Há meses, muitos meses que não vou ao cinema. Mas não é isso que me dói, é o fato de que não sinto falta, de que passo pelos cartazes dos filmes em exibição e não sinto vontade de entrar para assistir nada, eu me dou ao respeito e não vou ver “Nosso Lar” e não vou ver a última bobagem que Hollywood fez.
Talvez seja a idade, talvez seja o fato de que os filmes estão tão ruins, talvez seja o fato de que as redes de cinema homogeneizaram tudo cá no meu canto.
Talvez no fundo eu seja um nostálgico. Porque se em geral me vejo embasbacado pelas belezuras que os novos tempos trazem, se acho graça nas internets e nos celulares, nos twitters e nos blogs, com algumas coisas fica uma sensação de tristeza pelo que se perdeu. E não é apenas um tipo de vazio fraquinho ao ver que uma parte do meu passado se foi; é a sensação de que algo importante, e melhor, acabou para sempre.
Senti isso de novo ao entrar no prédio do antigo Cine Palace.
Treze anos atrás o último cinema sério de rua de Aracaju fechou. O Palace virou um bingo, menos mal; há até uma certa poesia nisso, um bingo também é um lugar de sonhos — mas depois o bingo também fechou, e agora estão terminando as obras que vão transformar o antigo cinema, que formou gerações de cinéfilos em seus 40 anos de vida, em uma loja popular.
O Palace tinha uma bela escadaria para o mezanino, mas ela foi demolida apesar de algumas pessoas terem tentado preservá-la. Agora o cinema não é mais nada, é só um vão enorme feito para acomodar mostruários e araras onde senhoras pobres comprarão roupas para seus filhos.
Uma vida atrás o Palace tinha bancos que foram confortáveis, mas já há 20 anos apenas rangiam — hoje, coitados, devem estar acomodando as bundas pias de evangélicos orando por um Deus que não os ouve. Tinha, acho que já disse, um mezanino onde as pessoas iam namorar ouvindo o barulho dos rolos de filme no projetor — eventualmente também os barulhos de tapas se uma mão ousava mais do que o permitido, ou muxoxos de um namorado que sabia que poderia conseguir mais do que já tinha. No hall de entrada, além de espaço para dezenas de cartazes, havia uma bombonière e um bebedouro, e uns sofás para quem chegava cedo demais e não queria entrar com o filme já começado, ou que esperava a namorada chegar, ela que provavelmente viria a pé da rua Santa Luzia ou da rua Campos.
Não é exatamente que eu sinta pena de quem nunca foi a um cinema de rua, porque essa arrogância de gerações passadas é falsa e injusta, é coisa de velho burro que não entende as novas maravilhas. Mas eu preciso lembrar que um cinema de rua como o Cine Palace era um local e um evento muito mais imponente, muito mais significativo, muito mais rico do que essas salas de exibição que hoje se amontoam em shopping centers.
Cinema de shopping é só mais uma loja, um elemento a mais em um mix comercial que tem basicamente o mesmo peso de uma Casas Bahia ou de um Ponto Frio, e pode ser substituído fácil por outra coisa. Mas um cinema de rua era mais que isso. Era, antes de mais nada, um marco urbano da cidade. Era um dos referenciais da identidade de um local, era motivo de orgulho de seus donos — que normalmente gostavam de cinema, não eram apenas executivos preocupados somente com o dinheiro que entra.
Agora eu penso em um exemplo simples da diferença entre um cinema e uma “sala de exibição”: hoje só se faz um tipo de cartaz para um filme. Mas antigamente, além do cartaz principal, havia ainda cartazetes que traziam cenas do filme e se espalhavam pela entrada e pelo lado de fora do cinema — eles tinham um nome específico, eu só não lembro qual era.
Talvez seja sinal de velhice inadiável e precoce, mas me sinto bem por saber que vivi um tempo em que as pessoas ainda fumavam nos cinemas; em que as bombonières no saguão eram um acessório, não o principal negócio do exibidor. Era um tempo em que as pessoas saíam para ver um filme, talvez mais do que ir ao cinema. E nessa pequena escolha de palavras há um mundo inteiro de diferenças.
Seria pretensão demais querer que a queda de um cinema fosse o início da decadência de um local; na verdade é o contrário, o fim deles é indício de que a vaca já foi para o brejo, e que o centro da cidade perdeu uma de suas funções sociais e perdeu o carinho e a consideração da elite de um lugar. O fim do cinema de rua é o anúncio de tempos diferentes, em que as lojas chiques serão substituídas por magazines populares, a butique onde a mulher do governador comprava agora vai dar lugar a uma Marisa ou a uma Binoca – ainda existe Binoca? –, as lojas de sapatos vão empregar arremedos de locutores que ficarão na entrada, microfone na mão e amplificador Wattson ao lado, anunciando as promoções e chamando os passantes para conferi-las. Quer dizer que à noite só restarão mendigos, prostitutas e ladrões.
Ô Amaral, meu poeta, você não lembra dos bons tempos do Palace? Eu penso em você quando imagino um menino véio amarelo do buchão chegando a Aracaju nos idos dos 50 ou 60 e vendo o mar e o cinema, porque eu sei que você pode fazer poesia disso — mesmo que não tenha tido esses alumbramentos todos. Eu não posso, infelizmente; você sabe que o meu negócio é sair no tapa com a vagaba da Musa, porque eu não gosto de mulher que me olha com desdém. Tudo o que posso é sentir uma tristeza imensa cada vez que um cinema que eu conheci é mutilado e humilhado, como o cine Palace agora.
e pensar que os centros de cidade, antigamente, eram mais que centros comerciais: eram centros de convivência. no caso de recife, que eu conheço melhor, as pessoas da alta sociedade tinham o costume de passear no parque 13 de maio durante a década de 20 e 30, algo impensável hoje em dia. e nos anos 50, as pessoas abriam as portas de seus carros em uma avenida boa viagem praticamente deserta, para ouvir e dançar no calçadão ao som de rádios monofônicos.
vida besta, essa moderna. tem suas vantagens e talvez eu esteja ficando velho, como você disse, mas é besta.
O rio, onde moro, nunca teve o centro da cidade como converg~encia para atividades sociais. Tinha nos anos 50 e60, grandes bares (quase todos uisquerias) que funcionavam mais para um drinque depois do batente e início dos trabalhos que se estendiam depois para os bairros residenciais.
Vilarinho, bico doce, Gouveia, grande ponto, juca’s bar são alguns deles…. (há um livro do paulo mendes campos, ‘Os bares morrem às quartas-feiras’, onde ele desfia o rosário inteiro, com grande devoção e conhecimento de causa).Peguei alguns ainda vivos no final dos sessenta.
Mundo à parte eram os botecos da Lapa de então, em gloriosa decadência, com seus sobrados, putas e malandros em final de carreira, nada dessa mixórdia feérica frequentada por mauricinhos, emos e ‘tribos’ afins.
Ia começar a falar dos antigos cinemas, que afinal é o tema do post, mas depois dessas recordações me bateu uma sede de anteontem…
fica pra próxima…
O Cine Belas Artes em São Paulo fechou tbm.
O dono (herdeiros do antigo dono) pediu o prédio alegando que cinema é um empreendimento decadente eprefere alugar para outro tipo de empreendimento comercial.
sei lá
os cartazes dos filmes tb estão sumindo, já que hj em dia eles passam imagens em telas LCD.
mas sempre haverá espaço pra nostalgia, não acredito que esses cinemas vão desaparecer por completo.
Em Londres isso não acontece … mas, também, Londres não tem shopping …
Por gentileza em que ano fechou o bingo Pálace?
Não moro em Aju, mas qdo estive aí fui algumas vezes a esse bingo: simples, pessoas simples, mas muito educadas. Pena demolirem um prédio, que reformado ficaria lindo e eu amei aquela escada.
Cinema é cultura…por que não reabriram o cinema? não interessa cultura……