A cada dois anos a cena se repete. Basta que se aproximem as eleições para que o marketing político se torne assunto recorrente nos jornais, especialmente nas colunas de opinião. E então eles aparecem.
De um lado vem um bocado de gente falando com aparente propriedade sobre o tema, sempre dando a receita infalível para ganhar eleições e reforçando o mito deletério do marketing como panaceia universal para eleger até sabonete. São geralmente platitudes, as mais óbvias possíveis. “É preciso usar as redes sociais”, “é preciso cuidar da imagem”, “contrate um profissional”. São na verdade pedidos de emprego disfarçados, mas infelizmente bastante simplórios. Não entendem a natureza da besta nem o seu mecanismo.
Do outro vêm os jornalistas que não sabem do que estão falando.
André Singer é um sujeito normalmente ponderado e que sabe o que diz. Mas em um artigo publicado na Folha de S. Paulo, no início desta semana, faz algumas considerações tão bobas sobre marketing político que impressionam pelo nível de desinformação e pela miopia nas avaliações e prognósticos apresentados.
Singer começa com o pé errado ao dizer que este é o momento em que os partidos definem os planos de campanha. Passa a impressão de estar vivendo em 2014 e de não ter entendido ainda que a campanha já começou. Não se trata de figura de linguagem: a campanha na mídia, como as pessoas a entendem, já começou.
O que mudou foi a mídia.
Na história do marketing político há algumas datas que representam marcos importantes. 1989, por exemplo, quando Lula e Collor demonstraram o poder da televisão. 1994, pelas circunstâncias atípicas (com medo de que Lula repetisse o sucesso de 1989, Fernando Henrique Cardoso e Itamar Franco limitaram as possibilidades de uso do horário eleitoral) mas que deixaram lições importantes. Ou 2002, quando a vitória do modelo mais sólido utilizado por Duda Mendonça (ali distante da sua fórmula frouxa do “Fulano fez, did it, lo hizo”) sobre a pirotecnia publicitária de Nizan Guanaes mostraram que o marketing político tinha alcançado a sua maturidade estrutural e formal.
2016 é outro desses anos fundamentais. Talvez o mais importante de todos, porque a mudança que está acontecendo neste exato momento vai muito além do uso da TV e de circunstâncias legais. É uma mudança estrutural, como poucas antes dela, e apresenta definitivamente um mundo que vinha se anunciando já há uns bons 15 anos. Talvez seja mais difícil percebê-la porque a conjuntura nacional — a Lava Jato, a crise econômica e, em menor medida, a proibição de contribuições empresariais, que se junta orgulhosamente ao panteão em que já estão a proibição do aborto e a criminalização do uso de drogas — deve fazer desta uma eleição singular. Mas o futuro está aqui, bem claro.
Esse é o principal problema do artigo do Singer: ele não entendeu o alcance da minirreforma eleitoral do ano passado e não consegue ver o que está se passando diante do seu nariz; compreende ainda menos o futuro que se apresenta. É impossível acertar dessa forma — assim como ao marketing é impossível eleger um candidato vazio.
A avaliação que ele faz é a de que, como o tempo de campanha na TV e no rádio diminuiu, diminuiu também a importância da comunicação. O problema é que está acontecendo justamente o contrário.
A correção menos relevante a ser feita a esse amontoado de equívocos é o de que essa diminuição tão apregoada é ilusória. Verdade que o tempo dos programas de TV e rádio diminuiu; mas se até 2014 os candidatos majoritários colocavam no ar três programas por semana, agora irão ao ar todos os dias. Além disso, o tempo dedicado às inserções de 30 e 60 segundos dentro da programação normal das emissoras aumentou consideravelmente. No fim das contas, se produziam 2 mil minutos de vídeo a cada campanha. Agora serão 3 mil. Sem falar nas centenas de municípios sem emissoras de rádio ou TV que poderão fazer suas campanhas na internet. Criatividade e planejamento estratégico vão ser mais importantes do que nunca.
Mas essa é só uma mudança como tantas que acontecem a cada ano eleitoral, e que são modificadas novamente nas eleições seguintes. Não é sequer mais importante que o fim da Lei Falcão, ou o tal cerceamento promovido há 22 anos. A verdadeira revolução, que terá consequências importantes e irreversíveis, está na criação da figura do pré-candidato.
Até 2014, candidatos só podiam botar seu bloco na rua após as convenções partidárias. Agora estão liberados para fazer campanha na internet desde muito antes: só não podem pedir voto explicitamente.
Isso abriu um mundo novo para o marketing político brasileiro, e indiretamente deve influenciar um pouco a maneira de fazer política no país. No fim das contas, as campanhas propriamente ditas durarão mais tempo, sobre uma variedade de novas plataformas audiovisuais. As eleições brasileiras ficaram mais parecidas com as americanas, onde a campanha na mídia começa dois anos antes, com a luta de pré-candidatos pela indicação partidária.
É uma guerra cujo principal teatro será a internet. 2016 deve entrar para a história como a primeira eleição em que a TV desempenhará um papel um pouco menor na disputa pelo voto. A consolidação das redes sociais, da internet móvel e da banda larga está dando ao tal mundo virtual — especialmente o Facebook, o Twitter e o mais imprevisível e incontrolável de todos, o WhatsApp — uma importância que era apenas antevista nas eleições passadas. Até agora, a internet era usada principalmente como suporte à campanha definida na TV e no rádio ou simplesmente para marcar “presença online”. Mas agora será ela a definir as campanhas, e isso quer dizer que as outras mídias fatalmente virão a reboque do que se construir nesses meses que precedem as convenções.
Obviamente, a legislação pode mudar nas eleições de 2018 e a figura do pré-candidato pode desaparecer mais uma vez. Mas o que ela trouxe em 2016 deve permanecer: o uso das redes sociais como instrumento de campanha real, explorada com ferramentas de marketing político, é algo inexorável, ainda que eventualmente precise se adaptar a novas normas sempre inconstantes.
Há outros aspectos estranhos no artigo do Singer. Como o recurso àquele velho lugar-comum que diz que “programas de TV são o maior escoadouro de dinheiro em eleições”, o que mostra que ele não entende como se processam as campanhas na vida real e a criação das estruturas eleitorais. O cenário que ele identifica pode até vir a se concretizar em breve, e se acontecer será bom para a sociedade; mas não é realidade ainda, e os milhões distribuídos por Eduardo Cunha deveriam ser evidência suficiente para que isso ficasse claro.
Além disso, em um ataque estranho de neo-ludismo, ele pede campanhas em que o candidato fale diretamente para o eleitor: o candidato e a câmera, olho no olho, “só propostas”. Esse é mais grave. Seu princípio é o da negação do marketing como ferramenta educacional, e a crença de que ele tem uma importância mistificadora maior do que a real.
O que o Singer não parece saber é que esse tipo de campanha que ele quer já existe. Quer entender a diferença que o marketing político faz? Olhe as câmaras municipais, estaduais e federal. Os excelentíssimos senhores que estão ali foram eleitos dessa forma, com pouquíssimos recursos de comunicação. O resultado é o império do clientelismo, da politicagem mais rasteira, da política como balcão de negócios, o império que se justifica na defesa de Deus, da família e “contra a corrupção”.
A comunicação política, ao expor à sociedade as propostas e realizações dos candidatos, fomenta o debate e aumenta as expectativas. Ao longo dos últimos 30 anos, serviu para fazer parte do sistema político brasileiro avançar; o que o está destruindo se consolidou justamente na área onde ela não tem tanta importância, as eleições proporcionais. Por mais que alguns setores odeiem, o fato é que o marketing político ajudou a consolidar a democracia.
Mais que isso, indica também uma recusa em compreender o mundo à sua volta. Como lembra este artigo de Steve Viva, política hoje é mais que teatro, é também showbiz. Goste ou não disso, essa foi a maneira como a sociedade evoluiu. Subir num pilar como um Simão do Deserto buñuelesco e clamar aos céus pela volta de uma variação da Lei Falcão não vai mudar isso, assim como amar televisões valvuladas não as trará de volta.
Claro, nem todo mundo compreendeu isso ainda. Singer é um deles. Mas a mudança está aí, e é irreversível.
Ótimo artigo, Rafael, como habitual. Achei muito feliz quando você mostra que o marketing gerou uma comunicação melhor com o eleitor e fez ele refletir mais sobre seu voto.
Não se atendo ao post, porém, coerente:
“Lula e Collor demonstraram o poder da televisão. 1994”
Rafael, serei sintético: Lula e Collor em 1994 eram como agua e óleo, heterogêneos, hoje, infelizmente, são totalmente homogêneos, não havendo marketing que resolva.
Pequena correção: Lula e Collor foram em 1989, ele disse que em 1994 FHC e Itamar limitaram a propaganda política.
Obrigado pela correção Thiago. No tal do cola e copia, deu errado.
De nada. A seu dispor.
“política hoje é mais que teatro, é também showbiz.” deprimente. o marketing político tem sido responsável pelo aporte de milhões de reais por ano, com o governo eleito como principal cliente… grande “evolução”… essa suposta “modernidade” interessa à população carente de políticas públicas efetivas no mundo real? duvido.
Para ser justo, elas já eram carentes dessas políticas públicas efetivas no mundo real bem antes do marketing como o temos agora existir. Confesso que tenho uma aversão institiva a espetáculos eleitoriais e idealizo um pouco o velho “candidato e a câmera, olho no olho, ‘só propostas'” e até acho que essa campanha nem é o problema dos legislativos (tem mais a ver, acho eu, com o pouco interesse que o eleitor sempre dedicou a esse tipo cargo– presidentes e governadores parecem muito mais importantes– e o voto proporcional– e ainda assim, a defesa oportunista que as Vejas da vida fazem do voto distrital me arrepia todo), mas, no cômpito geral, concordo com Rafael Galvão: o marketing acaba tendo um papel educativo.
institiva
* instintiva
cômpito
* cômputo
Thiago,
A ideia do “olho no olho” é altamente superestimada. Imagine um excelente candidato de direita, com carisma o discurso correto para o seu público, diante de um candidato qualquer do PSOL — que costumam ser bem intencionados mas, além de equivocados e ignorantes, 30 anos atrasados em relação ao resto do mundo.
O marketing político equilibra isso. Um candidato pode mostrar o que já fez e ilustrar melhor o que pretende fazer e colocar a disputa em termos mais objetivos. E pela própria dinâmica de uma campanha, não pode fugir de alguns temas que podem lhe ser prejudiciais.
Por isso acho que a falta de marketing político para candidatos a vereadores e deputados ajuda a fortalecer um esquema rasteiro e corrupto. Sem colocá-los na ribalta, pelo tempo parco e pela profusão de candidatos folclóricos úteis no sistema proporcional, o que resta é a negociação de estruturas e votos do lumpem.
Por isso já fui a favor do voto distrital para vereadores, porque em tese facilitaria a cobrança por parte do cidadão, algo diluído no modelo proporcional. Hoje, acho que esse modelo apenas perpetuaria estruturas extremamente nocivas de poder (imagine Tammany Hall bem piorada). Cada vez mais acho que Câmaras de Vereadores deveriam ser simplesmente abolidas.
Como eu disse, minha aversão é instintiva, provavelmente nasce da desconfiança de que, quanto mais instrumentos e recursos (música, simulações, etc.) deixarem o candidato usar, mais fácil será enrolar o eleitor (lembro-me de uma discussão tempos atrás sobre o uso de simulações sofisticadas nos tribunais do júri — alguns alegavam que isso dava aos advogados de apresentar especulaçõs com cara de verdade comprovada e testemunhada pelos jurados). Bom, mas os demagogos se dedicam a isso desde a Grécia Antiga pelo menos, não é? Fazer o quê? Voltar com a Lei Falcão ou voltar a escolher presidente através do Almanaque do Exército? Uma parte mais otimista de mim me diz que, quanto mais recursos o candidato usa, mais ele é obrigado a revelar de si, de seus adversários e de seu entendimento das necessidades do eleitor. E que, no final de contas, marketing político acaba sendo isso, falar algo que, certo ou errado, faça sentido para o eleitor e que, como no cinema, efeitos especiais não substituem roteiro, no máximo, servem a sua força ou põem a descoberto sua inadequação. Imagino que o grande desafio da equipe do candidato seja justamente encontrar uma narrativa que interesse ao eleitor e que o candidato seja capaz de interpretar sem exigir muito da credulidade do eleitor.
Abolidas as Câmaras de Vereadores, sobra quem para contrabalançar o executivo municipal?
Thiago, o mais difícil é achar politico de esquerda bem intencionado no mundo; burros e ignorantes realmente todos são.
Por incrível que pareça, eu acho que o pessoal do PCO, do PSTU e do PCB é bem-intencionado, que outra desculpa eles têm para estar em partidos politicamente menos influentes que o Olaria? Ser esquerdista e entrar no PT com chances de chegar a algum lugar qualquer um faz (e se for corrupto, mais vantagem ainda), entrar no PCB para não ganhar nem rifa e ainda manter a fé na revolução mundial, que deve acontecer a qualquer momento agora, sério, sério mesmo é algo diferente. Aliás, eu acho que eu nunca teria adivinhado que, entre o PCB, pró-soviético, desestalinizado, adversário da luta armada no tempo da ditadura, e o PC do B, pró-Hoxha, Revolução Cultural, Pol Pot, etc., quem tinha futuro político mesmo era o PC do B. Vivendo e aprendendo…
Realmente Thiago, toda regra tem exceção, mesmo que raras.