Sou pontual ao chegar ao auditório, enfiado na minha roupa multi-uso — aquela que envergo em missa de sétimo dia, aniversário de parente distante, exame de fezes e casamento de pobre onde ternos parecem esnobes demais.
É a posse de um amigo na Academia.
Uma das tantas coisas que aprendi com ele foi a não levar a sério essas coisas. Fazem um bem danado à vaidade, é verdade, mas não são muito mais que isso. Graças ao que aprendi com o exemplo do sujeito olho para tudo com uma certa ironia, porque não pode haver nada mais engraçado que um bando de velhinhos falando em imortalidade.
O Estado inteiro estava lá. Só de ex-governadores contei quatro, incluindo um dos acadêmicos. Ministro, prefeito, deputados, desembargadores, um bocado de ex-professores meus. Se alguém ainda tinha alguma dúvida de que academias têm pouco ou nada a ver com letras e muito a ver com poder, basta ir a uma dessas cerimônias. É isso que faz delas algo interessante.
A verdade é que se fosse só um bando de escritores, uma academia não teria interesse nenhum. Escritores são chatos, a começar por sua mania de dizer as coisas para quem não precisa ouvi-las e a pose que costumam adotar para disfarçar sua profunda incompetência para viver e os sapos esquisitos que são obrigados a engolir dia após dia. Escritores são profundamente desinteressantes, são como adolescentes espinhentos que não perceberam ainda que as únicas pessoas que gostam dos seus wisecracks são outros adolescentes espinhentos que gostam de wisecracks.
Mas uma Academia de Letras é outra coisa. Diz respeito à estrutura de poder de um lugar. Diz respeito a política, e é por isso que o governador não está na posse do meu amigo, porque os dois são inimigos. É algo muito, muito mais interessante que um bando de bobos discutindo Balzac. Academias de letras, se fossem mesmo só de letras, seriam organismos mortos e absolutamente irrelevantes. Mas falam de política, falam de futuro e da maneira como ele é moldado, e é isso que lhes dá vida. Aqueles que reclamam da política na Academia não a entendem e não a merecem.
Fazia muito tempo que eu não via tantos políticos, advogados, juízes e promotores juntos em um lugar só. Não que eu seja um sujeito desconfiado, mas por via das dúvidas coloco a mão sobre o bolso onde está minha carteira. Prudência nunca fez mal a ninguém.
A cerimônia começa. Os velhinhos entram em fila indiana. Imagino que se somarmos a idade de cada um deles — e são muitos — o número final deve ser muito maior que a idade da primeira prensa de Gutemberg, talvez remetam ao tempo das Acta Diurna. Há alguns acadêmicos semi-novos, é verdade, mas são minoria; a imortalidade parece só admitir, curiosamente, aqueles que estão às portas da morte.
Há algo de muito ruim em mim, percebo agora. O sujeito que está tomando posse costumava me chamar de “deletério”, aparentemente sem razão; mas agora me sinto mesmo deletério, porque os pensamentos que passam pela minha cabeça só podem ser chamados por esse nome. Eu não tenho controle sobre eles. Não consigo evitar o seu sadismo. Enquanto vejo os velhinhos atravessando devagar o auditório para chegar à mesa, fico imaginando o que aconteceria se um deles — digamos que aquele ali, o encolhidinho e encurvado apoiado em uma bengala com castão de ouro — tivesse um piripaque e caísse durinho no chão. A mente prega umas peças esquisitas na gente. Eu devo ser uma pessoa muito má. Mas não morre ninguém, não agora. Meu amigo não merece isso.
Eles usam uma capinha de seda preta, chique no último. Só que eu não sei o nome do bagulho, e pergunto ao pessoal em volta de mim. Ninguém sabe, e minha ignorância se sente acompanhada. À minha volta há editores, jornalistas e até gente normal, mas ninguém sabe que coisa esquisita é aquela. Então alguém arrisca: aquilo é um solidéu.
Epa. Se não me engano solidéu é quipá de quem tem o pinto inteiro e mesmo assim não usa, mas se estão dizendo deve ser, mesmo. Solidéu. Vou me acostumar a esse nome.
Eles se referem à Academia como sodalício. Sodalício é um nome bonito, muito bonito; lembra um inglês falando sod off, mas uma expressão saxônica dessas me soaria profundamente inadequada neste momento. Sodalício significa “reunião de pessoas que vivem em comum”; me parece apenas um nome complicado, usado apenas porque esse pessoal chegado numa imortalidade gosta de falar difícil. É sinônimo de contubérnio; e então percebo que é melhor mesmo falar sodalício, porque a alternativa é muito pior.
Meu amigo faz o seu discurso. O filho da puta está emocionado. Eu não sabia que ele iria ficar tão movido por isso, mas não posso dizer que fico muito surpreso quando, em muitos momentos, ele tem que parar, com a voz embargada e os olhos marejados. Se não levo a sério a tal imortalidade porque tenho a impressão de que todo mundo ali, assim como eu, vai bater as botas um dia, levo a alegria e a emoção do sujeito. Isso me deixa feliz.
Ele começa se justificando, porque aparentemente é esquisito que um jornalista sem livros publicados seja alçado à imortalidade. Seu discurso é afável, sem palavras difíceis como o tal contubérnio e bastante firme na defesa da liberdade de imprensa. Ele fala ainda mais uma vez sobre a sua estranha condição, como homem educado que é. Mas eu não sou, e poderia dizer que sou fã do que ele escreve e não leria dois parágrafos da maioria dos acadêmicos sentados ali. Melhor milhares de bons artigos de jornal nunca publicados em livro do que um só livro ruim — pior ainda se for de poesia.
Depois é a vez de o ministro fazer o seu discurso. Foi ele que indicou o meu amigo e é ele quem faz o discurso de recepção. O sujeito anda com o moral alto, principalmente depois que acabou com as esperanças de alguns deputados do mesmo PT a que foi filiado um dia e que o indicou ao cargo que ocupa. Eu esperaria dele um discurso meio embolorado, porque a única coisa que espero de bacharéis são mesóclises, mas até que o jurista é bem leve.
E então o presidente da Academia avisa que podem colocar o capelo no novo imortal.
Capelo, merda. O grupo onde estou se agita. Capelo. Era esse o nome que todos nós, ignorantíssimos, desconhecíamos. Definitivamente, não merecemos mesmo uma glória como essa. E já que nossas esperanças de imortalidade foram para as picas porque não fazíamos idéia do que era um capelo (talvez não tão ignorantes: desconfio que uma certa jornalista perto de mim leu, em algum momento da vida, “Fernão Capelo Gaivota”), nos resta apenas esperar o coquetel que vem a seguir. Nós nos contentamos com muito pouco.
Estamos chegando ao fim e eles cantam o Hino Nacional. Olho em volta e vejo o pessoal com a mão no peito. Ah, não. Ninguém vai me pegar nessa. Isso é só um truque para me fazer tirar a mão do bolso onde está a minha carteira. O Hino Nacional que se foda, eu é que não boto a mão no peito. Eu tenho uma perfeita noção de onde estou. Minha mão vai continuar protegendo meu bolso.
A cerimônia se encerra. O auditório se levanta. E o pessoal pode ser importante, alguns deles podem ser imortais, mas não é essa característica sobre-humana que vai fazê-los rejeitar um 0800. O bom de ter tantos velhinhos em um sodalício só é que as chances de uma nova boca livre nos próximos meses são sempre grandes. Eles devem esperar — eu esperaria, pelo menos — que um dos outros velhinhos bata as botas para indicar outro imortal e garantir outro coquetel desses.
Mas talvez não, talvez eu esteja sendo injusto. A idade provecta deve tornar aqueles imortais mais conscientes de sua própria mortalidade. E a morte de qualquer deles deve servir para lembrar que a próxima pode ser a sua. Com essas coisas não se brinca. E embora eu não tenha dúvidas de que cada um prefira rezar o cadáver do outro, para que não lhe rezem o seu, ao mesmo tempo compreendo que deva haver entre eles um profundo senso de solidariedade.
É o novel acadêmico quem paga as despesas do coquetel; e ele pelo visto valoriza sua novel imortalidade, porque o que passa a ser servido é Grant’s. Certo, não é um Blue Label; mas em seu lugar eu teria comprado Teacher’s, no máximo, e o pessoal deveria se dar por feliz por não se ver obrigado a castigar um Old Eight.
De longe vejo uma antiga professora minha. Antiga nos dois sentidos. A mulher está bonita, e lembro dos tempos em que ela me dava carona para casa e um ou outro desgraçado insinuava que eu estava pegando a macróbia (mentira vil e soez, coisa de advogados. Eu só dei em cima de uma professora, e não foi essa. Só desci a esse ponto para evitar ser reprovado por faltar à segunda prova. Não adiantou, mas a infeliz também não ganhou doce. Aposto que ela precisava mais do que eu. E tudo o que aprendi é que devia haver uma maneira mais fácil de cursar direito). Como eu disse ela está bonita; mas tão esticada, tão esticada que ainda bem que tem motorista particular, porque se tivesse que chamar um táxi, quando levantasse o braço a perna levantaria também.
E mesmo gostando tanto de letras, mesmo gostando tanto de uísque, o coquetel não parece atraente o suficiente a este gigolô do beletrismo, e vou embora depois de cumprimentar alguns amigos e beber uma coca-cola. Porque aqui quase não há bundas, e as que há já tiveram, se tiveram, o seu tempo de glória. E de que valem todos os livros e todas as honras e toda a imortalidade deste mundo se não há uma bunda grande, uma bunda redonda pontilhada de celulite sobre a qual repousar a perna enquanto nos aventuramos, digamos, nas brenhas de “O Ser e o Nada”? Meu amor aos livros, de resto muito pequeno, não consegue superar coisas tão comezinhas.
Mas ir a uma posse de acadêmico, ao ingresso de um grande amigo na Grande Planície da Imortalidade, me deixou achando tudo isso muito bonitinho. Me deu vontade de ser imortal também. Não sei se os daqui, como os da ABL, têm direito a mausoléu chique; mas mesmo que não tenham, mesmo que não tenham chá das cinco eu gostaria de ser acadêmico. Eu ainda tenho uns contos escritos quando tinha uns 20 anos; vou dar um jeito de publicar um livro com aquelas coisas ruins e me preparar para adentrar a glória eterna.
Se eu conseguir fazer com que não leiam este texto, podem apostar que ainda vão ouvir falar muito de mim nos séculos que virão.
Originalmente publicado em 27 de outubro de 2005
Posso usar teu texto em minhas aulas de cerimonial? As alunas irão adorar tanto quanto eu 🙂
sei
vc gosta mesmo é de andar com a mão no bolso
cuidado com a historia de “o hino q se fo…”…
no mais, perfect como sempre…
Mérito é isso: quando li esse texto da outra vez, achei muito bom…mudei eu, mudamos nós…e ele continua ótimo…você – com certeza! –
Feliz dia dos pais!!!
Uma bunda grande só pra apoiar a perna? Que subaproveitamento… Talvez seja melhor ficar a sós com O Ser e o Nada.