E aí, Sergio Leo, o mundo acabou?

Ontem os senadores brasileiros aprovaram em primeiro turno uma Proposta de Emenda Constitucional que traz dos mortos a exigência de diploma de comunicação social para o exercício do jornalismo, derrubada há pouco mais de dois anos num daqueles raros momentos de sanidade do STF.

Em tempos d’antanho este blog defendeu o fim da exigência do diploma. Porque jornalismo não é profissão que precise oferecer uma defesa à sociedade na forma de diploma individual; porque a lei era uma intromissão desnecessária do Estado no que essencialmente é a sociedade falando consigo própria; e pelas próprias origens da nefanda, uma lei de ditadura concebida para controlar jornalistas.

Mas já há muito tempo, uns 20 anos pelo menos, essa discussão era desnecessária e anacrônica. Sua queda ou manutenção, na prática, significava coisa nenhuma. Novos jornalistas continuariam a ser necessariamente recrutados nos bancos das faculdades, simplesmente porque a oferta é grande demais e, de modo geral, recém-formados são mais qualificados que focas vindos de outras áreas. Não consta haver muita gente vindo de fora querendo ser jornalista. E há tantos estudantes implorando por uma primeira chance que a seleção já não é feita entre os que têm e os que não têm diploma, mas entre aqueles nas multidões de recém-formados que têm algum talento e estão dispostos a trabalhar por muito pouco em nome de uma primeira oportunidade.

Não foi a exigência do diploma que criou essa situação. Foi basicamente a evolução natural do mercado. Este é cada vez mais um mundo de especialistas superficiais, cujas origens estão nas crianças que, por várias razões, são obrigadas a fazer escolhas de vida fundamentais aos 17 anos de idade. É isso que gera o excedente de mão de obra que afasta os eventuais não-jornalistas das redações. E esse fenômeno que se vê no jornalismo também se repete em outras profissões, mesmo as que não exigem diploma, como a publicidade: é nas faculdades que são recrutados os estagiários de criação, mídia ou qualquer coisa assim, porque por pior que sejam — e, também generalizando, essa meninada parece vir cada vez pior, cada vez mais ignorante —, ainda assim têm uma formação específica melhor do que quem nunca fez um layout em toda a vida. Ou seja, não é necessário diploma para garantir esse tipo de evolução socioeconômica. O mercado já se encarregou disso faz um certo tempo.

Mas para o Sergio Leo, e tantos outros jornalistas, a queda do diploma parecia significar o maior golpe que a profissão poderia sofrer. Em seu momento mais empolgado, o Sergio invocou neste blog a maldade intrínseca dos patrões, que seriam a favor da queda do diploma para ter à sua disposição mão de obra farta e barata — como se “mão de obra farta e barata” não fosse quase sinônimo de “recém-formado”.

Pelos bons argumentos, e pelo fato de ser um excelente jornalista, o Sergio merecia ser ouvido. Poucas pessoas escrevem tão bem sobre relações internacionais, com tanta clareza. Pessoalmente acho que isso se deve ao seu imenso talento pessoal, e não exatamente à sua formação específica em jornalismo; mas não é isso que está em questão aqui. De qualquer forma, é justamente por esse respeito que pergunto: e aí, Sergio Leo? Dois anos depois, o mundo acabou? As redações foram infestadas por padeiros ávidos por assinar seu nome em uma matéria com chamada de capa? Estagiários no seu e nos outros grandes jornais do país — e nos pequenos, também — passaram a ser recrutados nas faculdades de matemática? Os donos de jornal utilizaram os milhões de pedreiros, garis, advogados, médicos e guardas de trânsito que agora podem ser jornalistas para chantagear a classe por salários mais baixos, quase de fome?

Mais que isso: o caos reinante nas redações justifica a volta dessa exigência estranha que nos levaria de volta à companhia de bastiões da imprensa de qualidade como Congo, Costa do Marfim e Honduras — embora agora de maneira democrática, como deve ser?

***

Nos dias seguintes à derrubada do diploma, eu e muitos outros servimos como destinatários involuntários de grandes desabafos de jornalistas indignados com o que consideravam ataque à sua profissão.

Jornalistas de todo o país se manifestaram e apontaram o início do apocalipse, o fim da profissão, o desrespeito absoluto à catiguria, essas coisas. Jornalistas se revoltaram ao serem, como quiseram fazer parecer, comparados a cozinheiros — por sinal um episódio típico do modus operandi de certo segmento da imprensa brasileira, não apenas pelo elitismo e bacharelismo que parece fazê-los pensar que uma profissão é mais importante do que outra, mas pela má-fé demonstrada ao destacar uma frase de seu contexto e fazer o mais baixo sensacionalismo a partir dela.

No final das contas, a mobilização vazia de jornalistas no pós-queda acabou sendo uma prova de miopia e de incapacidade de ver o mundo como ele é — além, é claro, de prova da incapacidade da categoria de se organizar politicamente. E esse é o tipo de coisa que se pode cobrar deles mais de dois anos depois, especialmente às vésperas de uma volta ao antigo status quo.

Mas a pergunta a ser feita agora, na minha opinião, deveria ser outra: como alguém que se propõe a mostrar e explicar para mim o mundo em que vivo pode-se arrogar esse direito se não consegue sequer compreender fatos que lhe afetam diretamente? Com que moral um jornalista vai tentar interpretar um fato para mim se ele mesmo não consegue entender corretamente os sinais que o mundo lhe dá a cada novo dia? Ou, se entende — algo do que duvido, a julgar pelas manifestações vistas há dois anos —, não tem a honestidade necessária para me dizer como as coisas realmente são?

Talvez isso explique o nível geral da imprensa deste país. Não foram jornalistas sem nível universitário que perpetraram a cobertura desmoralizante das eleições do ano passado — o que por si só deveria desqualificar qualquer tentativa de justificativa do diploma como garantia ética, erro que tantos defensores da obrigatoriedade cometem. Agora, um ano depois, cabe também perguntar quem fez mais mal à profissão: Gilmar Mendes e sua alusão a padeiros ou o papel indigno que os principais jornais deste país desempenharam na cobertura da última campanha presidencial?

Eu tenho uma resposta para isso, e acho que ela está certa. No entanto, preferia estar errado. Preferia concordar com tantos jornalistas e achar que a queda do diploma iria destruir a profissão. Porque só a incompetência de gente aboletada na desculpa da falta de preparo teórico poderia explicar o que está acontecendo com a imprensa deste país.

6 thoughts on “E aí, Sergio Leo, o mundo acabou?

  1. Nesses momentos de passionalidade parece tomar conta um corporativismo irracional; para não desacreditar completamente do trabalho de um SLeo acabo por julgar como caso de insanidade temporária, e vida que segue.

    Agora, emendar a Constituição para desafiar o STF e ‘proteger’ uma categoria que não precisa desse tipo de proteção (eu me preocuparia mais com os assassinatos frequentes) é de uma canalhice sem tamanho.

  2. Meu querido, já antes do fim da exigência de formação específica para jornalista (o diploma é só documento a atestar conclusão do curso) alguns jornais contratavam gente sem curso de Comunicação. A defesa que você faz, a favor do liberou-geral na contratação de gente, já é atendida, na marra, em muito jornal por aí.

    Nunca acreditei que seria o fim do mundo a extinção da exigência de que profissionais da midia fossem obriagdos a passar um tempo na faculdade estudando as especificidades da profissão, e aprendendo que jornalismo de qualidade não é necessariamente o que as redações atuais fazem e ensinam aos focas como o estado da arte da prática jornalística.

    Entendo a irritação de tanta gente inteligente e de bom texto com a cobrança de que passe um tempo estudando as implicações e pressupostos teóricos e políticos do jornalismo, para escrever em jornal como repórter (como colaborador, como opinião, nunca o curso foi exigido; até o Nélson Mota pode falar de política). Tem uma raiz liberal essa queixa: onde já se viu o Estado determinar o que devo aprender para exercer uma profissão para a qual me julgo tão capacitado (ou julgo conhecidos meus tão capazes)?

    Mas cansei da discussão, sabe por que? Já perdi. Um número grande de jornalistas concorda contigo. Os donos de jornal concordam contigo. E eu ouço sempre o argumento “decisivo”: com essas escolas de comunicação, quem aprende alguma coisa que não aprenderia melhor em outro lugar?

    Sabe Rafa, e é isso mesmo: as escolas de jornalismo são ruins. (ainda que a faculdade de jornalismo da UnB tenha tirado 5 , nota máxima, no teste do MEC, só para dar um exemplo). São ruins porque não interessa ao establishment formar especialistas conhecedores em jornalismo com visão crítica. Porque há um pacto de mediocridade nas universidades. Porque os estudantes não se dão conta (17 anos é fogo) de que faculdade não é ensino médio, e o conhecimento é algo conquistado, não tatuado no cérebro por professores paternalistas.

    Porque alguns teóricos que nunca pisaram nas redações entraram nessas escolas e acham que fazem um bom trabalho ensinando os estudantes de jornalismo que jornal é só lugar de gente cínica e golpista. Porque pagam mal, e são poucos (embora existam, e façam a diferença) os bons jornalistas que decidem deixar a redação e ir à academia compartilhar experiência com a garotada e formar jornalistas melhores.

    Mas tem muita gente boa lutando nessas escolas para mudar esse quadro. E continuo achando que a única maneira de enfrentar todas essas mazelas que você e muita gente apontam no jornalismo brasileiro (que não é o americano, o francês ou o congolês) é pegando essa garotada idealista que quer trabalhar na imprensa e fazendo com que ela passe algum tempo convivendo com professores capazes de fazer uma crítica séria e construtiva do que se pratica no país, avaliar o que se pode fazer e apontar como se pode fazer, dando a essa turma a possibildiade de experimentar em um ambiente não comercial, universitário, a produção jornalística. Obrigatoriamente. Só assim as redações serão invadidas por garotos com uma ideia de como fazer jornalismo que não é a ~que lhe tentarão impingir com o argumento da experiência, por chefes e colegas tarimbados (e muitas vezes viciados).

    Se as escolas que temos não são as que defendo, não é extinguindo a exigência de formação profissional específica para o jornalista que vamos mudá-las. Temo que o fim da exigência só estimule a transformação das que existem em cursos profissionalizantes, por gente que acha que importante mesmo é saber usar uma mesa de edição.

    (Se algum dia eu tiver um jornal, te chamo como colaborador. Colunista não tem exigência de diploma, não é repórter, e você é um ótimo polemista).

  3. ô saudade queu tava disso aqui ein ….. (viadão .. rs)
    mas no meu ver o mal e social, não profissional
    mas não faltam exemplos de adevos, médicos e magistrados (só para ficar nos exmplos mais ilustrutivos) que desempenham qualquer outra coisa na vida, e que não se pode chamar de advocadia, medicina ou (administração de) justiça

  4. Rafa,
    Morri de rir com “as alegrias que o google me dá”, perdi a hora lendo os outros posts e fiquei puto por você não ter avisado que voltou. Mas já passou.

    Jornalista tem que ter diploma, sim senhor. Ou não. Não importa, desde que escreva bem, com a maior imparcialidade possível sobre argumentos pesquisados e checados.
    O que importa é que vou voltar a frequentar isso aqui.
    =)

  5. Pô, fiquei onze meses sem ler esta zorra do Galvão porque disse que já era e eu acreditei. Descobri há pouco que voltou e já dei boas gargalhadas. “AS alegrias do Google” imperdíveis. Em frente.

  6. “Obrigatoriamente. Só assim as redações serão invadidas por garotos com uma ideia de como fazer jornalismo que não é a que lhe tentarão impingir com o argumento da experiência, por chefes e colegas tarimbados (e muitas vezes viciados).”
    Em quarenta anos, estes jovens ainda não apareceram, não na escala e com a previsibilidade necessárias para justificar uma lei, um sistema. Por definição, se tivessem aparecido, não teríamos o jornalismo que temos. Mas quem sabe daqui a quarenta anos… Parece a velhinha que estava sendo bolinada no ônibus e foi dura com o infrator: se o senhor não parar em duas horas, chamarei a polícia! Aliás, por que apareceriam os tais jovens e onde eles seriam formados se as faculdades de comunicação-más ou péssimas- têm um cartório e , façam o que fizerem, são a porta estreita (nem tão estreita em certos casos, convenhamos) pela qual o infeliz tem que passar se quiser escrever em papel de embrulhar peixes? Há profissionais conscientes nelas, mas eles são uma exceção impotente, como pode ver qualquer pessoa que abra um jornal.
    Aliás, que os figurões da redação-eles próprios egressos das escolinhas de comunicação, exceto uns poucos septuagenários que logo serão fisicamente incapazes de ameaçar a castidade dos foquinhas- sejam a ameaça corruptora a ser combatida pela obrigatoriedade do diploma já é uma denúncia eloquente do fracasso grotesco do cartório em garantir uma qualidade mínima de formação. Dica: estes jornalistas viciados são justamente os ex-jovens formados pela obrigatoriedade do diploma.
    “Entendo a irritação de tanta gente inteligente e de bom texto com a cobrança de que passe um tempo estudando as implicações e pressupostos teóricos e políticos do jornalismo, para escrever em jornal como repórter ”
    Ou seja, quem é contra a obrigatoridade do diploma está necessariamente tentando deslocar uma vaguinha na redação. Por outro lado, os jornalistas que a defendem (a obrigatoriedade, não a redação) só querem o bem do Brasil: se no processo de salvá-lo estão defendendo também os empregos dos membros menos capazes da corporação de ofício, que remédio- não se salva um país sem sacrifícios, bolas!

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