Eu devia ter comentado na época, mas achei tão insano que era melhor não falar nada. Durante a campanha eleitoral, no entanto, o tema voltou à baila. Dilma tocou no assunto e a candidata do PSOL ao governo de Sergipe, Avilete Cruz, também defendeu a proposta de implantar uma sala de cinema em cada cidade do interior que tenha entre 20 e 100 mil habitantes (e outras mais importantes que fizeram o PSOL pedir desculpas à sociedade sergipana pela sua candidatura e tornaram a senhora, professora bem intencionada mas absolutamente despreparada, motivo de piada entre seus conterrâneos). O assunto ainda é válido. Apesar de insignificante, porque é o tipo de proposta que nunca, nunca sai do discurso.
O caso é simples: eles podiam muito bem anunciar que vão criar uma escola de datilografia em cada município, um realejo com um macaquinho dançante em cada esquina ou uma fábrica de escarradeiras para atender o pujante mercado nacional. Daria no mesmo.
Não é apenas que essa ideia seja absolutamente impraticável, como comentou o Inácio Araújo. O problema é que a defesa desse tipo de coisa representa uma visão atrasada do valor do cinema, como arte e como equipamento urbano, e principalmente do papel das políticas públicas de cultura.
Já faz algum tempo que os cinemas perderam sua função original, por mais que isso doa em saudosistas como eu. Os cinemas de rua estão acabando porque as pessoas simplesmente não vão mais a eles, na maioria dos casos. Se os multiplexes de shopping sobrevivem, não é porque são o único lugar onde se pode ver um filme, ou mesmo o lugar onde se pode vê-lo numa tela grande; mas pela experiência social que oferecem. Ir ao cinema hoje é um passatempo caro, que vale não pela apreciação da arte cinematográfica, mas por equivaler, de certa forma, à ida a um restaurante mais sofisticado ou uma viagem a uma cidade vizinha.
A importância dada ao cinema, ao edifício em si, acaba sendo supervalorizada e deturpada, quando se faz a equação entre o mundo desejável e o possível. E mascara uma incompreensão absoluta do papel da sétima arte, da política nacional de cultura e do mundo em que vivemos. Ao Ministério da Cultura e à intelligentsia nacional o que deveria importar não é se vai haver ou não cinemas em cada grotão deste país, mas se as pessoas terão ou não acesso à informação cultural.
Porque não é o suporte físico que faz o valor de uma obra: é o que ela conta e como ela conta. Mais nada. Telas cada vez maiores com resoluções que aos poucos vão se aproximando do ideal já fazem dos aparelhos de TV um suporte tecnológico melhor que os projetores de que, por exemplo, Charles Chaplin ou D. W. Griffitth dispunham para exibir seus filmes. Oferecem uma experiência suficientemente adequada para a apreciação de uma obra cinematográfica — pensando bem, ainda têm a vantagem adicional de não trazer como brinde idiotas falando alto atrás de você, ou o barulho onipresente de pipoca sendo mastigada ou sacos plásticos sendo abertos. É uma situação melhor do que a vivida pela a maior parte dos cinéfilos de hoje, que viram os grandes filmes que precisavam ver em telas pequenas — na TV aberta ou por assinatura, em videocassetes ou DVDs. Não precisaram — e nem podiam, na verdade — ir a um cinema para ter acesso ao conteúdo de que precisavam.
Se o governo quer levar o cinema ao povo, antes de anunciar a ideia mirabolante de construir um cinema em cada município — o que não aconteceu sequer quando o cinema era o único lugar onde se poderia ver filmes, e o preço dos ingressos era muito mais acessível –, deveria em primeiro lugar fortalecer as TVs públicas e torná-las mais atrativas aos telespectadores. Devia levar banda larga de internet para mais pessoas. Deveria lembrar que, já que paga para que brasileiros façam filmes, poderia facilitar a distribuição e o compartilhamento desse conteúdo pela rede — ou seja, poderia definir e exigir as contrapartidas sociais que cineastas como Cacá Diegues denunciaram com horror que julgo genuíno. O futuro está aqui, é inexorável, e acontece independente de políticas culturais de governo equivocadas.
A valorização do cinema como experiência social compartilhada também deveria estar fora da alçada do Estado. Porque há outras maneiras, mais baratas e também necessárias, de valorizar a cultura e oferecer lazer ao povo. Outras formas de arte mais baratas e também relevantes podem ser incentivadas, e deveriam ser objeto de mais atenção do governo, mesmo que demagógica.
O exemplo mais óbvio é o teatro. Em vez de criar um cinema em cada cidade, mensagem que em sua utopia enche de alegria os corações de Luiz Carlos Barreto e da Globo Filmes, o governo poderia tentar criar um teatro em cada município, e descobrir formas de incentivar a formação de grupos locais. É até mais justificável: além de muito mais barato, o teatro é uma experiência artística irrepetível fora do palco, e justifica esse ardor estatizante. Tudo bem, a maior parte da produção será intragável — mas isso também vale para o cinema. Além disso, por mais importante que seja o cinema como elemento da formação cultural do povo, há um limite de bom senso a que se deve chegar. Por exemplo, por que é tão importante que alguém em Serra Talhada, Pernambuco, veja um filme sobre o submundo carioca ou as angústias existenciais de um morador do Morumbi? Por que não seria mais importante que ela pudesse criar seus próprios espetáculos de teatro, em que a sua sociedade se enxergasse e que pudessem ser compartilhados com outras regiões do país?
A ênfase no fomento ao cinema, quando chega a esse ponto, reflete muito mais as aspirações de determinado segmento social do que as necessidades culturais do povo brasileiro. A função do Estado não deve ser, intrinsecamente, garantir a produção de cinema. É garantir que o povo tenha acesso à produção brasileira de cinema. O financiamento da produção, nos termos e circunstâncias atuais, acaba sendo uma consequência necessária. É preciso ter isso em vista. Porque quando a razão das coisas é invertida o risco é que se chegue ao absurdo e ao total desvirtuamento da função de um Ministério da Cultura.
Além do que, o cinema já foi democratizado. Um aparelho de DVD custa 100 reais. Um DVD pirata, 2 ou 3. Não é nem a classe C. A classe D já vê cinema em suas casas.
Sim, e quando começarem a produzir direto pro camelô, estilo Nollywood, sai de baixo.
Aqui no RS, agora com o governo TARSO (PT), foi reativado o RODACINE – cinema volante de rua, que passa os dias rodando pelo estado e apresentando filmes brasileiros (lançamentos) em praças públicas.
“Ao longo de suas dez edições, o projeto já realizou mais de 1.115 exibições, reuniu aproximadamente 464.566 espectadores – com uma média de público de 416 pessoas por sessão, e contemplou cerca de 714 municípios. Além disso, foram exibidos mais de 30 filmes nacionais, entre eles: Bendito Fruto, Concerto Campestre, Netto Perde sua Alma, Houve Uma Vez Dois Verões, O Homem Que Copiava, Cavaleiro Jorge, Natal do Burrinho, Tapete Vermelho. Dentre as diversas localidades já beneficiadas estão Três Palmeiras, Missões, Palmitinho, Ilha da Pintada, Igrejinha, Uruguaiana, Nova Roma do Sul, Marau, Esteio, Rodeio Bonito. ”
http://filmesdejunho.blogspot.com/2011/02/rodacine-iecine-retoma-parceria-com.html