Racismos e outros tipos de preconceito

Nos últimos dias um artigo do professor José Roberto Pinto de Góes tem feito carreira na blogosfera, como aqui e aqui.

O artigo é um primor de preconceito, tanto racial quanto político. Não é difícil contestar a maioria dos parágrafos do artigo.

Não faz sentido os brasileiros pedirem perdão aos africanos (Lula crê que tem uma delegação nossa para fazê-lo, mas não tem)

Na verdade ele tem e o rapaz precisaria estudar um tiquinho de direito constitucional (e português também. Confira o significado de “mandato”). Um presidente tem delegação para fazer tudo o que está previsto pela Constituição e leis do país, e por analogia e necessidade tudo o que não for proibido por elas. Isso inclui pedir desculpas. E mesmo aqueles que, como parece ser o caso do professor, não votaram ou estão decepcionados com Lula precisam aceitar isso.

O gesto do presidente revela também — como dizer, sem parecer mal-educado? — um certo desconhecimento da história da escravidão moderna. A África nunca foi uma vítima passiva da maldade dos europeus. O comércio de escravos preexistiu à chegada dos portugueses e sempre foi um negócio controlado pelos dirigentes das sociedades africanas, até o fim. E só acabou porque os ingleses, no século XIX, resolveram não mais tolerá-lo. Se devemos (toda a Humanidade) alguma coisa a alguém, é um agradecimento à Inglaterra.

Esse é um dos argumentos que mais me incomodam quando se discute a escravidão no país. É uma diluição das culpas européia e brasileira. O fato de existir escravidão na África, e de o tráfico ser um negócio altamente rentável no continente, não nos exime de nossa própria responsabilidade.

É quase como dizer que se Maria foi estuprada por seu tio, e eu a estupro de novo, eu não tenho culpa.

Um dos erros mais graves dessa avaliação é jogar a maior parte da responsabilidade pelo tráfico negreiro nas costas dos europeus. Porque se houve um momento em que o Brasil alcançou proeminência econômica no cenário internacional foi quando dominamos o tráfico no Atlântico Sul, justamente no momento em que ele alcançou maiores dimensões.

Ao que parece a idéia é de que nós, brasileiros, não devemos desculpas porque também fomos vítimas do tráfico. Mentira. As grandes fortunas formadas graças ao tráfico, os grandes contratos de empreitada que possibilitaram aos traficantes brasileiros o fretamento de navios provam isso.

O recado a ser dado ao professor é simples: nós fomos responsáveis, e não interessa como a escravidão se dava aqui, se o compadrio (fenômeno explicado com graça incomum pela brilhante historiadora Kátia Mattoso em “Ser Escravo no Brasil”) amainava as coisas, se as chances de crescimento social eram maiores que em outros países, se somos ou não descendentes de escravos. Escravizamos milhões de africanos. A responsabilidade é nossa. Se pagamos até hoje um preço altíssimo por isso, paciência.

Quanto a agradecer à Inglaterra, até parece que a velha Albion era movida pelos mais belos ideais em sua cruzada emancipatória. Como se ela não tivesse, como o Brasil e como Portugal, inúmeras grandes fortunas formadas através do tráfico (um bom livro sobre o assunto é Bury the Chains, de Adam Hochschild, lançado recentemente), como se ela mesmo não tivesse sido a única responsável pela escravidão no que seriam os Estados Unidos; e como se o interesse dela em acabar com o tráfico negreiro não fosse, também, reflexo das necessidades de um país industrializado e exportador. Usando métodos, inclusive, muito semelhantes aos que os Estados Unidos usam hoje.

O Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão não porque somos visceralmente racistas, como se repete por aí. Mas porque a escravidão era fortemente enraizada e não encontrava legitimidade em bases raciais.

Dizer que a escravidão não encontrava legitimidade em bases raciais é repetir aquele velho argumento de que o problema racial no Brasil é econômico, e não racial. Me recuso a discutir isso. Quando me mostrarem escravos holandeses no Brasil eu volto a discutir o assunto. O sujeito parte de uma base correta — a razão da escravidão era econômica — para fazer uma ilação completamente falsa– raça não desempenhou nenhum papel nisso.

Já a afirmação de que “somos visceralmente racistas, como se repete por aí”, é de uma idiotice atroz. Não se diz amplamente por aí que somos visceralmente racistas. Ao contrário, a afirmação mais comum é a repetição da idéia enganadora de que a escravidão “não encontrava legitimidade em bases raciais”. O professor consegue se contradizer em um parágrafo só.

Além do mais, o gesto não deixa de ser uma espécie de absolvição dos dirigentes africanos dos nossos tempos (Lula declarou que a atual miséria africana não se deve à “incompetência” dos africanos, mas à sangria do tráfico), que mantiveram e mantêm até hoje o povaréu nessa miséria.

Até poderia ser. Mas em sua análise brilhante ele esquece outra coisa: que muito mais que os atuais líderes africanos, os principais responsáveis pela situação da África foram as potências imperialistas européias, que incluem de Portugal à Bélgica e que exploraram o continente durante os últimos séculos. Como disse alguém (e esqueço o nome), apenas transferiram a exploração para o próprio continente africano.

É impossível avaliar corretamente a tragédia causada pelo imperialismo europeu na África. Seus maus governantes e seus problemas que parecem insolúveis são resultado direto da ruptura cultural causada por séculos de exploração.

Claro, isso não é culpa brasileira. Mas o exemplo não vale para desqualificar o pedido de desculpas brasileiro. Nem Lula pedia desculpas por isso.

O presidente Lula devia escolher melhor suas amizades, devia evitar a companhia dos que olham as pessoas e só enxergam fantasias do tipo “raça”, “classe”, “movimento” e tolices assemelhadas. Se os Orixás, ou o Deus dos Cristãos, lhes concedessem essa graça, não insultaria os mortos, pensando homenageá-los, nem ofenderia os vivos, supondo representá-los.

Traduzindo: todo o movimento negro organizado é composto por um bando de idiotas radicais, e aquele operário analfabeto não sabe do que está falando.

Finalmente: ainda que o presidente não tivesse o direito de pedir desculpas em nome do professor — e ele tem –, o professor tampouco teria o direito de achincalhar Lula em nome dos brasileiros. Eu não me senti ofendido. E certamente não conferi ao professor o direito de me prepresentar.

No fim das contas, a impressão que esse parágrafo passa — e aqui fica apenas uma impressão sem base alguma — é que esse artigo é basicamente a extrapolação de briguinhas e picuinhas do meio universitário para uma outra esfera.

P.S. Se o presidente tiver tempo, recomenda-se a leitura do livro “Em Costas Negras” (Cia. das Letras), do historiador Manolo Florentino. É bem escrito, tem método e contém mui interessantes informações acerca do assunto. Recomenda-se também Joaquim Nabuco, é claro.

O mui digníssimo professor da UERJ termina o artigo reforçando o velho preconceito sobre a burrice de Lula. Esse preconceito permeia todo o artigo, porque a todo momento ele — como dizer, sem parecer mal educado? — insinua o despraro de Lula para o exercício de suas funções.

Mas recomendar livros é fácil e eu também posso indicar, com a diferença de que não me sinto mais inteligente por isso (nem precisava: qualquer pessoa que leia esse artigo se sente menos burro): que ele leia “O Trato dos Viventes”, de Luiz Felipe de Alencastro. “A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro”, de Mary C. Karasch, é outro bom livro. E ambos são da mesma editora que ele recomendou.

***

O problema central do artigo é que ele embute, além de um sem número de análises mal feitas e tendenciosas, um preconceito enorme. É demagogia pedir desculpas por um passado remoto? Talvez. Mas se reconhecemos nossa própria responsabilidade da cadeia do tráfico, essa demagogia é tão grande quanto a de João Paulo II ao pedir desculpas pelo tratamento dado pela Igreja Católica aos judeus.

25 thoughts on “Racismos e outros tipos de preconceito

  1. Rafael
    Além de demagogia, um profundo comodismo. Tenho a impressão de que o mundo está às avessas e os conceitos vão no rumo. É preciso muito cuidado e senso crítico ao analisar comentários e opiniões por muito difundidas na Web sendo, essa última, um meio imenso de “Faz-Cabeças”.
    Mais uma vez devo concordar com teu post.
    O papa não é pop.
    O Lula é.
    Shalom

  2. Eu não entendo também! Como podem pensar que se X matou os avós de Y, prejudicando toda a vida deste, X deve apenas levantar o nariz e dizer que não tem nada a ver com isso!?

    Eu não entendo. Ou eu que estou muito errado neste mundo, ou este mundo é que está.

    Custa olhar a história?

    E esse professor aí querendo agradecer a Inglaterra pelo fim da escravidão? Ele é professor mesmo?
    Ele forçou a barra mesmo, acredito que ele tenha lido a história direito. Tentou forçar e não foi feliz, é isso.

  3. Não defenderei a visão do professor, mas não como não constatar que Lula fala muita besteira. Pediu desculpas a África e depois disse que a escravidão levou do continente os melhores homens do continente, e por isso o continente africano era tão pobre. Ou seja, entende-se, a partir da frase do Luis Inácio que os que sobraram no continente nem pra ser escravizados serviram.

  4. Nunca é tarde para se desculpar. Se algum dia descobrisse que alguém próximo de mim tivesse produzido um mal danado em alguém, certamente trataria de ajudar ou, ao menos, pedir desculpas e tentar confortar. O custo é insignificante e os resultados podem ser imensuráveis.

  5. Excelente post, Rafael.

    Infelizmente muitas pessoas ainda acreditam que no Brasil não existe racismo, e que os atos do passado não influenciaram na formação do presente.

    Todo sábado o jornal “Diário Catarinense” promove um debate sobre determinado tema. Sábado passado foi racismo. Um dos leitores afirmou que “o racismo acabou com o fim da escravidão”, e outro escreveu que “racismo é desculpa que os negros usam para se fazerem de ‘coitadinhos'”.

    Obviamente tivemos também a participação de leitores sensatos, mas as respostas acima citadas nos mostram que o país ainda está longe de ser uma “democracia racial”.

  6. Rafael,
    Não li o artigo do professor, nem vou perder tempo com isso. Li o que você escreveu. A solidez dos seus argumentos fizeram-me pesquisar até quando durou a tráfico negreiro para o Brasil. Julgava que toda a responsabilidade era nossa, portuguesa, mas afinal durou até ao início do Século XIX. Não deixo de pensar que a intervenção de Lula foi populista. Dir-me-á que é preconceito. “Quizas, quizas, quizas.” Não se pode dizer é que seja descabida.
    Francis

  7. Também não li o artigo citado, apenas, como disse o Francis, li o que você escreveu. O que me deixa um pouco com o pé atrás com essa história de “pedido de desculpas” histórico, Rafael, é até onde vai esse pedido. Até onde esse ato foge da demagogia para se concretizar. E, obviamente, disso não dá pra fugir: até onde esse pedido de desculpas irá nos afetar.

  8. Uma nação desculpar-se oficialmente é apenas um ato de reconhecimento de um erro histórico, é significativo na medida em que estabelece que essa sociedade não pretende mais trilhar aquele ou outros caminhos próximos. Não quer dizer que EU, mais de século depois, tenha culpa pelo fato de meus tataravós terem sido fazendeiros e senhores de escravos, como de fato foram. Ninguém em sã consciência diria isso ou tomaria essa culpa para sí.
    Agora é preciso tomar cuidado para não cair em uma falsa vitimização e eterna cobrança de uma divída que, muitas vezes, não existe mais. Ridículo, por exemplo, o quebra-quebra chinês, exigindo que o Japão peça desculpas pela milésima vez por um erro já admitido e pelo qual já pagou caro na Segunda Guerra, erro que em nada influência a vida na China de hoje. Perigoso também, a eterna postura de “nos somos as vítimas”, assumida pelos judeus – e olha que vovó é judia, viu? – para justificar inclusive toda sua agressividade e discriminação contra palestinos (que também não são santos) na manutenção de um Estado próprio.
    Quanto aos negros, sim, é claro que a forma como foram “incorporados” à sociedade brasileira foi injusta, moralmente abominável e causa de grandes disparidades sociais sofridas por eles até hoje. Daí a atualidade de um pedido de desculpas que não faça perder da memória esses fatos. Entretanto, alerto, cuidado para não cairmos em erros próximos aos acima descritos, onde a vítima busca reparação por caminhos tortos, produzindo novas formas de injustiça. Isso não aconteceu por aqui ainda, mas é bom lembrar que, igualdade hoje e no futuro é a única e justa reparação.

  9. Esse texto do “professor” Góes é de um racismo e ignorância estarrecedores. Não sei como o Globo tem o descaramento de publicar esta porcaria.

  10. Nossa, que dizer de um professor da UERJ que acredita que os ingleses lutaram (tardiamente) contra a escravidão por propósitos humanitários? Para se acreditar em uma balela dessas é necessária muita ingenuidade. Ou má-fé. Chego a ter dúvidas se o tal professor realmente existe, ou mesmo se algum impostor não está a usar seu nome indevidamente.
    Voltando… Concordo com os argumentos do Roger. É importante que jamais se esqueça cagadas históricas como a escravidão ou o holocausto. Porém, isso não significa que as novas gerações terão de se eternizar em papéis de vítima ou bandido – tanto mais em relação aos negros e brancos, cada vez mais raros em decorrência da miscigenação (poucos os negros e brancos, muitos os mulatos).
    Em relação aos caminhos tortos citados pelo Roger: infelizmente isso já acontece, ao menos eu alguns casos relacionados à pretensas vítimas do governo militar (como exemplo, o Cony e sua questionável indenização milionária).

  11. Me desculpa, mas é muita ingenuidade e desconhecimento achar que a culpa dos governos desastrosos da África moderna seja culpa dos “malvados governos coloniais.” Falando assim parece que antes da chegada dos europeus haviam grandes civilizações, culturas maravilhosas naquele continente. Pelo contrário, os africanos viviam em estados de miséria piores que os de hoje em dia, e se matavam com brutalidade igual ou pior. “Ruptura cultural”? Por Júpiter, que que tinha lá antes digno de ser mencionado, culturalmente falando?

  12. Rafael, infelizmente sou obrigado a discordar de seu post, mesmo não concordando totalmente com o texto do Professor da UERJ. Entendo a indignação de todos com a fato de o Império brasileiro ter mantido um regime escravocrata de trabalho, no entanto, pedir desculpas é uma tolice. Trata-se de anacronismo. Julgar o passado com olhos do presente é o maior deslize que um historiador está sujeito a cometer. Pode-se condenar ou criticar a escravidão, mas pedir desculpas é uma maneira de fugir de problemas atuais como o próprio racismo. Além disso, a citação da constituição não serve de argumento no caso, pois foi promulgada em 1988, ou seja, muito depois da abolição da escravidão. Outra vez o anacronismo! Nesse caso, pedir desculpas é perder tempo. Fazer declarações de indignação em relação a fatos do nosso passado histórico é muito fácil, difícil é combater efetivamente o racismo atual. Quanto a burrice de Lula, não vejo como preconceito, mas como opinião. O próprio Presidente pode comprovar isto, basta deixá-lo falar. Se o professor foi pedante ao indicar um livro para Lula ler, voçê cometeu a mesma falha, ao entrar em uma disputa de quem conhece e indica mais livros sobre escravidão. No mais, posso afirmar que nenhum desses livros, que foram escritos por Historiadores profissionais, condena a escravidão. A História não julga, busca a compreensão do passado. Um abraço!

  13. Oi Rafael. Gostei da sua análise do tal artigo. Lá no Verbeat tinha um outro artigo do mesmo professor (vamos e venhamos que o título de professor não impede ninguém de dizer besteira), ainda mais patético que o que você citou. Queria destacar várias coisas. Em primeiro, o artigo é o resultado de um debate que acontece no meio universitário brasileiro, mas também faz parte de um debate mais vasto sobre o perdão e as reparações. Ou seja, o pedido de perdão do Lula é in, faz parte de uma onda de pedidos de perdão, chega-se a dizer que tem mais gente oferecendo perdão que gente para aceitá-lo 🙂 A responsabilidade de uma parcela dos africanos é conhecida assim como a responsabilidade de brasileiros que enriqueceram com o tráfico e até se instalaram na África (como bem mostraram Pierre Verger e Kátia de Queirós Mattoso). Aliás em países como o Benim, convivem nas mesmas comunidades descendentes da familia real que enviou prisioneiros como escravos nas Américas, descendentes de mercadores brasileiros e descendentes de escravos também afro-brasileiros. Eu não sei se a indenizar certos países africanos para reparar os danos causados pelo tráfico seja a boa saída, até porque quem aproveitaria a indenização seriam os descendentes dos carrascos e não os descendentes das vítimas, mas no caso do Brasil, eu sou 100 por cento favorável (cotas, terras dos quilombolas, etc.). O autor do artigo diz resvala feio quando diz que a escravidão não era baseada em critérios raciais, é um absurdo do mesmo calibre que dizer que Auschwitz não existiu. A única diferença é que muitas vítimas de Auschwitz foram indenizadas, algumas o são até hoje. E no outro artigo do mesmo autor indicado pelo Verbeat ele condena a idéia de raça presente no Estatuto racial, quando na verdade o texto fala de negros, pardos e definição análoga ou seja afro-descendentes at large. Enfim, aluguei a caixa aqui ! Beijocas

  14. China. O problema todo não foi por causa de livros de História que passariam por cima dessa parte da história asiática?

  15. Pesquisando na internet algumas coisas, deparei-me com seu artigo. Bom, devo declarar que, a priori, comecei ler seu artigo com a maior consideração. Ao menos, iniciei. É difícil saber do que escreve. Sua estética de escrita é confusa! Por vezez, perguntava-me: “qual é o ponto norteador deste artigo, mesmo?” Confesso que terminei sem saber. Como historiador e mestre em História, a única coisa que gostaria de deixar é que desse ofício você entende pouca coisa.
    Abraço.

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