Umas duas palavrinhas sobre os Beatles

Não é comum ver matérias sobre os Beatles escritas por quem realmente entende do assunto. E o Marcelo O. Dantas entende. Publicou um belo artigo na Piauí de dezembro (que já tinha sido mostrado em parte no material de divulgação do primeiro número da revista, há alguns meses). Dantas cria, para começar, um trocadilho que define à perfeição o arquétipo da dupla Lennon & McCartney: apaulíneo e johnisíaco. Normalmente não gosto de trocadalhos do carilho, mas esses fazem sentido.

Como descobri agora que o artigo está disponível online, vale a pena linkar o danado.

É definitivamente um grande texto sobre os Fab Four. Por exemplo, ele lembra que os Beatles eram uma grande banda cover. Gravavam canções de outros artistas como ninguém, e muitas vezes faziam das suas as versões definitivas (é só pensar em Twist and Shout, Long Tall Sally e Words of Love, em que a mudança de acordes — C, F e G para A, D e E — muda completamente a canção). Normalmente esse fato é um pouco obscurecido pela concepção geral de que os Stones eram uma banda infinitamente superior ao vivo. Um equívoco baseado na percepção do esquema da beatlemania: shows de meia hora repetindo sempre a mesma performance, para um público histérico cujos gritos tornavam impossível ouvir qualquer coisa. Para entender o que foram os Beatles ao vivo, o melhor é ouvir as gravações semi-oficiais feitas no Star Club, em Hamburgo, 1962. A qualidade de som é deplorável, mas ali está a prova definitiva: como Lennon sempre disse, os Beatles eram uma pequena grande banda de rock and roll.

No entanto discordo da grande influência negra apontada pelo Dantas. É mais fácil encontrar a influência de Buddy Holly, que tem origens claras no country & western, embora Chuck Berry e Little Richard sejam fundamentais também. Essas influências, aliás, são as mais divulgadas. Mas há outra na qual se fala um pouco menos: os Everly Brothers. Brancos e caipiras até a medula. É impressionante como Lennon e McCartney se esforçavam para soar como Phil e Don. Até o final.

O Marcelo Dantas também analisa com muita propriedade a dialética entre a dupla e as razões de sua permanência. Aquilo que faz uma garotada que sequer viu Lennon vivo se apaixonar por uma banda que acabou há quase 40 anos. Faltou apenas lembrar que um dos principais fatores para a permanência da banda é a sua dedicação absoluta à canção.

Numa banda comum — e isso vale para qualquer uma, dos Rolling Stones ao Led Zeppelin — uma canção normalmente tem que se adaptar à banda. Ou seja: precisa deixar espaço para o vocalista, para os solos do guitarrista, para os desvarios do baterista. Nos Beatles acontecia o contrário: a banda tinha que se adaptar à canção. Se ela precisava que Paul McCartney, um dos melhores, mais melódicos e certamente o mais influente baixista em sua época, tocasse apenas tumtumtum (ou seja, ficasse apenas nas root notes), ele tocava. Se ela dispensava a bateria, Ringo esperava lá fora.

É isso que faz dos Beatles a banda com o maior número de canções eternas, que resistem ao tempo e se tornam atemporais.

O artigo só tem um erro factual:

Get Back — o melhor rocker de toda a obra dos Beatles — nasceu da (compreensível) irritação de Paul com Yoko e do seu desejo de deixar bem claro quem continuava a ser o dono do pedaço.

Na verdade, Get Back foi criada aos poucos em janeiro de 1969, durante as gravações do que seria o filme Let it Be (e quanto a ser o melhor rock, bem, isso é questão de opinião; não é a minha). Nasceu como um comentário à crescente resistência dos ingleses aos paquistaneses que chegavam à Inglaterra em busca de sub-empregos. Suas versões iniciais são conhecidas como “Commonwealth“.

Numa das primeiras versões gravadas, quando a canção não era mais que um rock and roll no estilo de Elvis, Paul, ainda improvisando a letra, ataca o refrão: “Commonwealth ” — e Lennon, em falsete, responde: “Yes?“. McCartney não segura a risada, e a brincadeira dá o tom da música dali em diante. (Isso ajuda a confundir um pouco o mito da banda que não se suportava durante as gravações do Let it Be. No mínimo mostra o quanto todos os dois ficavam felizes quando viam que agradaram ao parceiro.)

As versões seguintes — melodicamente já Get Back, mas ainda sem letra além do refrão — são conhecidas por No Pakistanis; uma das gravações começa com Paul dizendo: “Don’t dig no Pakistanis, taking all they people’s jobs“,

Finalmente, a canção se transforma em Get Back, sem nenhuma referência à questão dos imigrantes — e dela há uma infinidade de versões, como uma cantada por Lennon e outra, por McCartney, em alemão.

Claro que é bem possível que McCartney, em algum momento, tenha aproveitado a chance para dar um recado a Yoko. Lennon dizia que McCartney olhava para Yoko enquanto gravava a canção, o que é, no mínimo, discutível. Mas isso não quer dizer que ela foi concebida como uma alfinetada na senhora Lennon.

De qualquer forma, essa implicância minha é bobagem. Há um erro na minha opinião mais grave, por ser de avaliação — porque o artigo impressiona pela sua altíssima qualidade justamente nesse quesito: é quando Dantas diz que Lennon e McCartney se tornaram compositores com altos e baixos após o fim da banda.

Não, não. Eles continuaram os compositores geniais que sempre foram. Mas agora tinham que publicar também a sua produção menor, aquela que não conseguia sobreviver à concorrência com o parceiro e ao crivo do resto da banda. Se antes brigavam para emplacar 5 ou 6 canções, sozinhos tinham que encher um álbum inteiro. É mais adequado dizer que tanto Lennon quanto McCartney lançaram bons e maus discos depois do fim da banda. Ainda assim, é impressionante que álbuns como Imagine ou Band on the Run tenham qualidade comparável à da maior banda de todos os tempos.

Finalmente, há uma lacuna na interpretação da dialética da parceria Lennon/McCartney. Dantas repete a interpretação dominante: que Lennon instigava McCartney a escrever letras melhores, e que como letrista, ainda que pelo exemplo, dava um tom mais sóbrio, às vezes sombrio, às canções de McCartney.

Isso é absolutamente correto, mas não é tudo. Nessa definição falta um entendimento um pouco mais amplo da dialética, e subestima-se a capacidade de Lennon como músico.

McCartney sempre foi um compositor de criatividade melódica extrema, mas que muitas vezes encontrava dificuldade para dar coesão às suas canções. Por exemplo, é só ver as últimas três canções de seu álbum Ram, de 1971. São oito temas musicais distintos, e todos brilhantes. Na verdade, eram pequenos trechos que ele não desenvolvia e tentava costurar em um lugar só, mais ou menos na linha do lado B do Abbey Road.

Lennon atuava muitas vezes como editor das músicas, dando consistência ao trabalho de McCartney. Obrigava-o a se esforçar um pouco mais e polia as músicas do parceiro. E esse papel é muitas vezes subestimado, porque vêm Lennon prioritariamente como letrista e quando eles se referem ao “edge” dado por ele, pensam imediatamente nas letras. Não era só isso. Isso dizia respeito à música, também. Ou melhor, principalmente à música. Afinal, como lembrou brilhantemente o Dantas, é isso, a música, o que conta nos Beatles.

Republicado em 25 de julho de 2010

11 thoughts on “Umas duas palavrinhas sobre os Beatles

  1. “Descobri” os Beatles quando tinha uns 15 anos. Tarde, talvez. Mas posso dizer que foi amor a primeira música.
    Não sou uma expert em arranjos ou acordes, mas já dediquei alguns anos ao estudo da música – especialmente a clássica – e os Beatles são um dos poucos que conseguem arrancar de mim sinceros arrepios de admiração.
    Bom saber que ainda há pessoas que escrevem – e escrevem bem – sobre eles e permitem a simples estudantes como eu a oportunidade de aprender mais e mais sobre a melhor banda da história. Ótimo texto.

  2. “Numa banda comum — e isso vale para qualquer uma, dos Rolling Stones ao Led Zeppelin — uma canção normalmente tem que se adaptar à banda. Ou seja: precisa deixar espaço para o vocalista, para os solos do guitarrista, para os desvarios do baterista. Nos Beatles acontecia o contrário: a banda tinha que se adaptar à canção”

    É por isso que tu é rei.
    Parabéns pelo link e pelo post.

    Abs.

  3. Aprendi a tocar (mal) por causa dos Beatles. Minha pré-adolescência e início da adolescência foram todas dominadas pelas melodias (e que melodias) fantásticas do Fab Four.

    Afinal, ninguém conseguia combinar melhor tão poucos e tão simples acordes em melodias e harmonias tão lindamente costuradas quanto os Beatles. Até hoje.

    Como dizia Lennon, toda música é cópia, pois só existem sete notas! Mas, ninguém fez tão belíssimas (e eternas) músicas como eles fizeram.

    É isso.

  4. Rafa, escrevi um comentário que sumiu. Disse que adoro ler qualquer coisa que fale sobre os Beatles, os meus ídolos. Beijocas

  5. Passei tanto tempo tentando atribuir contexto histórico, vanguardismo, George Martin e historiografia do rock como um todo a importância dos Beatles pra música e pra mim mesmo e não vi o que realmente interessava. É o texto mais esclarecedor que eu já vi sobre os fab 4. Dá até pra visualizar as letras ganhando vida no meio da dialética Beatle. Incrível.

  6. Os Beatles só passaram a ser interessantes a partir de rubber soul,pq antes eles eram bem chatinhos, sem contar que eles eram melhores em estúdio,principalmente depois do álbum que eu citei pq em cima de um palco eles eram comuns,existiam várias bandas superiores a eles em matéria de palco.

  7. Rafael Galvão, parabéns pelo texto, esclarece fatos sobre os Fab Four que nunca vi debatidos em outro texto na net, pelo menos dessa forma.

    Objetivo, conciso e sóbrío, e não menos completo

    Meus parabéns!

    Flávio Lima
    (Cantor e compositor)
    http://www.flaviolima.com

  8. O Beatles eram realmente melódicos tinha o paul com um baixo excelente enfim composiçoes maravilhosas minha segunda banda. A primeira foi e continua sendo os STONES. Sendo que a fase que mais aprecio e a que eles tocavam rythman and blues depois vei o grande mick taylor e hoje em dia é so barulho. E não podemos esquecer THE DOORS. pARABENS PELO TEXTO.

  9. Samba de raiz tipo Cartola, nelson cavaquinho, nelson sargento, argemiro, manaceia candeia dona ivone lara clementina de jesus etc enfim a nossa música e muito superior a tudo isso. tem melodia harmonia ritmo, o rock com raras excecoes Beatles e Stones, e si ritmo.

  10. Rafael:

    Vale lembrar que trocar o tom de C para A na música Long tall Sally se deve ao fato de que ai a musica esta pode ser cantada uma oitava abaixo, o que era mais adequando a voz do Paul que, apesar de ser um grande cantor de grande extensão vocal, estava a milhas de distância de extensão vocal de um Little Richards, o cantor original deste fantástico rock.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *