Há uma série de coisas que me irritam no Facebook; mas tem uma, em particular, que me faz pensar em como as pessoas conseguem usar qualquer coisinha de nada para se autoconferir uma nesga de grandeza imaginária e ter o direito putativo de serem arrogantes no pouquíssimo que acham que podem ser.
São aqueles posts que falam que sua infância foi melhor que a atual. “Você viveu isso ou isso? Parabéns, sua infância foi a melhor”, e daí para baixo.
Eu gosto muito da minha infância. Nostálgico jamais arrependido, gosto de lembrar dela, dos elementos que a fizeram. Sigo grupos de outros saudosistas que viveram o mesmo que eu, como Imagens Antigas de Salvador, Aracaju Como Eu Via, Imagens Antigas do Rio de Janeiro. Gosto da minha infância, repito; mas não porque ela foi melhor que as outras, de outros tempos. Gosto porque foi a minha infância, a única que tive e da qual às vezes tenho dúvidas de que saí. Gosto como alguém gosta de jenipapo.
É por isso que quando vejo alguém se vangloriando por ter andado de carrinho de rolimã, por exemplo, tenho a certeza de que o nível de estupidez mundial não dá sinais de arrefecer.
Eu andei, também. Tenho uma cicatriz no pé para provar. E que merda, isso. Sinceramente, em vez de andar de carrinho de rolimã eu queria era ter dinheiro para comprar o CP-500 que era bonitão mas que nunca tive e por isso eu tinha que me contentar em ir para a rua brincar.
Joguei bola de gude joguei bafo quase aprendi a rodar pião joguei bola e fiz gols porque eu colocava a bola onde queria quebrei braço quebrei cabeça quebrei braço de novo vi todas as unhas dos pés irem embora nas topadas mas elas sempre voltavam e Maura a empregada fazia o melhor bolo de laranja fui ao circo ver o domador de leões brinquei todas aquelas brincadeiras violentas que os meninos brincavam sofri bullying na escola e fiz bullying também porque o mundo é um grande sistema de compensações e talvez eu seja um pouco menos estressado porque briguei muito na rua e levei murro e levei chute mas bati mais do que apanhei.
O que me consola bastante.
Mas grandes merdas, tudo isso. Para começar, essa meninada faz mais sexo e mais cedo do que a minha geração, criada numa pequena província de muro baixo. E só por isso ela já é melhor (em compensação não viveu as históricas tragicômicas que eu posso contar). Mais que isso, faz sexo com menos preocupações, com menos culpa. Eu fui adolescente em uma década em que a Aids era razão de pânico absoluto.
Posso até lamentar que não leiam mais as historinhas Disney que eu lia; eles certamente não sentem a mínima falta. E se estranho a maneira cada vez mais diferente com que se relacionam, utilizando a internet e estabelecendo novos padrões, o fato é que essa é uma geração que está avançando em uma nova fronteira, instaurando uma nova normalidade. Não é pior, nem melhor. É só diferente.
Há exceções, claro. A TV aberta era realmente melhor que a atual — a variedade de atrações numa mesma programação me impressiona até hoje —, e o fato de haver poucas opções fazia com que ela tivesse um papel importante, já desaparecido, de unificação da conversa (“Bestão, você não viu mesmo SWAT ontem?”, e droga, agora eu tinha que dar uma porrada no babaca que disse isso, porque eu caía no sono às 8 da noite e não tinha tempo de ver SWAT porra nenhuma). Para quem, como eu, gostava de filmes — ainda era cedo para gostar de cinema — a programação era infinitamente melhor. Era fácil ver tantos dos grandes clássicos dos anos 50. Chaplin era exibido na Sessão da Tarde.
Mas se alguém realmente acha que a sua infância foi melhor que porque assistiu a “O Homem de Seis Milhões de Dólares”, que pena que se contente com tão pouco. A propósito, os meninos de hoje também podem ver o seriado, e na hora que quiserem, porque ele está no YouTube — enquanto na minha época a gente via quando a TVs deixavam. Eles só não veem graça nele, e eu entendo.
A meninada tem Netflix, tem torrents para assistirem o que quiserem quando quiserem, têm Spotify para ouvir a música ruim que se faz hoje — mas é a música deles, do seu tempo, como eu tinha que aturar a música ruim do meu. Sua noção de tempo para esse tipo de relação com o mundo e com a informação e o entretenimento é provavelmente o sonho de todo menino de minha época, que não tendo nada disso se contentava em subir em árvores, como macacos vinham fazendo já havia milhões de anos.
Em virtualmente todo e qualquer aspecto, a infância de hoje é melhor que a de antigamente.
E sempre que vejo algum sujeito encher a boca para falar de como brincou de carrinho de rolimã, eu penso: besta, brincou porque não tinha internet.
Obviamente concordo inteiramente com você.
Grande texto, como habitual.
Cara, concordo em partes com seu texto, mas isso não vem ao caso agora.
O que discordo mesmo é da última frase. Não é apenas por não ter internet que eu andava de carrinho de rolimã. Era porque eu podia. As ruas não eram tão movimentadas, nem as mães tão neuróticas com (in)segurança.
Meu filho herdou meu carrinho de rolimã (modelo 1982) e adora. Mas só dá pra andar no domingo de manhã, em determinadas ruas perto de casa, antes de começar a caça ao almoço e de alguma vizinha reclamar – e segundo a mãe, eu tenho que vigiar. No mais, ele joga minecraft (é isso?), roblox (é isso?) e no Xbox (eu também).
Em tempo: eu queria mesmo era um skate. Como não tinha grana pra nada…
Nas cidades e nos bairros em que isso ainda é possível eu não vejo muita gente brincando disso. E se brincam, é apenas parte pequena do seu tempo. Os tempos mudam.
Paciência zero pra “se vc brincou disso, curte …blá-blá-blá “. Não sou nada nostálgica, o mundo hoje é bem divertido, não dá tempo pra ter saudade.
O texto? Adoro sempre! ??
Grande Rafael!
Infância com pelada na rua; pega -pega; bolinhas de gude; álbum de figurinhas; pipas; etc. foi gostoso, mas eu tenho certeza de uma coisa: se na minha infância eu tivesse vídeo game; you tube pra ver o desenho que eu quisesse na hora que quisesse; carrinho de controle remoto; etc., eu não iria ficar na rua brincando com os brinquedos rústicos acima citados, mas sim em casa desfrutando destas maravilhas eletrônicas modernas. Esse saudosismo arrogante do “a minha infância é que foi boa” é uma idiotice de gente que não pensa.
PS. Um amigo meu, mais rico que eu, tinha a maravilha da época: um autorama Emerson Fittipaldi, (o mais moderno) e nós não saíamos da casa dele brincado o dia todo com essa maravilha da tecnologia da época. Por aí se tem uma base.
Eu lembro desse Autorama. Depois foi substituído pelo Nelson Piquet e, mais tarde, pelo Ayrton Senna. Não sei se houve um Rubens Barrichello; se houve, chegou bem depois…
Ah, hahahhahha…sem dúvida, de segundo pra baixo.
Foram fazer um concurso quem tinha o pior desempenho dentre os pilotos do primeiro time da formula 1. O Barrichello pegou em segundo.