Sábado à noite, um restaurante.
Vamos para uma mesa meio afastada, mas o sujeito chega e se senta à mesa ao lado. Na verdade sentar ali não foi indelicadeza dele, foi erro nosso: a mesa já estava ocupada, mas quando chegamos ele estava perto do bar, tomando alguma coisa enquanto esperava, e sua mesa parecia vazia como as outras. Indelicadeza é ele continuar ali, sozinho, depois de ver que um casal que não quer muita conversa com o mundo sentou numa mesa afastada. Há prioridades na vida, e ele deveria respeitá-las. É como ceder o lugar a um velhinho na fila do banco; são coisas que você simplesmente sabe que deve fazer.
O fato de estar próximo já cria, automaticamente, uma certa antipatia. Disfarçadamente olhamos para o sujeito: é meio gordo, tem pouco mais de 30 anos. Usa óculos e barba por fazer, fala com sotaque paulista, embora equilibrado. E se senta sozinho à mesa do restaurante.
Sozinho. Então cai a ficha: naquele exato momento em que destrói as chances de duas pessoas de jantarem com alguma privacidade, ele está levando um cano.
Ele parece estar esperando alguém. Olha todo o tempo para o celular. Um pequeno sentimento de vingança pela sua proximidade aparece: você levou um cano, compadre, porque sentou perto de nós. É bem feito. Você mereceu. A isso chamamos justiça divina.
Pelo menos isso: ele levou um cano. Durante o resto da noite vamos ter que falar ainda mais baixo do que pede o restaurante, mas ele também teve o dele. A gente ainda comenta o assunto quando, de repente, ele olha para o celular e diz em voz alta: “Shit!”
A antipatia que a sua simples existência criava aumenta e se cristaliza. Esse sujeito jamais será meu amigo. Eu tolero gente que fala todos os palavrões, mais até do que eu, e eu falo muitos. Gosto de gente que fala “pobrema” e “mulé”. Mas há um tipo de gente que me irrita. Shit em vez de merda. Oh-oh em vez de ih!, de xi!, em vez de êpa! Oops, em vez de opa — até mesmo em vez de “puta que pariu!”.
Não dá para respeitar ninguém que em sã consciência fale shit. Pior: que fale shit em voz alta, sozinho enquanto experimenta o processo doloroso de um belo de um perdido.
A entrada dele chega, um creme de aspargos. Ele toma a sopa com educação, segue bem as regras de etiqueta. É um rapaz fino. Está levando um cano inesquecível, mas não perde a classe. Depois do creme, um risoto. Ele acaba de comer — olhando para cá de vez em quando, porque talvez tenha adivinhado que falamos dele — e pega novamente o telefone. Celulares parecem ter sido inventados para dar o que fazer a quem leva um cano inesquecível, mas dessa vez ele disca e espera atenderem.
O cardápio está à minha frente, eu tenho que escolher o meu prato, mas não leio mais. Tento prestar atenção ao que ele diz ao telefone. Imagino que vá reclamar com a mulher que o deixou ali plantado, ou que vá reclamar que isso não se faz; que pelo diga que ela deveria tê-lo avisado. Mas não consigo ouvir todas as frases. Ele fala com Sabrina. Sabrininha, é como ele a chama. Ela lhe deixa plantado no restaurante e você a chama de “inha”? Ah, você merece. Encare a verdade, amigo: foi essa a mulher que arranjou algo melhor para fazer numa noite de sábado do que ir jantar com um sujeito que fala shit em voz alta, sozinho. Ele merece, merece ainda mais, e eu me solidarizo com ela.
Ele é informado de que ela está ou esteve no salão de beleza.
“Você pode fazer as unhas, o cabelo, as pernas, o braço, faça o que quiser. Tudo bem. Eu estou aqui, no meu momento de orgia gastronômica.”
E mais antipatia ainda, porque ninguém faz orgia gastronômica com um risoto e um creme de aspargos. Uma orgia é algo mais. É feita de coisas diferentes, e variadas, e os sabores contrastam e se complementam. Uma orgia gastronômica é um exagero, sempre, é para ser cometida em meio a gargalhadas altas e ao barulho de talheres batendo incessantemente nos pratos. Orgia gastronômica implora por vinho, não pela Coca Light que ele perpetra. A palavra que combina com orgia é “pantagruélico”; e não “risoto”, muito menos “creme de aspargos”. Um risoto é só um risoto, não é sequer um ménage a trois. Um risoto é uma rapidinha na pia da cozinha.
E um homem que fala “no meu momento” precisa de orientação profissional. Parece uma moça que acabou de levar um pé na bunda se justificando perante as amigas: “Eu estou no meu momento, entende? Ficar comigo mesma, me curtir, sabe?”, enquanto o que curte é uma fossa descomunal.
Mas não é só isso, porque quando um homem começa errado ele tende a permanecer errado, errado até chegar ao precipício. Há um quase pecado quando alguém leva um cano como o que ele levou — se não pelo homem, que a mulher fosse pelo restaurante, valeria a pena — e diz que tudo bem, que está numa “orgia gastronômica” com um risoto e um creme de aspargos.
Dá vontade de levantar, pedir licença, sentar no lugar que ainda aguarda a Sabrina e contar algumas coisas ao sujeito. Contar que diante de um cano desses ele deveria se descabelar ao telefone, dizer que está sofrendo, que está triste. Dizer que não comeu nada — mesmo que nunca tenha comido tanto em sua vida, e que tenha arrotado sem nenhuma vergonha — porque a ausência dela tirou o seu apetite. Dizer que jamais superará a mágoa de ter passado um vexame tão grande. Nesta vida cachorra e injusta não há muitos momentos em que um homem pode se fazer de vítima: um cano em um restaurante numa noite de sábado é um dos poucos.
Mas em vez disso, em vez mostrar que é capaz de chorar por uma mulher que lhe destruiu o coração, ele prefere negociar:
“Não. Hoje quem vai usar o brinco é ela. Hoje é a vez de Priscila, a prioridade”.
Então tem uma Priscila também. O cano que ele levou é duplo, é uma tubulação inteira. Sabrina e Priscila.
Aí a outra ficha cai.
Sabrina é um nome bonito. Priscila é um nome bonito. Mas quando uma Sabrina anda com uma Priscila é porque as duas são putas, porque coincidências, se é que existem, são raras e passíveis de extrema desconfiança. Talvez Sabrina e Priscila morem em um apartamento na zona sul com Julia, Bianca e Momentos Íntimos, moças prendadas e de talentos vários e custosos. E juntas, rindo enquanto decidiam o que fazer naquele sábado à noite, elas decidiram que o sujeito que fala shit não vale sequer um bom jantar. A humilhação então chega ao limite máximo tolerável.
E então esse é o sujeito que sentou à mesa ao lado: um homem que, talvez por falar shit ao telefone, levou um cano de uma puta chamada Sabrina, ou de Priscila, mas como é generoso e magnânimo vai deixar uma delas usar o brinco hoje. É um homem que vai levar muitos e muitos canos na vida estranha que tem pela frente. Shit.
Republicado em 18 de agosto de 2010
Fiquei curiosa: Que porra de brinco será esse? Me ocorreu que eles podem fazer parte de um grupo sadomasô e o tal brinco seja talvez uma argola peniana feita em aço cirurgico com bitola grande, que tilinta ao balançar; isso justificaria a ausência das “moças” afinal, judiar do escravo é parte da competência no sadô… mas me ocorreu outra idéia aqui: Seriam as tais moças, travecos? De qualquer modo, seu texto dá margem a muitas interpretações e devaneios 🙂
mérrda
É razoável um sujeito que diz “shit” levar um cano de umas priscilas-sabrinas-cahorras. Ele merece! É também razoável que essas Priscilas-Sabrinas sejam dadas a dizer: “É o ó do borogodó!”. Alguém que diz shit, jamais fala “Olha a faca!” Eles são uma versão disfarçada dos que dizem “é o ó do borogodá”.
Que fique claro que a minha suposição não deixa as coisas nem melhores, nem piores. As vezes é melhor não mexer com quem está quieto.
Cara… o fato de falar shit ou tomar cano eu ate relevaria
mas…
Creme de aspargos?
que bicha!!!
Eu ficaria tão irritada se alguém saísse pra jantar comigo e postasse sobre o cano do pobre e patérico vizinho que fla shit….
Vc nunca levou um cano numa noite de sábado? Oh, shit!
gd ab
Primeiro lugar: eu falo shit.
Segundo lugar: Priscila e Sabrina podem ser suas filhas. Normal um pai levar o cano de suas filhas em um restaurante, chamá-las no diminutivo pq são duas adolescentes que brigam por causa de um brinco e passam horas – inúteis, pq não há nada na vida pior que salão de beleza – em um salão de cabeleireiro ao invés de jantar com seu pai que banca o salão, o brinco e outras coisinhas mais. De repente os brincos são valiosos, eram de sua falecida mãe e elas gostariam de usá-los para jantar com o pai, caso tivessem a intenção de…
A análise foi divertida. Mas o que a sua companhia tão íntima achou de você passar a noite vigiando um macho solitário?
É tão patético que, se se olhasse no espelho, apenas conseguiria dizer “ass hole”
Paulista, que come creme de aspargo com coca light e fala “shit”, só pode ser guei!
Na verdade, Sabrina é um travecão – e Priscilla é o nome de guerra dele mesmo, que, todo “montado” vai usar os brincos que emprestaria à outra, sozinho, na frente do espelho.
As pessoas GERALMENTE merecem grande parte do que lhes acontece, não é verdade?
Esse cara é ridículo.
Conheci o blog ainda há pouco e estás de parabéns.
Escrevo algumas coisinhas de vez em quando no blogspot.
Sendo assim, o que dizer do casal que sentou-se ao lado de tal tipo? Eles mereceram? Boa questã!!!
Eu acho que eles deveriam ter se levantado, mas a porção macho do casal parece ter um certo gosto em reclamar…
Ahahahaha! Nessa a Viva te botou no corner. 🙂
aaaahahahahahaha
É verdade…o que vc fazia prestando atenção a conversa do cara? Vc estava com uma companhia.