Que me perdoem os fãs de Dylan. Que me perdoem os fãs de Lou Reed.
O maior letrista do rock and roll se chama Chuck Berry e, en passant, foi também o sujeito que chegou para todos aqueles meninos brancos tocando guitarra e disse: “Olha, moleque, é assim que se faz.”
Há uns 15 anos, como lembrou o Marcus em um comentário aqui há alguns meses, Little Richard fez um longo discurso — daquele jeito escandaloso que só o velho Penniman tem — dizendo que era o arquiteto do rock and roll e que mesmo assim os ingratos não lhe davam um Grammy. É quase verdade: a importância de Richard é descomunal. Mas o rock só se tornou o que foi por causa de Chuck Berry.
Quem disse que o rock and roll dos anos 50 era apenas sobre garotas e carros certamente nunca ouviu Berry. Suas letras são, em uma palavra, fantásticas. Mas sua importância é desprezada em favor da sua contribuição ao papel da guitarra.
No entanto, se o papel de Berry como instrumentista foi fundamental, sob certos aspectos foi pouco original. Ele basicamente transferiu velhos riffs do blues para o novo ritmo. Foi pioneiro, certo, e pode reivindicar com justiça o título de inventor da guitarra no rock. Mas tecnicamente ele não criou aquele estilo. Recriou, no máximo.
Agora, as suas letras são outra conversa. Elas são única e exclusivamente suas. E são brilhantes.
A letra de Memphis é de uma beleza doce e singular; é provavelmente a minha preferida, desde que, há uns 10, 15 anos, eu passei a prestar atenção à poesia de Chuck Berry:
Long distance information, give me Memphis Tennessee
Help me find the party trying to get in touch with me
She could not leave her number, but I know who placed the call
‘Cause my uncle took the message and he wrote it on the wallHelp me, information, get in touch with my Marie
She’s the only one who’d phone me here from Memphis Tennessee
Her home is on the south side, high up on a ridge
Just a half a mile from the Mississippi BridgeHelp me, information, more than that I cannot add
Only that I miss her and all the fun we had
But we were pulled apart because her mom did not agree
And tore apart our happy home in Memphis TennesseeLast time I saw Marie she’s waving me good-bye
With hurry home drops on her cheek that trickled from her eye
Marie is only six years old, information please
Try to put me through to her in Memphis Tennessee
Blowin’ in the Wind é linda, mesmo quando trucidada pelo Eduardo Suplicy; mas não tem um décimo da verdade e do sentimento que se percebe nessas linhas de Chuck Berry. E verdade e sentimento não podem obscurecer o fato de que a canção é admiravelmente bem construída do ponto de vista estrutural.
Em vários momentos ele atinge a beleza triste que normalmente associamos aos cantores de blues. Em Back to Memphis, por exemplo, um belo retrato de um fenômeno social dado sob uma ótica bem individual:
I’ve been struggling up here, child, trying to make a living
Everybody wants to take, nobody like giving
I wish I was in Memphis back home there with my Mama
The only clothes I got left that ain’t rags is my pajamas
No brotherly love, no help, no danger
Just a great big town full of cold hearted strangersI went hungry in New York and Chicago was no better
But today, my dear mother wrote and told me in her letter
Son, come back to Memphis and live here with your Mama
You can walk down Beale Street, honey, wearing your pajamas
You know home folks here, we let do just what you want to
And I born you and raised you right here on the cornerI’m going to leave here in the morning and walk down to the station
I’ve got just enough money to pay my transportation
I’m going back to Memphis, back home with my Mama
If I have to ride that bus barefooted in pajamas
Back home in Memphis, no moaning and groaning
I know everything will be all right in the morning
O que Berry canta aqui é a migração de negros do sul agrícola para o norte industrializado, movimento típico de quase todo o século XX. É algo muito próximo do blues, mas com uma sofisticação poética dificilmente encontrada ali.
Por outro lado Havana Moon, à parte a delicadeza de sua melodia, traz uma história de desencontro e destruição de um sonho; mas conta também uma história de diferença social que talvez Berry só possa cantar por ser negro e conseguir, mesmo de forma sutil, dar de maneira clara e convincente o ponto de vista das classes inferiores:
Havana moon, havana moon
Me all alone with jug of rum
Me stand and wait for boat to come
It’s long the night, it’s quiet the dock
The boat she late since 12 o’clock
Me watch the tide easin’ in
Is low the moon, but high the windHavana moon, havana moon
Me all alone, me open the rum
It’s long the wait for boat to come
American girl come back to me
We’ll sail away across the sea
We’ll dock in new york, the buildings high
We’ll find a home up in the skyHavana moon, havana moon
Me still alone, me sip on the rum
Me wonder where the boat she come
To bring me love, ow! sweet little thing
She rock and roll, she dance and sing
She hold me tight, she touch me lips
Me eyes they close, me heart she flipHavana moon, havana moon
But still alone, me drinkin’ the rum
Begin to think the boat no come
American girl, she tell a lie
She say till then, she mean goodbyeHavana moon, havana moon
Me lay down alone, was good the rum
Me fall asleep, the boat she come
The girl she look till come the dawn
She weep and cry, return for home
The whistle blow, me open me eyes
Was bright the sun, was blue the sky
Me grab me shoes, me jump and run
Me see the boat head for horizon
Havana moon, is gone the rum
The boat she sail, me love she gone
Havana moon, havana moon
Eu cometi um erro durante alguns anos. Ouvi Berry pela sua guitarra, pela sua voz — ela tem uma ironia e uma sensualidade que todas as versões de suas músicas feitas por gente como os Beatles e os Rolling Stones não conseguem reproduzir –, pela sua música. Era pouco. Eu deveria ter entendido imediatamente a razão pela qual John Lennon, um artista para quem letra e música sempre foram indissociáveis, apresentou Berry em um programa de TV em 1974 chamando-o de “meu herói”. As pessoas devem ouvir Chuck Berry também por suas letras. E reconhecer, de uma vez por todas, que o pai da guitarra do rock foi também o seu primeiro poeta.
Não é a primeira vez qque você escreve sobre Chuck Berry e eu não posso deixar de concordar com o seu ponto de vista. Chuck Berry foi o responsável por tudo o que veio depois. Rever a sua obra e colocá-la no lugar usurparado poderia tornar alguém muito rico, além de sacudir um pouco esse mercado descartável que se tornou o rock.
Ciao
Belíssimo post. Olha só isto aqui.
Preciso seguir mais suas dicas musicais…
Se Chuck Berry não fosse negro, ele teria sido o Rei do Rock. Mas, em compensação, não teria sido Chuck Berry.
E como eu não entendo absolutamente nada de música li o primeiro parágrafo imaginando que você estava falando de Chuck Norris e pensado: Braddock compositor???
Huahuahauhauhauha!!!!
RAFA! ótimo post. ok, o cara é ÓTIMO, vai dizer?
mas esse comentário é para indicar um texto meu (grande NOVIDADE!) que eu achava que já tinha saído do ar, já que o site fechou. mas ainda tá lá!
Memphis eu ouvi na voz do Lennon, sem nunca ter prestado muita atenção na letra. Parece só boazinha de início, mas o final revira tudo… muito boa!
Até então, pra mim, Chuck Berry era apenas uma boa influência que os Beatles absorveram. Vou procurar ouvir.
Gostei de saber mais sobre Chuck Berry. As letras que você colocou são lindas de arder os olhos.
Me lembrei do filme Rock Around the Clock que vi algumas vezes na Cinemateca do MAM.
Oxe! O Bia teve aqui e não fez uma defesa entusiasmada de Lou Reed?
ow grilão! tá lá no link do comentário, hehehe…
;>)