vez criticou a J. K. Rowling, vai me dar razão e vai dizer: sim, é um belo poodle, Deus benza.

E a minha cachorra, ah, essa é uma pinscher.

Como o Holocausto

Já passou da hora de dessacralizar o Holocausto.

Em vários momentos deste blog escrevi sobre o assunto, sempre lembrando a mesma coisa: o Holocausto é singular porque não fazia sentido economicamente, ao contrário da escravidão africana; porque era apenas a materialização em última instância de um ódio racial injustificável, explicado em sua origem por uma necessidade existencial do cristianismo; e pela sua natureza industrial, o fato de os nazistas montarem um complexo mecanizado de assassinatos em massa.

O sacrifício desses seis milhões de homens, mulheres e crianças acabou tendo um aspecto curioso. O Holocausto deu fim aos quase dois milênios de perseguição institucional ao povo judeu. O antissemitismo deixou de ser considerado apenas um preconceito a mais, e a memória do genocídio possibilitou a formação do Estado de Israel, em termos prejudiciais aos habitantes da região mas autorizado pela lembrança dos horrores nos campos de concentração.

Nada disso é menos que justo.

Nas últimas décadas, no entanto, Israel fez do Holocausto o seu habeas corpus permanente, num cartão de saída livre da prisão de Banco Imobiliário. Ao transformá-lo no maior crime humanitário que o mundo viu em toda a sua história — os 10 milhões de mortos no Congo Belga na virada do século, por exemplo, batem o Holocausto nos números e também em desprezo a uma raça considerada inferior, mas carecem da sofisticação alemã na criação de uma máquina de matar e da publicidade que os campos de concentração receberam, e por isso não merecem os mesmos lamentos —, e principalmente em algo que não admite comparação possível, Israel se vê liberado para cometer as atrocidades que quiser, porque nunca deixará de ser uma vítima inalcançável. “15 mil crianças mortas em Gaza? Você tem a audácia de comparar isso com Dachau?” Dando um passo adiante, descobriram a tática eficiente que é chamar qualquer pessoa que critique o que Israel faz com os palestinos de antissemita, palavra bexigosa da qual se corre como quem corre da lepra.

É por isso que diplomatas israelenses usam estrelas amarelas ao irem à ONU enquanto avançam no genocídio do povo palestino. Foi por isso que uns 30 anos atrás judeus novaiorquinos protestaram contra uma exposição sobre as vítimas gays e ciganas nos mesmos campos de concentração onde seis milhões de judeus perderam a vida.

A exclusividade do sofrimento, aqui, não é defendida com unhas e dentes à toa. Há um propósito nessa glorificação da desgraça, e se ela nasceu como uma garantia de que o Holocausto não se repetiria, agora se torna o pedestal sobre o qual Israel se escuda diante de um mundo cada vez mais horrorizado com a sua própria selvageria.

O tabu de se comparar o Holocausto com qualquer coisa precisa cair. Torná-lo “aquele que não deve ser nomeado” não é mais exatamente uma garantia para os direitos dos judeus. É, ao contrário, o passaporte para a violação dos direitos dos palestinos. O Holocausto é agora a desculpa para um novo Holocausto.

***

Quando o Hamas realizou sua ofensiva contra Israel em outubro do ano passado, jornalistas compararam o ato a um pogrom, angariando capital emocional para defender a crueldade sionista que naquele momento já tinha tido início. Fingiram esquecer que o que aconteceu ali foi justamente o contrário.

Pogroms eram algo totalmente diferente. Eram a violência contra um povo minoritário e oprimido. O ataque do Hamas foi o inverso: mais uma tentativa de um povo de se libertar do seu invasor.

A única comparação possível, que esses jornalistas se recusam naturalmente a fazer, é com a rebelião do Gueto de Varsóvia. Israel tem feito em Gaza nas últimas décadas o que os nazistas fizeram em Varsóvia, mas agora em muito maior escala.

É por isso que a definição do Hamas como terrorista parece cada vez mais inaplicável. Ninguém chama, por exemplo, a Resistência Francesa na II Guerra de “terrorista”, porque ninguém pode negar a uma nação oprimida e ocupada o direito à resistência armada. A não ser que essa nação seja a palestina.

Há toda uma nomenclatura canalha utilizada pela mídia internacional para mascarar o genocídio. Falam, por exemplo, da guerra de Netanyahu contra o Hamas, e não do que realmente é, a execução de um genocídio pelo Estado de Israel contra o povo palestino. Usando esses termos, Israel pode destruir a Faixa de Gaza, pode atacar a Cisjordânia, pode chacinar mais de 100 pessoas na fila da ajuda humanitária.

Usando as palavras certas, eles podem tudo, como dizia a Golda Meir.

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Independente de como chamamos o Hamas, e independente do resultado desta crise, a única coisa que se pode tomar como garantida é que a cada incursão israelense em território palestino, a existência de Israel se torna cada vez mais inviável.

Desde o início, Israel só foi possível pelo investimento das grandes potências, pelo interesse estratégico dos EUA, por exemplo, em um enclave no posto de gasolina do mundo. Num mundo multipolar onde outras potências se afirmam, no entanto, essa posição se torna a cada dia mais vulnerável.

E a cada pai morto, a cada mãe assassinada, Israel cria mais e mais militantes do Hamas, construindo aos poucos a sua própria inviabilidade. O ódio se espalha e se justifica. Israel entrou em um círculo de violência e autodestruição do qual não poderá mais sair.

Disquinho

Descobri dia desses que tenho mais historinhas da Disquinho do que imaginava. Achei na internet, baixei inclusive muitas que não conhecia, e esqueci, porque isso não é mais coisa para ouvir, mas sim para saber que se pode ouvir na hora que quiser.

As histórias da Disquinho são histórias infantis e de ninar clássicas, editadas a partir do início dos anos 60 em compactos sob a direção de João de Barro, pseudônimo de Braguinha.

Todo mundo na faixa dos 50 para cima lembra de pelo menos algumas dessas histórias. E como boa parte delas foi relançada em CD no início dos anos 2000, um bocado de gente na faixa dos 20 lembra também, porque pais e mães insistem em acreditar que seus filhos vão gostar das mesmas bobagens de que eles gostavam em seu tempo, tolos que são.

Para mim, que passei a infância indo dormir com elas recontadas pela minha mãe, essas histórias são especiais. Nunca esqueci de muitas delas: “A História da Baratinha”, “O Soldadinho de Chumbo”, “O Patinho Feio” — não apenas das histórias, mas também de cada canção, das mais tristes (“Vou-me embora pra bem longe/Essa é a triste verdade/Talvez algum dia encontre/A paz e a felicidade”) às mais engraçadas (“Sai daí, sapo danado/Sapo velho cururu/Sapo não vai para o céu/Na viola de urubu/Vou jogar você lá embaixo/(Tá errado, seu doutor)/Desta vez eu te esborracho/(Tá errado, sim senhor)/Mas agora eu te perdoo/Bicho feio da lagoa/Só pra ver no fim da festa/Como é que sapo voa”)

Mais tarde, eu contaria boa parte delas para a minha filha. A preferida era a “História da Baratinha”, porque podia ser aumentada a critério do sono da freguesa.

No original, apenas uns poucos animais passam e assustam a senhora dona Baratinha, que tem fita no cabelo e dinheiro na caixinha. Mas na labuta de jogar uma criança nos braços de Morfeu nenhum bicho é demais, e então a noite via um desfilar de bichos de todos os quadrantes na porta de dona Baratinha, moça séria que só queria casar. Para isso aprendi que águias crocitam, crocodilos bramem, pardais pipilam, capivaras assoviam.

Percebi também que se você não sabe que som o diabo de um bicho faz, você pode inventar qualquer coisa que uma criança não vai lhe corrigir — mas se ainda lhe resta um pingo de decência nessa alma apodrecida pelo sono, é recomendável aprender para contar certo no dia seguinte.

O tempo é relativo

Encontrei este texto que não publiquei, não faço ideia da razão; acho que porque disse coisas semelhantes em outros textos. Pela referência a Doris Day, é de 2019. E o que me deixou fascinado é que todos os nomes citados no segundo parágrafo morreram nesses três anos.

Quando Kirk Douglas e Olivia de Havilland morrerem — e aos 102 anos de idade, esse dia parece cada vez mais próximo — morre, definitivamente, a Era Dourada do cinema.

Há uma lista maior de sobreviventes, com gente cujos nomes são fáceis de reconhecer e que estreou no cinema na década de 40. Rhonda Fleming, Sidney Poitier, Angela Lansbury, Marsha Hunt, Jane Powell — astros não tão grandes em seu tempo mas que conseguiram a proeza de se afirmar, ao menos em parte e independente do seu talento ou beleza, por terem vivido mais que os outros. Mas esses não contam. Das estrelas, mesmo, aqueles que aproveitaram o melhor que o studio system podia oferecer, restaram apenas aqueles dois. Doris Day, que morreu dia desses, virou estrela justamente no crepúsculo dessa era, nos anos 50, quando a Universal já tinha feito o acordo com a CBS para disponibilizar seus filmes para a TV, e que para mim é o grande marco do fim da era de ouro da velha Hollywood.

Mas isso faz pensar em como o tempo é relativo, bem mais do que eu pensava quando tinha uns 20 anos e ainda não tinha visto tanta coisa e tanta gente passar diante dos meus olhos.

Para mim, o Velho Oeste americano sempre foi algo tão distante quanto os tempos medievais, ou quanto a Revolução Francesa. Basicamente porque havia uma série de símbolos e elementos que faziam parte do meu cotidiano e eram tão comuns quanto o oxigênio que eu respirava, e que não faziam parte do seu: luz elétrica, televisão, automóveis, telefones, asfalto. A própria ideia de fronteira, de conquista de um mundo novo, era uma completa estranha para mim. Ninguém é criança impunemente em Salvador.

Não é difícil entender: para quem tem vinte anos ou menos, basta imaginar um mundo sem telefone celular, sem chaves remotas em automóveis e sem internet. Daí porque Tombstone para mim não tinha absolutamente nada a ver com a Salvador

Mas o Velho Oeste nunca foi tão distante assim. E para mim, os melhores exemplos são Wyatt Earp e Bat Masterson, duas das grandes lendas do oeste.

Earp era um desses sujeitos sempre atrás de uma maneira de ficar rico, muitas vezes lidando com a violência própria daquele tempo e lugar. Seguia o dinheiro e, nas três primeiras décadas deste século, os dólares estavam em Hollywood. Earp foi consultor de filmes, apareceu em The Half-Breed, com Douglas Fairbanks, foi amigo de Tom Mix (o que deu em um filme ruim estrelado por Bruce Willis, Sunset). Masterson terminou seus dias como colunista esportivo num jornal novaiorquino, mais próximo daqueles jornalistas interpretados por Humphrey Bogart do que de Billy the Kid. Tenho a impressão de que alcançaram uma dimensão histórica imerecida simplesmente porque viveram mais tempo e puderam contar suas próprias histórias. Mitificaram miudezas. Quando se pensa em um episódio como o duelo no OK Corral entre os Earp e Doc Holiday contra os Clanton como um dos acontecimentos legendários da história americana, a vontade que dá é mandá-los passar uns dias numa operação policial no Complexo do Alemão. Ou talvez nem precise: Columbine e as tantas chacinas periódicas nos EUA são muito mais importantes do que um tiroteiozinho safado num cudemundo qualquer do Arizona.

Masterson morreu em 1921, Earp em 1926. Isso quer dizer que hipoteticamente minha bisavó, que tinha a idade do século, poderia ter ouvido histórias contadas por eles. E eu, já adulto, poderia ter ouvido dela essas histórias, em primeira mão. É essa possibilidade que encurta a passagem, que cria wormholes e torna qualquer espaço de tempo maior ou menor dependendo do seu ponto de vista.

Cabeça de desocupado é o escritório do diabo, e isso me faz pensar em como o tempo, afinal, não é tão relativo — a começar por pensar nisso, o tipo de coisa em que só se pensa depois que muita água passou por debaixo da ponte. O rio não para de correr, isso é clichê velho. Mas quando o clichê acontece com você, é diferente.

Em 2010 tomei um susto ao ver que 1990 já tinha sido há 20 anos. Não pela passagem do tempo em si, porque já fazia tempo que minhas memórias abrangiam décadas. Mas pela diferença fundamental que aquela data marcava na qualidade dessas memórias.

Durante todos os anos anteriores, quando eu lembrava de mim mesmo 20 anos antes estava lembrando de outra pessoa. Porque uma criança de 7 anos não é o mesmo que um homem de 19. Em todo esse tempo, quando lembrava de mim mesmo eu lembrava de alguém ainda em formação, ainda descobrindo o mundo e seus significados. E eu certamente não via o mundo aos 9 anos como via aos 30.

Mas a partir de 2010, quando voltava 20 anos no tempo, passei a lembrar de um adulto. A mesma droga entra ano e sai ano, pau torto já incorrigível e conformado.

Eu pensava que isso era ruim. O que eu não sabia é que isso podia piorar.

Mais dez anos se passaram e agora é 2000 que foi há quase duas décadas. Coisas que para mim foram ontem na verdade aconteceram há 10, 20 anos. Xingo Kubrick por me fazer acreditar que em 2001 eu estaria tentando desligar o HAL-9000, ou os tantos diretores de filmes B que fizeram ter a esperança de veranear em Andrômeda ou Aldebaran. Eu ainda quero as minhas roupinhas de papel alumínio, cadê elas?

Tudo isso é coisa que as pessoas que nasceram depois do bug do milênio jamais poderão compreender, e é até melhor assim. Eles não tiveram o ano 2000 como a expectativa de um marco fundamental a separar o passado do futuro. Quem já nasceu com o bug do milênio como passado, no entanto, tem uma vantagem: a própria concepção de futuro mudou, e a julgar pelos filmes de ficção científica o futuro é só um presente piorado e muitas vezes distópico; a minha geração e as que me antecederam tiveram direito a alguma esperança.

Penso nisso e solto uma risadinha anasalada de velho.