Mudando para não mudar

Belo comentário do Roger ao último post. No dia em que ele (que quase — quase, não cheguemos a tanto — faz com que eu me envergonhe de pegar no pé dos goianos) resolver escrever seu próprio blog este aqui fica mais pobre.

Mas eu discordo.

Não sei se fé é sinônimo de imutabilidade, o princípio básico do que disse o Roger. Acho que em primeiro lugar é preciso definir o seu objeto.

Na Igreja, o objeto básico não muda. É a existência de Deus como criador de todos e a possibilidade de salvação através da fé n’Ele. Nisso, sim, o Roger tem razão. Na hora em que deixar de acreditar nisso, a Igreja acaba. Mas esse ponto nunca esteve em discussão, provavelmente por óbvio demais. Esse ponto são os dedos da Igreja. O resto, todo o resto, são os anéis.

Acho que o problema central da idéia do Roger é a crença em uma Igreja monolítica, imutável ao longo dos tempos. É algo que a história sempre desmentiu. Como ele disse, “dependendo do tempo e intensidade das mudanças, talvez, um dia, nada reste do que chamamos de Igreja Católica Apostólica Romana, apenas o nome.” Isso é um erro, na minha opinião. Que vai de encontro à própria idéia fundamental da Igreja.

Porque, em primeiro lugar, é preciso saber a qual Igreja nos referimos. A que acredita na Santíssima Trindade? Essa idéia é posterior à sua constituição: foi estabelecida no Concílio de Nicéia, no século IV. A que acredita na Imaculada Conceição, por sua vez, é quase um bebê: definido em 1854 (pondo fim a uma tradição de indefinição que vem desde o Concílio de Trento) é um dogma tão recente que chega a ser curioso que em pleno XIX, o século do trem e da eletricidade e da crença no progresso como algo intrinsecamente bom, ainda se discutisse isso e se chegasse a definições tão aparentemente desnecessárias.

A idéia de exigir dos cristãos uma unidade de crença é um equívoco porque essa unidade nunca existiu. Por exemplo, até hoje a idéia de que o hímen de Maria não foi para o espaço quando Jesus nasceu (dizem que ele era meio cabeçudo, sabe como é; a Igreja Rafaélica de Todos os Tostões, sempre presente nessas árduas pelejas teológicas, defende que o Sujeito fez um baita estrago na moça) não é um consenso entre os fiéis, mesmo entre padres.

Uma das coisas que sempre me fascinaram no cristianismo foi o seu diálogo constante com o meio ambiente. Há entre os romanos uma crença mais ou menos vaga numa deusa mãe? Deifiquemos Maria, porque assim vamos estabelecer pontos de contato suficientes com os gentios e facilitar nosso apostolado. E assim o cristianismo se apropriou de uma imensidão de elementos pagãos, tornando-se atual e desejável. Foi justamente essa flexibilidade aliada à necessidade patológica de proselitismo, em oposição à rigidez e auto-suficiência do judaísmo, que fez o cristianismo se multiplicar como os peixes de Jesus e tornou a Igreja Católica uma instituição milenar e, durante a maior parte de sua história, poderosíssima.

É impossível esquecer que o cristianismo surgiu da mudança. E que ao longo dos tempos ele vem mudando continuamente, e enfrentando movimentos cismáticos quando não muda. Dogmas são acrescentados, outros são deixados de lado. Porque é feita de seres humanos, ela está sujeita a todo tipo de interferência política: divergências, retrocessos, evoluções. Por isso é um equívoco falar numa Igreja monolítica; o que sempre houve, dentro dela, foram correntes e tendências dominantes. O conflito entre elas, mais que natural, é que a leva para a frente. Há o movimento de resistência sim, como disse o Roger, mas por baixo dele há o de mudança, e às vezes ele é mais forte.

Foi justamente quando a Igreja se recusou a mudar em questões importantes que foi se enfraquecendo como instituição. Uma postura mais maleável em relação à necessidade histórica personificada em Lutero talvez pudesse ter evitado o maior de seus cismas. Ao mesmo tempo, ela precisa saber quando ser intransigente: se tivesse cedido às dezenas, talvez centenas de pequenas dissensões ela teria perdido, sim, sua unidade. Mas o critério de avaliação não é o da fé: é a possibilidade de alienar um número maior de fiéis ao abraçar idéias minoritárias. Humano, demasiado humano, e o mais político possível.

A própria noção de Deus muda. A idéia de um Deus de perdão, que aceita o seu arrependimento, foi uma mudança decisiva em relação ao Deus de 2 mil anos atrás. É esse o cerne do cristianismo. Por sua vez, essa nova visão influenciou a religião-mãe: a relação judaica com Deus mudou enormemente, em parte pela evolução dos tempos, em parte por uma relação dialética com o cristianismo.

Por isso, falar na impossibilidade de mudanças dentro da Igreja é quase uma heresia. Quer um exemplo? O velho e bom Belzebu, Mefistófeles, Belial, Lúcifer. Se na tradição judaica era apenas um anjo caído, uma analogia à necessidade de aceitar estoicamente os desígnios divinos, no cristianismo ele adquiriu quase o status de um outro deus. Era uma resposta ao dualismo persa. Aos poucos, foi adquirindo vida própria e se tornando um instrumento teológico — cínicos dirão que de dominação — importante. E mesmo isso, à medida que foi se tornando desnecessário, foi caindo em desuso. Hoje as principais correntes da Igreja mal lembram do pobre Satanás — que etimologicamente significa “adversário”. A sorte é que Neil Gaiman e Garth Ennis, assim como todo o pessoal da Vertigo, ainda lembram dele.

No fim das contas, o que fica em mim é a impressão de que a idéia de que no momento em que mudar ela terá sucumbido é muito mais a projeção de uma noção particular de fé do que um fato. Basta olhar para trás, para os tantos e tantos concílios, para as idas e vindas da obra edificada por Pedro — o sujeito que negou conhecer Cristo 3 vezes (parêntesis: alguém consegue imaginar sofisma mais belo e mais eficiente que esse?) — para ver que a Igreja, 1800 anos de Lampedusa, já sabia que as coisas têm que mudar para continuar as mesmas.

20 thoughts on “Mudando para não mudar

  1. A proeminência de Maria e da família nuclear (José, Maria e o menino Jesus) coincide com a ascensão deste tipo de família na sociedade, em seguimento à Revolução Francesa e a transição para o capitalismo.

    Ou seja, não é surpresa que a Imaculada Conceição seja tema do século retrasado. Mas, claro, é muito estranho. (Mas, também, o que não é estranho na ICAR?)

  2. Rafael. Fico meio constrangido em dizer isso mas concordo inteiramente com tua visao. A igreja é a instituiçao humana mais flexivel que ja foi criada o que explica em parte a sua longevidade. Noto que outro fator de sucesso é o uso que a igreja faz de simbolos e imagens. De certa maneira pode-se dizer que é a primeira religiao a fazer uso de alegorias em lugar de sacrificios reais. Isso permite exatamente uma flexibilidade de açoes e mudanças de direçoes sem igual. Por exemplo, quando voce menciona o concilio de Niceia me vem em mente o imperador Constantino que foi o grande construtor da ponte entre o catolicismo e a fe pagã. Ali foram instituidos nao so a noçao de santissima trindade, onde o monoteismo foi pro espaço dando lugar a um politeismo simbolico (genial), mas tambem a mudança do culto aos domingos em lugar do sabado. Domingo, dominus, em ingles Sunday, dia do sol, deus sol, deus pagao e por ai vai.
    Acredito que teremos ainda muito chao a percorrer antes de ver realizado o sonho dos humanistas renascentistas ou dos iluministas. A igreja sabera sempre adaptar-se fazendo de conta que nao muda.

  3. Interessante o Flávio citar o imperador Constantino… Ao contrário do que muita gente ignorante (entende-se aquele que desconhece o assunto) pensa, muitas das tradições católicas originaram-se do Paganismo; o Natal é um bom exemplo. O próprio “Satanás” surgiu através de um conceito completamente errado dos ditos cristãos em relação às deidades pagãs, tido como o Anti-Cristo, o Demônio, etc. Posso falar também da própria Bíblia, que sendo compreendida além de lida, revela ritos pagãos geniais. O problema está na forma como as pessoas encaram a crença alheia, o ser humano em si tende a olhar reto, certo de que sua verdade é a real. Talvez por isso ainda exista tanto “mistério” pairando no ar quando se trata de espiritualidade e afins.

  4. Rafael,

    Você roubou um post meu, hein. Tá anotado.

    Fora isso, concordo em gênero, número e degrau.

    Roberta,

    Uma vez chamei a atenção para as origens pagãs do Natal em algum blog por aí e quase fui linchado. Bem vinda ao grupo dos desmancha-prazeres ! 🙂

  5. Rafael, não consigo parar de rir com o hímen que foi para o espaço… Mas, falando sério, excelente post. A Igreja é feita pelos homens, e deve evoluir junto com os avanços da sociedade. Só terá a ganhar com isso.

    Enquanto isso não acontece, o Ratzinger vai mandar um enviado especial a Sergipe para te excomungar. 😉

  6. Então eu sou um cínico: o Diabo foi usado como instrumento de dominação e até hoje o bichinho é culpado por tudo no imaginário cristão; nego faz qualquer coisa “errada”, foi o Diabo que tentou.
    Lamento informar isso aos fiéis da Virgem Maria, mas, de acordo com a Bíblia, ela não morreu virgem. Casou-se com o corno e teve filhos dele. Ela só precisava ser pura pra ser mãe do filho de Deus. Pra procriar com um corno qualquer Deus não tava nem aí, ela podia até ser puta. E as influências pagãs sobre o cristianismo são óbvias pra qualquer pessoa com um mínimo de inteligência e conhecimento histórico. Mas é impressão minha ou todo mundo andou lendo O Código DA Vinci nas horas vagas?

  7. Ismael,

    Eu adoraria se você definisse “Diabo”… Talvez não seja o “lugar” para isso, mas se quiserem eu posso contar toda a história do dito-cujo e isso não engloba uma visão pagã singular, acredite. :0)

    Smart,

    Meu amigo, já estou acostumada com a polêmica e sou sempre a estraga-prazeres, porque não consigo ficar quieta perante a hipocrisia, hehehe… Os católicos realizam o ritual de Natal sem sequer saber sua origem, isso é engraçado, não acha? Será que alguém poderia vir aqui me explicar por que enfeitam os pinheirinhos com luzes e bolinhas, por exemplo? Se não puderem, eu explico, rs…

  8. Concordo com todas o texto, até as vírgulas. Como único reparo, acho imprecisa a frase “essa idéia [Santíssima Trindade] é posterior à sua constituição [da Igreja]: foi estabelecida no Concílio de Nicéia”.

    Pra mim a “constituição” da Igreja durou alguns séculos, que começaram com a pregação de Paulo e passaram pela lavra dos evangelhos, a ascenção como religião oficial de Roma, e finalmente o Concílio de Nicéia, que aliás oficializou uma determinada coletânea de livros como o “texto sagrado”.

  9. Concordo, Rafael. Aliás, é mais do que isso: eu olho e vejo as coisas mudando. Como poderia mesmo um organismo vivo não mudar e, ainda assim sobreviver? Difícil… A questão é essa mesmo: ela não perde sua constituição cerebral, mas vai se transformando ao logo do tempo. 😉

  10. Lúcido, calmo e sereno. Três adjetivos em um só blog. A “santíssima trindade” de um bom texto argumentativo. Nada a acrescentar. Tenha fé no que eu falo. Amém.

  11. A igreja pura politicagem como qualquer grupo humano, onde há junção há política.O problema da “política religiosa” é que se acha A verdade e que somente eles conhecem e podem mudar A verdade.Tratam a verdade deles como verdades universais.

  12. Vi na discovery channel um programa sobre isso e li outras coisas (comentadas por Roberta e Flávio) em outros lugares. Eu tb sou desmancha prazeres. 😛

  13. Ah… e eu considero virgindade, o fato de não ter tido relações sexuais, mas pelo jeito a igreja considera o físico, né?
    Nunca tinha atentado pra isso… que pra entrar, ela não perdeu a virgindade física, mas pra sair ela tem que ter perdido.
    Mas a Bíblia relata irmãos de Jesus, ou seja, Maria teve outros filhos com José, e nada mais sagrado do que isso, pô. Casou, véu e grinalda, crescei e multiplicai-vos. Mas a igreja teima em negar isso. Dizem que “irmãos” é a palavra que substitiu “primos” porque não existia essa palavra na época, na língua, sei lá. Mas quando falam que Maria foi visitar Isabel, falam que foi visitar a prima Isabel se não estou errada. Então existia a palavra “primo”.

  14. Apenas tentei articular o contra-ponto pela visão de quem tem fé e demonstrar que filosófica e conceitualmente a mudança é a maior inimiga da fé, pode, é claro, dar lugar a novas formas de crença.
    Quanto às mudanças é preciso distinguir dentro da Igreja dogma de tradição. Uma vez lançado um dogma a Igreja se utiliza da infalibilidade e esse princípio se torna imutável. Seria como artigo constitucional em uma constituição rígida, só uma revolução que derrubasse tudo poderia mudar. A Imaculada Conceição, por exemplo, já fazia parte da tradição católica desde os primórdios, já tinha virado conceito praticamente unâmime muito antes de virar dogma de fé.
    A liturgia pertence a tradição, ou seja, a missa pode ser repaginada para ficar mais atraente aos regionalismos com exceção da eucaristia que é dogma. Celibato pertence a tradição, é possível criar ordens onde os padres namorem e casem, o argumento “larga tua família e segue-me” dito por Cristo não tem força teológica para se impor como dogma.
    Aborto e eutanásia, dificilmente mudam, como disse JP II,”não matar não prevê excessões”, etc.
    Agora um dado interessante, pelos primeiros pronunciamentos de Bento e do Magela depois do conclave, a idéia é aquela mesma, com mais de um bilhão de fiéis a Igreja está preocupada em ter fiéis verdadeiros que sigam a religião e considera a diminuição numérica um problema de segunda classe. “Nós não queremos quantidade, queremos cristãos autenticos”, disse o Magela pós-conclave.
    Dado interessante é que todas as Igrejas tradicionais tem perdido terreno para os neo-protestantes, hehehe, porém as Igrejas que cederam e tentaram se adaptar tem perdido mais e mais rápido, vide Anglicanos. Ou seja, melhor que crescer feito balão, grande por fora e vazio por dentro, é manter a eficiência e qualidade dentro do seu nicho de mercado, que no caso dos católicos não é tão pequeno assim. Esse é o pensamento demonstrado por eles e que casa com o conservadorismo e fé.

    P.S.Ainda vou te ver comendo arroz com pequi, viu? hehehehe

  15. Eu concordo com o Roger. Acredito, inclusive, que os verdadeiros católicos não desejam essa “adaptação” da Igreja aos “novos tempos”.

    Isso é coisa de católico “não-praticante”, termo inventado para designar pessoas sem religião, mas que não querem admitir essa condição.

  16. Caro Ismael:
    Será que vc poderia dizer em qual livro,capítulo e versículo da Bíblia Vc encontrou tal “pérola”?

    Já li muitas versões da Bíblia e nunca encontrei tal parte.

  17. Prezado Rafael:

    A Igreja CAR, mudou sim e muito!. Do cristianismo primitivo até os tempos atuais, muita agua passou por debaixo da ponte. Vc, quer ver como a Igreja mudou? Basta pensar que o Catolicismo, é a forma cristã MAIS condescendente que existe com os seus fiéis. QUanto ao “demônio”, este NÃo foi inventado pela ICAR. No Antigo Testamento, NÂO há menção de Satanás, e a batalha espiriual se dá entre o povo de Deus Vivo, Deus único, e os povos politeístas, restando pouco espaço para a figura de Satanás. Foi Jesus, quem denunciou a existência do Diabo ( ser espiritual ) conforme a conhecemos hoje, podendo ser resumido o seu Ministério na Terra, nesses dois pontos principais: Revelar-nos o Reino de Deus (A Boa Nova), e denunciar a existência do Diabo, o que convenhamos, não é pouca coisa. Abçc. Cicero

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