Molto bella

4 da manhã do sábado e vou fazer o check out no hotel. Desço com minha filha dormindo no meu colo.

Na recepção dois italianos bêbados com um saco plástico com água e cerveja. Com eles estão duas mulheres: uns vinte e poucos anos. Uma, a que tem cabelos mal pintados de louro e uma tatuagem tribal imensa no cóccix, é cearense, pelo sotaque; a outra pode ser de qualquer lugar entre o Rio Grande do Norte e Sergipe. As mulheres preenchem o formulário de check in da Embratur.

Os italianos estão bêbados. Passam a mão pelos corpos das mulheres, beijam-nas com ardor, mostram aquela lascívia de quem passou a noite em busca de algo que finalmente vai conseguir. Seus movimentos tentam ser fluidos, a fluidez da embriaguez, e mostram a falta de força, de punch dos europeus. Amantes que se querem sensuais, mas que não vão satisfazer suas musas, pelo menos não aquelas.

As mulheres conversam esporadicamente entre si, ocupadas consigo próprias. Não olham para mim nem para a minha filha no meu colo.

“Ele me chamou de molto bella, molto bella“, diz a morena para a loura, com a entonação cínica de quem já ouviu aquilo muitas vezes, e há muito deixou de acreditar.

O italiano que fala mais alto encosta-se com força na bunda da loura, os mesmo movimentos fluidos e embriagados e fracos. Passa a mão onde pode, beija seu pescoço com a volúpia dos incompetentes, mal consegue esperar subirem para o quarto.

Quando o elevador fecha a porta, olho para o funcionário do hotel com o mesmo sorriso cínico da morena ao espalhar aos quatro cantos que tinha sido achada molto bella, molto bella.

“Freqüência boa, a daqui.”

O funcionário olha para mim, se desculpando com um meio sorriso envergonhado:

“A gente não pode negar o check in, pode ser processado por discriminação. É difícil acabar com a prostituição desse jeito.”

Eu não falo mais nada, mas começo a pensar em evitar o Ibis das próximas vezes que for a Fortaleza; talvez jogue fora meu cartão de fidelidade da Accor. E como minha filha estava dormindo posso me permitir rir dos italianos, que saem do lugar onde vi mais mulheres bonitas por metro quadrado para passar uma noite inteira atrás de duas prostitutas baratas em Fortaleza, e então voltar à sua terra vangloriando-se de suas aventuras sexuais na terra da luz e da luxúria.

Originalmente publicado em 5 de dezembro de 2004

Neo-nazistas, agora do outro lado

A. Hit.. Ops, SharonDurante as eleições americanas, quando alguns mais exaltados chamavam Bush de nazista, logo apareciam vozes gritando que não se podia fazer essa comparação, porque o nazismo foi muito mais que isso, etc.

Essa sacralização do nazismo como algo único, impossível de ser repetido, sempre me pareceu um erro. Pressupõe a idéia imbecil de que foi uma excrescência histórica sem explicação, uma espécie de Anunciação do mal. Descarta todo o processo histórico que o criou.

A maioria dos nazistas não era louca, não era alucinada de ódio. Era gente perfeitamente normal, com preconceitos comuns em sua época e lugar que foram amplificados além do “aceitável” em um momento específico. Muitos eram só oportunistas. E o próprio Hitler mostrou que era extremamente racional em seu ódio: “Se os judeus não existissem, precisariam ser inventados”, ou algo assim. Louco ou não, arcaico ou não, Hitler era um político, e um bom político para aquele momento específico da história alemã. Independente de seus próprios preconceitos, sabia que o anti-semitismo era uma plataforma importante para o crescimento do partido nacional-socialista.

Erro grave, esse. Esquecer o contexto histórico em que algo se desenvolveu pode permitir que essas mesmas ações se repitam.

Este blog já comparou a ação de Israel às dos nazistas e foi criticado de algumas pessoas. Talvez por isso dê para imaginar a surpresa ao ver Yosef Lapid, que viveu no gueto de Budapeste durante a II Guerra, comparar a ação de Israel na Faixa de Gaza a ações nazistas semelhantes: “Vi na televisão uma senhora [palestina] procurando seus remédios numa casa destruída em Rafah, e ela me lembrou minha avó”. (A matéria completa, que fala sobre o declínio dos direitos humanos, é assinada por Silio Boccanera e está na Primeira Leitura de novembro de 2004).

Ainda assim Lapid seria só mais um sujeito a se indignar com o que Israel anda fazendo na Palestina, não fosse ele o ministro da Justiça do seu país. Agora, o Pedro Dória mostra o exército israelense tratando um violinista palestino da mesma forma que nazistas trataram judeus nos anos que precederam a II Guerra Mundial. A semelhança é impressionante. As imagens de judeus lavando o chão, cercados por soldados e transeuntes que riem de sua humilhação, deveriam ser mostradas a todos que menosprezam a maldade humana; e a essa imagens deveriam ser juntadas as do violinista Wissam Tayem.

Claro que se pode dizer que não há comparação, que Israel não construiu campos de morte como Auschwitz e Dachau. Mas por uma questão de metodologia, a Solução Final não define o nazismo. Define o Holocausto, o momento mais baixo da história da humanidade. O que realmente define o nazismo é a série de leis e, principalmente, de atitudes que o Reich empreendeu nos anos 30. O Holocausto não teria acontecido se, antes, o nazismo não fosse se fortalecendo através da perseguição e humilhação de milhões de judeus, se Chamberlain não deixasse esses pequenos detalhes passarem enquanto aceitava com protestos débeis os avanços de Hitler.

Hoje, Israel é um Estado opressor. Prepara o genocídio de uma raça. Se torna progressivamente racista à medida que seu povo aprende, desde o berço, que palestino é perigoso. E se isso não o faz cada vez mais parecido com o regime que fez o seu povo sofrer como poucos outros na História, então eu não entendo mais nada.

Originalmente publicado em 2 de dezembro de 2004

Filosofia à francesa

Nunca fiz segredo de que corro de filosofia como gato escaldado corre de água fria.

Agora posso explicar por quê.

Uma matéria da Primeira Leitura deste mês cita um tal de Roger-Pol Droit:

Pierre Hadot, grande erudito, mostrou que a filosofia da Antigüidade estava destinada a mudar a existência, e não a construir sistemas de filosofia. Ele influenciou Foucault e também uma nova geração, como a de Michel Onfray, com essa idéia de que a filosofia existe para ser vivida, não somente para ser pensada ou se limitar ao acaso.

É isso. O problema dessa francesada toda é só um: ignorância. Ou má-fé. Enquanto eles citam esse montão de sei-lá-quem o otário do Marx se revolve em sua tumba.

Droit continua:

Há uma grande demanda, hoje, na França, por essas obras filosóficas direcionadas à vida cotidiana, à reflexão individual, algo entre a sabedoria e a análise filosófica.

No Brasil também. Só que aqui a gente chama isso de auto-ajuda.

Originalmente publicado em 1 de dezembro de 2004

Cravos para o filho do general

Aí por 1977, 1978, havia três pilotos de helicóptero portugueses em Aracaju, funcionários de uma firma, a Votec, que prestava serviços para a Petrobrás (na época ainda com acento).

Um deles se chamava M. Outro era filho de um general que havia sido chefe do PIDE, o grupo de gente mais legal que Salazar conseguiu juntar, caído em desgraça após a Revolução do Cravos.

Ambos eram pilotos excepcionais, mas aí terminavam suas semelhanças.

O filho do general era um homem fechado, alto, louro, esguio; era bom a ponto de fazer “stall de badalo”. O avião, em um movimento pendular, sobe na vertical e desliga o motor; flutua por alguns segundos e cai. Embica para baixo e o piloto só então retoma o controle. O movimento é esse, o de um pêndulo, e é dessa semelhança que ele tira seu nome.

Em um avião não é uma acrobacia fácil de fazer, mas é relativamente comum; em helicóptero é praticamente suicídio. E esse piloto fazia isso uma ou duas vezes por mês. Em baixa altitude, o que é mais suicida ainda.

M. tinha uma personalidade diferente da do filho do general. Era moreno, baixinho e falastrão. Era tão bom piloto quanto o outro; costumava ir do aeroclube de Aracaju para as plataformas de extração de petróleo “esquiando” as ondas, ou seja: voando muito baixo, acompanhando o sobe e desce das ondas, sem no entanto deixar que os patins do helicóptero as tocassem.

Também em 1977, 1978, havia um menino que ia ao aeroclube vender pirulitos. Era deficiente mental, mas isso não o impedia de levar sua tábua de pirulito toda tarde aos pilotos. Esses meninos logo se tornam pequenas personalidades locais, e isso ajuda nas vendas.

Um dia M. o chamou.

Pegou o menino e o amarrou no patim do helicóptero. Levantou vôo, o menino amarrado ao patim, e passou alguns minutos fazendo as acrobacias de sempre. O menino, quando finalmente desceu e foi solto, foi embora correndo e gritando, com uma expressão de pânico tão absoluto que quem viu até hoje não esquece. Ele nunca mais voltou ao aeroclube e ninguém voltou a ter notícias dele.

Por isso M. foi denunciado à Polícia Federal. Não teve problemas em assumir o que fez porque não via mal nenhum. Era apenas uma brincadeira, era assim que ele via tudo aquilo. Eram tempos de ditadura e ele não foi condenado a nada; mas a empresa foi obrigada a tirá-lo de Aracaju.

O filho do general era um homem mais sério. Não era de falar muito sobre o seu passado. Mas quando passava a confiar em alguém podia explicar o comportamento de M.

Ambos eram veteranos das guerras coloniais portuguesas. Haviam servido em Angola.

Às vezes, quando sobrevoavam uma aldeia, recebiam um comunicado do quartel-general. Havia a suspeita de que aquela aldeia abrigava guerrilheiros, e eles recebiam ordem de atacar.

Os helicópteros portugueses eram equipados com metralhadoras Boffors, suecas. Disparavam 3 mil tiros em um minuto. Seu efeito era o de uma varredura no chão. 15 minutos de tiroteio e não sobrava absolutamente nada do alvo. Eram tão eficientes em sua função que foram proibidas pela Convenção de Genebra.

O trabalho macabro dos pilotos não terminava aí, no entanto. Terminado o bombardeio, os pilotos eram obrigados a descer e inspecionar o que havia sobrado da aldeia. Nunca sobrava nada. A não ser que se conte escombros fumegantes e cadáveres estraçalhados como sobras.

De cabeça baixa, lágrimas escorrendo pelo rosto, o filho do general admitia: não foram uma nem duas vezes. Foram várias. E em todas o procedimento era o mesmo: devastar as aldeias, pousar e checar o destroços.

M., por sua vez, tinha orgulho do que tinha feito. Era a sua forma de aceitar as atrocidades que tinha cometido, ou sido obrigado a cometer.

Enquanto isso, eram obrigados a ver os navios soviéticos aportando desimpedidos e descarregando armas para os guerrilheiros abertamente, e os militares portugueses não podiam fazer nada. Porque uma coisa é atirar em minombuanas de um país insignificante, outra é atacar um navio da segunda maior potência do mundo. Para Angola, pelo menos, aquele era um mundo mais equilibrado. Portugal acabou saindo do país, rabo entre as pernas, mas deixou para trás milhares de mortos em um país destroçado, e levou consigo homens com sérios traumas de guerra.

No dia da libertação de Luanda, Angola bateu seu recorde de atropelamentos, porque grande parte dos guerrilheiros jamais tinha visto um automóvel em sua vida.

A mesma Revolução dos Cravos que fez os funcionários do Ritz coletivizado em Lisboa contarem aos “doutoires turistas” que sonhavam com a volta dos antigos donos, para acabar com a bagunça em que o hotel havia se transformado, obrigou esses homens destruídos a procurar novos meios de vida. E eles às vezes, no meio da labuta, brincavam com meninos amarrados ao patim do helicóptero.

O filho do general morreria alguns anos mais tarde, no Paraná: levantou vôo contra o sol e não viu o cabo de alta tensão à sua frente.

Originalmente publicado em 19 de novembro de 2004

Mercado Municipal Thales Ferraz

A primeira coisa que vejo é o aleijado.

Ele se arrasta pela calçada oposta no mesmo sentido que eu, movendo quase rápido as pernas atrofiadas, uma crosta branca e grossa nos joelhos. Não se incomoda com o sol forte, com a calçada quente. Ele tem que chegar antes que tudo acabe, parece uma aranha com suas pernas finas dobradas e articulações inchadas.

É por causa dele que olho em direção ao seu destino: na esquina uma multidão interrompe o trânsito. A patuléia está em volta de um carro branco da polícia, um Santana com letras bem grandes, verdes: 1o BP.

Na calçada de cá as pessoas comentam. Eram dois. Já vinham roubando bicicletas por aqui fazia algum tempo, a polícia estava de olho neles. Um conseguiu fugir. “Esse aí vai apanhar que só a porra. É pouco.” A mulher que fala isso não olha para ninguém, olha para a confusão. Na voz a revolta por uma vida de não-conseguires, e a sensação de que a prisão do ladrão de bicicletas vai compensar o salário que não ganhou, a barriga que não a abandonou, as rugas que não saem do seu rosto, o homem que não lhe quer. A idéia de cada soco que caia sobre o rapaz talvez lhe alivie um pouco do fardo que lhe fizeram carregar.

O aleijado se mete na multidão, ansioso, fica embaixo do porta-malas. Ele agora participa de tudo aquilo; talvez ache que a miséria não é só dele.

Os policiais colocam o rapaz no porta-malas do Santana do 1o BP da PM. Não empurram, não batem, apenas não o tratam com gentileza desnecessária. Por cima dele colocam as duas bicicletas apreendidas, de alguma forma é com elas que o prendem ali; talvez não haja violência maior que essa. O dono da loja de roupas femininas, com seu tabuleiro na porta expondo calcinhas baratas, ri satisfeito: “Faz isso com ele não…” Nas pessoas em volta uma satisfação clara pela prisão de um ladrãozinho de merda, pela humilhação sofrida por ele. Talvez isso redima todas as outras que sofreram.

Um casal, com duas crianças no colo, sai da multidão. Ele traz no colo uma menina de talvez dois anos, mas pequena, podia mesmo passar por um. A mulher carrega um bebê de talvez um mês, fralda sobre o rosto o protegendo do sol.

Um homem gordo, barriga grande por fora da camisa, olhar vazio, me pede um cigarro. Eu dou, ele pede o isqueiro. Reparo em suas mãos, que seguram um pífano e um isqueiro. Calça sandálias de couro uns 4 ou 5 números maiores que dançam em seus pés. Atravessa a rua e volta para a confusão, quer ver mais um pouco, talvez consiga entender o que está acontecendo.

O carro da PM dá a partida e se move devagar, esperando que as pessoas finalmente saiam da frente. Assim que vê o caminho livre canta pneu avisando que são policiais, que essa saída intempestiva e poderosa é o que se espera deles. No banco de trás um sujeito, talvez dono de uma das bicicletas, faz um sinal de positivo para alguém do meu lado da rua. No porta-malas o ladrão de bicicletas. Sobre o ladrão, as bicicletas.

As pessoas começam a se afastar, em alguns rostos um sorriso impressionado. Voltam para as lojas de roupas baratas, para o ponto de ônibus, para o quilo de feijão que iam comprar. O dono da loja de roupas femininas pergunta: “De quem é esse dinheiro aqui no chão? As calcinhas eu sei que são minhas”, um riso despreocupado no rosto, e agora ele vai voltar a cuidar da sua vida.

Olho em volta e o aleijado sumiu.

Originalmente publicado em 16 de novembro de 2004

Rita

Eu nunca namorei uma Rita.

Já namorei mulheres com nomes bonitos e feios, até com nomes esquisitos. E dessas que se perderam pela vida, já andei até com mulheres cujos nomes eram tão insignificantes que esqueci.

Mas sei que nunca namorei uma Rita, porque se namorasse eu não esqueceria.

Rita é um daqueles nomes aos quais a gente normalmente nem liga, mas que acabam deixando uma sensação boa na gente. Dizem que o nome é um diminutivo de Margherita. Mas não tem jeito de flor nem gosto de tequila, embora seja isso mesmo, um nome que nasceu como diminutivo, oferecendo uma intimidade e um carinho que “Maria Eduarda” não consegue oferecer.

Rita tem gosto de jabuticaba. É namoro no portão, uma mão hesitante descendo dos ombros em uma sessão de “Férias de Amor”. Rita é vestidinho de algodão no meio da canela e um olhar meio tímido e oblíquo que tenta lhe dizer o que a língua não tem coragem de falar.

Mas não pode ser Rita de Cássia, nunca. Tem que ser só Rita. Talvez se pudesse abrir uma exceção, se ela fosse tão unicamente Rita que, ao ouvir seu nome de batismo, as pessoas estranhassem e imediatamente decidissem nunca mais chamá-la por esse nome, porque por alguma razão Rita, e apenas Rita, é a única forma como concebem a sua existência.

Se namorasse uma Rita, eu nem me importaria se um dia ela levasse meu sorriso no seu.

Originalmente publicado em 10 de novembro de 2004

Simpatia para ser vadia

A imagem da moça não me sai da cabeça: moça pura, na casa dos vinte, com um desejo que queima sua carne mas que não é tão forte quanto as imagens de danação que lhe assombram quando fecha os olhos.

Foi ela quem foi parar no Monicômio atrás de uma informação que talvez seja fundamental para o seu futuro: “macumba para ser vadia”.

Ela cansou. Cansou mesmo. Ela queria ser mais solta, queria reagir melhor a toques grosseiros de homens apressados, queria ser como suas amigas e dormir hoje com um, amanhã com outro. Ela queria desencanar, porque algo lhe diz que não está adequada ao mundo em que vive. Seu comportamento talvez fosse louvável em 1904; mas agora, duas guerras mundiais e um sem-número de revoluções depois, ela é como um peixe fora d’água.

Sente que se conseguisse ser diferente, se suas pernas abrissem com menos hesitações, ela seria mais feliz. Talvez se passasse a usar lentes de contato, quem sabe? Talvez se mudasse a cor do batom.

Assim como até hoje ela não conseguiu ver graça na vida que leva, aquela vida insossa regrada por preconceitos que sua mãe colocou em sua cabeça desde cedo, também a vida com que sonha está começando errado. Porque para ser vadia ela não precisaria de macumba, não precisaria que Mãe Gorete de Oxum tirasse o seu dinheiro para lhe dizer o óbvio.

Para ser vadia ninguém precisa da ajuda dos orixás, não precisa de banhos de ervas nem de ebós na encruzilhada, não precisa sequer da pombagira. Para ser vadia, vadia de verdade, daquelas que as senhoras de Santana olham com nariz torcido, ela precisa fazer apenas uma coisa: dar.

Portanto dê, minha filha. Dê muito. Dê o quanto quiser: sentada, deitada, em pé, de ponta-cabeça. Dê com a mão na cabeça para não perder o juízo.

Mas simplesmente dar não caracteriza ninguém como vadia. No máximo fica uma fama de promíscua, o que se resolve quando achar um inocente que se case com você.

Para ser uma vadia, mesmo, você precisa apenas misturar prazer e negócios. Precisa se conscientizar que seu capital de giro está entre suas pernas.

Isso não quer dizer cobrar pelo que dá, porque então você não seria vadia, você seria uma puta. Há uma diferença; talvez pequena, mas há.

Uma verdadeira vadia funciona em função de presentes. Não pagamentos, repito: mas presentes, vantagens, agrados. No entanto, diferente das prostitutas que batem calçada, ela não dá para receber presentes; ela recebe presentes por dar. Há uma troca, claro, mas enquanto prostituição é uma profissão, o ser vadia é só um modo de vida.

Portanto, minha querida moça cheia de dúvidas, esqueça essa conversa de macumba. Um copo com água deixado de lado por sete dias só vai lhe trazer mosquitos da dengue agora que o verão está começando; um despacho só vai lhe custar o dinheiro que seria melhor aproveitado em um conjunto de lingerie tão provocante que ultrapassa o limite do bom gosto.

Deixe a macumba de lado. A não ser, claro, que uma de suas fantasias seja dar em um terreiro ao som dos atabaques que imploram a descida de Oxum. Em vez disso, lembre-se de Chico Buarque:

Se acaso me quiseres
Sou dessas mulheres
Que só dizem sim
Por uma coisa à toa
Uma noitada boa
Um cinema, um botequim…

Originalmente publicado em 05 de novembro de 2004

Ralouin

Era domingo e minha filha, depois de me deixar a par das posições dos candidatos a prefeito na última pesquisa, me lembrou: “Hoje é Halloween”.

Eu não posso ser acusado de xenófobo. Meu escritor preferido é um francês, seguido de perto por um russo. Minha banda preferida é inglesa e a música de que gosto foi criada por uns descendentes de africanos nos Estados Unidos. Troco praticamente qualquer filme brasileiro por um bom exemplar da Hollywood dos anos 30 e 40. Chego mesmo a achar que essa mania de valorizar em excesso o que é brasileiro e virar o rosto para o que vem de fora é um sinônimo incorrigível de burrice, sem volta.

Mas quando o assunto é Halloween eu viro o mais reacionário dos xenófobos, o mais nativista dos idiotas.

O Halloween começou a virar moda por aqui aí pelo final da década de 80, quando os cursos de inglês proliferaram e resolveram encontrar um diferencial de marketing. A isso juntou-se a tradicional mania brasileira de aproveitar qualquer motivo para fazer festa.

Se o Halloween é produto do conflito dialético entre a antiga cultura celta e os novos costumes cristãos na Irlanda, tudo bem, não se pode negar que é uma história bonita. Mas a mim não diz absolutamente nada. A minha tradição é outra. É a do Caipora fumando na floresta, do Curupira e seus pés invertidos confundindo os caçadores; é a história da mula sem cabeça que passa as noites a pagar o preço de seus amores com o padre. É a história do Boitatá.

E ainda que as tradições indígenas pareçam pouco, o que não são, há a belíssima cosmogonia iorubá. A história de como Iemanjá deu à luz os orixás é de uma beleza impressionante — e há várias mais, tão arquetípicas quanto a mitologia grega. Infelizmente não temos um Jung para codificar esses arquétipos em um livro que faça sucesso nas universidades, onde se aprende a dizer da boca para fora que os valores brasileiros são lindos (porque um alemão disse isso ou algo parecido); mas se tivéssemos ele provavelmente descartado como um idiota forçador de barra.

Eu não entendo por que um bando de bobos se veste de bruxa para dizer “travessura ou gostosura” na porta dos outros, quando essa pequena chantagem sempre foi um costume de Exu — que ao contrário do que o povo parece pensar, é menos identificado com o diabo do que com esse mesmo trickster que inspirou o trick or treat.

É apenas a ignorância que nos faz valorizar o Halloween e menosprezar aspectos de uma cultura que viemos desenvolvendo e depurando por centenas de anos.

O resultado é que as crianças de hoje em dia conhecem melhor a versão pasteurizada de uma tradição cultural que não é delas do que algumas das mais belas lendas brasileiras. Como a do Negrinho do Pastoreio, lenda de uma beleza lírica tão grande que nenhum Halloween com seu Jack o’ Lantern poderá jamais alcançar.

Que me desculpem aqueles que se empolgam e se vestem de bruxa e de duendes no dia 31 de outubro. Mas o Halloween é uma comemoração de bocós que não pensam.

Assim que minha filha chegar a gente vai ter uma conversa séria.

Originalmente publicado em 04 de novembro de 2004

O Haiti não é aqui

Vendo este post no Geógrafos Sem Fronteiras, concluí que a decisão de mandar tropas de paz brasileiras para o Haiti foi um erro.

Fizemos tudo errado.

Devíamos ter mandado macumbeiros. Bons pais de santo baianos para enfrentar os vodouisants com suas próprias armas.

Em vez de deixar nossos soldados expostos a balas e granadas, sob a mira de milícias cheias de ódio, iríamos encher as ruas do Haiti com ebós.

Pipoca, farofa, galinhas pretas são melhores do que pólvora e chumbo.

E no final os tambores iriam tocar saudando a despedida de Omolu. Iansã guardaria sua espada e seus raios, Xangô imporia finalmente sua justiça. Ossain curaria as feridas de um povo que já sofreu mais do que deveria; Oxumaré reiniciaria um novo ciclo de paz e estenderia seu arco-íris pela ilha. Oxum dançaria, mexeria seus ombros em convite, e tomaria os haitianos pela mão e os levaria ao amor.

E à noite, sob as vistas de Oxalá, o Haiti se reconfortaria em paz no regaço de Iemanjá.

Originalmente publicado em 29 de outubro de 2004

Meus verdes anos II

Zilma, professora de português, entra na sala.

— Rafael, trouxe o livro?

— Não.

— Saia.

— Professora, eu não fiz nada!

— Mas vai fazer. Saia.

***

Santos, professor de inglês, cuja tese de que “tchê” era uma palavra e oxente não gerou algumas discussões:

— Vocês sabem quantas vezes as bombas atômicas que os Estados Unidos e a União Soviética têm podem destruir o mundo?

Eu levanto a mão.

— Uma, professor.

— Nada disso! São mais de 500!

— Uma, professor.

— São mais de 500!

— Só tem um mundo, professor.

***

Rosa Virgínia, de geografia:

–… Nostradamus preveu que o mundo…

— Nostradamus não preveu nada, professora.

— Como não? Eu tenho o livro!

— Dizem que ele previu algumas coisas. Mas não preveu nada.

***

Zilma me pega dando cola a Fabiano numa prova e me tira um ponto.

A redação daquele dia foi mais ou menos assim:

“Algumas pessoas xingam suas professoras. Xingam de vagabunda, de piranha, até de coisas ainda mais feias como prostituta. Isso não se deve fazer. Isso é feio.”

***

Dênisson quebra o pau com Santos e vai para a coordenação de disciplina, que julga o caso grave o suficiente para ir ao padre. Enquanto ele espera, me sento ao seu lado para fazer companhia.

Inara volta e leva os alunos que estão ali para a sala do padre Carvalho. E diz para eu ir também. Não adiantam os meus protestos de inocência. Eu também vou para o padre, revoltado com tamanha injustiça, reiterando meus protestos de inocência, enquanto alguém — Paulo? Dênisson? — enfia a mão no aquário e tenta matar os peixes do padre. Foi a única vez que o padre Carvalho não passou a mão na minha cabeça. Não gostou muito dos meus protestos.

O Arquidiocesano tinha acabado de inventar a punição retroativa. E talvez a preventiva.

Originalmente publicado em 21 de outubro de 2004