A névoa cinza-azulada da vingança

Não entendo como há tanta gente que insiste em ser desagradável, gratuitamente.

Eu fumo. Fumo porque a fumaça é gasosa, porque se fosse líquida seria coca-cola e eu beberia. Fumo muito. Mas procuro respeitar os não fumantes. Isso quer dizer nunca fumar onde não é permitido e evitar fumar em lugares fechados. É a única forma de chegarmos a uma convivência sem muitos sobressaltos.

Ao mesmo tempo espero que respeitem os meus direitos, apesar da propaganda maciça que busca nos tornar cidadãos de segunda classe. Se fumar não é proibido — ainda — neste país, eu tenho o direito de fumar onde não é interditado. É simples assim, e é impressionante como os zelotes anti-tabagistas se dispõem alegremente a passar por cima de um conceito tão simples de liberdade em nome de sua própria paranóia.

Domingo, em Maceió. Eu tinha acabado de tomar o café da manhã numa pousadinha e estava lá fora com a Mônica, fumando. Aparentemente eu poderia fumar no hall, mas por que incomodar desnecessariamente os não fumantes? Lá fora era mais sensato e respeitoso.

Eu estava de costas para a entrada; foi a Mônica quem viu a velha primeiro. Ela chegou na porta, nos viu fumando e fez o gesto de quem abana o ar à sua frente, de quem afasta a fedentina dos seu nariz delicado — embora o rosto da velha não tivesse nada de delicado, apenas ventas largas e rugas crestadas de sol que devem ter vindo não da idade, mas do azedume do seu espírito. Ela ainda não tinha sentido o cheiro de fumaça; mas o seu espírito de porco, a sua chatice de velha ranheta precisava se manifestar. Ela viu alguém fumando e, com a certeza estúpida que a idade provecta dá a algumas criaturas, resolveu manifestar o seu desagrado — essas coisas que quem não está satisfeito com a vida que leva faz ao ver outras pessoas felizes.

Então ela passou por nós abanando o ar, carregando uma sacola para um táxi estacionado em frente. Voltou do táxi fazendo o mesmo gesto, a mesma cara de fedor, mas agora soprando o ar com força pelas narinas, mais ou menos como faz um cavalo cansado — e aquela égua devia mesmo estar cansada da vida ruim que deve levar.

A velha desgraçada queria se fazer notar, estava dando o recado que achava necessário. Eu não entendi recado nenhum, sou meio estúpido para essas coisas, mas fiquei pensando que ela tinha cara de peidona — parecia ser daquelas velhas que passam as tardes de domingo sentadas numa cadeira de balanço assistindo ao Sílvio Santos e soltando flatos em tons e sons diferentes até a hora de dormir, indiferente ao som e ao mau cheiro. Era essa velha que fazia questão de insultar dois fumantes pacatos que se tinham recolhido para poder fumar em paz seus cigarros.

“Mônica, me avise quando ela estiver voltando.”

Não demorou muito. Daí a pouco ela passou de novo, as duas mãos ocupadas com pacotes — talvez renda de bilros, talvez artesanato alagoano, talvez remédios para a sua artrite, quem sabe até receitas de algum charlatão para curar os seus maus bofes.

Enchi os pulmões com a maior quantidade de fumaça que pude armazenar.

Esperei os passos se aproximarem.

E então, com a sincronia perfeita que só se vê em boas equipes de nado sincronizado, soltei em sua direção a maior baforada que já dei em todas as minhas décadas como fumante. Densa, concentrada — o tipo que se pode soltar abrindo bem a glote. E a velha atravessou galhardamente a belíssima nuvem de fumaça cinza-azulada, sem poder dar tapas no ar porque suas mãos estavam ocupadas, e fez uma expressão de raiva e desespero, e começou a tossir, e eu a acompanhei com os olhos até o táxi, onde ela entrou ainda tossindo.

E nesse instante eu me senti bem e me senti em paz, e você precisava ter visto o meu sorriso, e se fosse noite eu teria dormido com a consciência de que a justiça tinha sido feita, teria dormido o sono das crianças tranqüilas.

Talvez a velha esteja tossindo ainda hoje, e esse pensamento, embora improvável, me faz sentir melhor.

Republicado em 05 de outubro de 2010

25 thoughts on “A névoa cinza-azulada da vingança

  1. Se desse pra emoldurar este momento, eu certamente compraria uma cópia. Senti-me vingado.

  2. Rafael:

    Nesta eu estou com você. Eu não fumo, mas detesto essa palhaçada anti-tabagista e detesto ainda mais pessoas como essa velha que você cita. Tipo de gente bovina guiada pela propaganda. Gás carbônico faz muito mal e não vejo propaganda anti-carro. Esse negocio de ficar com frescurinha por causa de fumaça de cigarro é coisa de viado ou frígida; ou idiotas. Como já disse acima, eu não fumo, mas se fumasse não pararia nunca, principalmente por causa dessa propaganda idiota anti-fumo. Eu sinto muita falta é de propaganda de cigarro, as mais bem feitas até hoje na TV brasileira; eu adorava, principalmente as do Malrboro.
    Como dizia uma inscrição numa camiseta num baile de carnaval: na frente da camiseta “O MINISTÉRIO DA SAÚDE INFORMA: FUMAR FAZ MAL A SAÚDE” e atrás da camiseta vinha escrito “O MINISTÉRIO QUE SE FODA”
    .

  3. não sei o que detesto mais: patrulha ou velhas ranhetas. ter estragado o dia de alguém que vive tentando estragar o dia dos outros é muito, muito bem feito, e por todos nós.

  4. Bwa-hahahahahahaha!

    Simplesmente sensacional, Rafael.

    Aqui em Maceió, não tem tanto problema nos bares e restaurantes – há exceções, como quando fui a um restaurante de comida típica baiana e, bem sentado numa mesa na área de fumantes com minha esposa, um trio de turistas que estava há duas mesas de nós torceu a vista. Claro, imagino que isso aconteceu porque eu fumo cigarro de palha, daí não fato fulano e beltrano viajando na maionese achando que estou dando um tapa.

    O principal problema por estas bandas são nos fumódromos, destacando-se o do Shopping Iguatemi. O que não falta é não-fumante se metendo a dividir espaço com fumante enquanto espera a carona ou aparecer um táxi no ponto. E têm uns que se dão ao direito de reclamar.

    Espero que a visita a terrinha tenha sido bacana.

  5. Oi, Rafael. Gostei do novo visual e morri de rir com o “sobre o autor”.

    ;-)) Valeu pelo link antes e, enfim, agora retirado, porque meu blog acabou… Se bem que por ele ser “Atemporal”, depois volta. Nunca se sabe. A dona é mutável mesmo. Passei aqui pra te dizer que adoro teu blog, quando tenho tempo, sempre leio e te acompanho faz tempo.

    Sobre o post: eu não fumo, odeio o cheiro, mas sempre tive amigos, casos, amigos coloridos, amigas, namorados que fumaram.. Foi brabo. Aturei muitos colchões e cobertores com cheiro desagradável.. ;-( Fora meu cabelo que ficava com um odor horrível. Enfim, mas acho isso aí: não dá pra ser tão patrulha. Sou a favor das novas leis, e fico pensando como devem estar os franceses.. Eu que morei lá acho engraçadas as situações. Abração!

  6. Maravilha! Foda-se velha escrota! Fodam-se aos que patrulham e esquecem de cuidar da própria vida.
    Me senti vingado. E olha que sou ex-fumante! (esta tribo é outra frequentada só por escrotos, que se acham superiores pq estão livres do vício, ainda que se corroam de invej dos que apreciam a boa fumaça).
    E além disto o texto é ótimo…

  7. obrigado por fazer o que eu teria feito.

    não que eu sinta orgulho de ser fumante, mas às vezes me dá vontade de ter vivido em um mundo onde meu hábito não fosse considerado doença e as velhinhas não fizessem cara feia pra mim no meio da rua. como era fumar em, sei lá, 1986? nunca hei de saber.

    a patrulha anti-cigarro é tão irritante que a cada propaganda anti-fumo eu vou e acendo mais um, só pra contrariar.

  8. Estamos caminhando para a paranóia de sociedades chatíssimas como a sueca, por exemplo.

    Dias atrás li uma notícia horrenda, de uma dona-de-casa da Suécia que tinha sido proibida pela justiça de fumar no quintal de sua própria casa. Isso porque o vizinho (corno, broxa, azedo, patife) processou-a, dizendo que o cheiro de seu cigarro invadia os limites de sua propriedade.

    Um sujeito desse, me diga Rafael, merece viver? E o que poderia ser dito sobre a justiça sueca? Agora, a mulher só pode – se quiser – fumar dentro de casa. E com as janelas fechadas.

  9. Valeu Rafael!
    Fumei por mais de 30 anos – muito, como você! – e acho inadmissível essas posturas anti-fumo idiotas e radicais. Parei há 8 anos porque achei que devia, sinto-me bem, mas tenho falta do cigarro até hoje e isso – em hipótese alguma – pode ser motivo para que eu fique desrespeitando os outros.
    Concordo com alguém aí em cima: além da fumaça, essa velha merecia um peido daqueles bem podres! Abraços.

  10. Olha,eu odeio cheiro de cigarro…mas, a questãi é que devemos respeitar quem gosta de fumar. A escolha é de cada um…aquela historia ‘os incomodados que se mudem’

  11. Você lavou nossas almas, Rafael.
    Aliás, isso me fez lembrar uma passagem de Werther na qual ele fala sobre o compromisso de nunca estragar o humor das pessoas. Diz que é o minimo que nós deveríamos fazer. Bem, lembro de algo parecido — minha memória não é muito boa! Qualquer dia desses eu publico essa passagem com referência ao seu texto — que não deixa de ser um libelo favorável ao mesmo compromisso.

  12. Ô tadinha da veinha! Como você é mau! deixa ela abanar ué…É a pobre diversão da veinha prestes a morrer. Assim como pra você é fumar.

    Tanto tempo faz que não te leio, que tinha esquecido o quanto você era mau!

  13. Se o Serra for eleito presidente e ele fizer o mesmo que fez a aquí em São Paulo, a velha ranheta terá o direito de chamar a polícia e você (ou o dono da pousada) terão que pagar multa de mais de 500 mangos.

  14. Porra Rafael, concordo totalmente com você. Aqui em São Paulo a paranoia antitabagismo é absurda. Você acredita que já fui advertido por fumar meu cachimbo ao ar livre em um parque público? Estes patrulheiro do politicamente correto são uma desgraça.

  15. O pior é que a patrulha está fazendo estrago até na cabeça de alguns fumantes. Conheço alguns que acham legítimas todas as grosserias, caras feias e sermões que tem que passar. E sempre ficam com um papo de tentar parar. Pobres diabos…

  16. Rafael,

    Conheço seu blog já há algum tempo, mas esta é a primeira vez que comento aqui.

    Já aconteceu algo parecido comigo aqui em Osasco. Fui a um restaurante localizado num shopping daqui, na época ainda não vigorava essa lei retardada e o tal restaurante tinha espaço para fumantes e não fumantes. Eu, meu namorado e uma amiga, todos fumantes, sentamos na área de fumantes e acendemos nossos cigarros, eis que senta na mesa ao lado um casal, e o homem começou a tossir assim que eu soltei minha baforada. O infeliz ainda teve a cara de pau de reclamar com o garçon. Resultado, respondi ao garçon que não apagaria o meu cigarro, o imbecil passou para a área reservada aos não fumantes e eu pude escutá-lo tossir até o momento em que pagamos nossa conta e fomos embora…

    eheheh

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