Super-Heróis

Acho que ainda não vi ninguém mencionando isso: mas entre as invenções do século XX, uma das mais importantes foram os super-heróis.

Na verdade, considerando que o automóvel, o telefone, a transmissão de energia elétrica e o cinema foram criados no século XIX, os super-heróis são uma das poucas grandes invenções do século passado, provavelmente tão importante quanto o avião, o computador, a internet e as viagens espaciais. Depois que dois garotos americanos trivializaram um conceito nietzscheano e criaram o Super-Homem, as coisas mudaram definitivamente, e talvez não para melhor.

Até o início do século passado, os heróis eram humanos, sempre. D’Artagnan, o Corsário Negro, Allan Quatermain, Jim Hawkins. Mesmo o Tarzan, se não era comum, era gente como a gente, sem nenhum superpoder. Com a chegada dos quadrinhos, os primeiros heróis seguiam essa risca: o Fantasma, Flash Gordon e o Príncipe Valente eram pessoas normais, com as habilidades possíveis, mesmo que eventualmente exageradas ou em ambientes improváveis, como a selva africana ou o planeta Mongo.

Mas havia um aspecto ainda mais importante, quase antagônico ao panorama atual: o sobre-humano era sempre associado ao mal. Tinha sido assim durante séculos. Dr. Hyde, Drácula, o monstro de Frankenstein: a moral subjacente a todos eles era a de que a busca pelo além não podia terminar bem, como não terminou para Adão nem para Prometeu. O modelo ideal era o humano: imperfeito, fraco, mas familiar e acessível. Um herói era aquele que se superava e fazia, talvez melhor, tudo aquilo que qualquer um pode fazer, e não alguém que tinha grandes poderes e com eles grandes responsabilidades.

Por isso, até o início do século passado um garoto qualquer poderia ter como heróis e modelos alguém que, ao menos em teoria, ele podia ser. Bem ou mal, ele sabia que, com esforço e nas circunstâncias adequadas, poderia sobreviver na selva como um Tarzan, desvendar um crime impossível como Sherlock Holmes, domesticar um lobo como o Fantasma.

O Superman representou uma ruptura nesse modelo e deu início a uma nova era. Mas mesmo ele começou timidamente. O Superman de 1938 era mais forte, saltava mais alto, corria mais rápido, mas ainda era uma evolução apenas, não algo totalmente diferente, e só existia em comparação com o demasiado humano. Apenas com o passar do tempo ele adentraria o campo do improvável, voando, usando uma tal visão de raio X, essas coisinhas do Superman. E ainda assim, os outros heróis importantes desse início de era ainda eram “normais”, como o Batman ou mesmo o Capitão América.

Mas já não havia mais volta. O princípio básico do herói, a sua humanidade, tinha sido rompido ali. Aos poucos outros foram surgindo, como o Capitão Marvel e o Tocha Humana, ainda nos anos 40, e mais tarde o Quarteto Fantástico e o Homem-Aranha: heróis que já não precisavam respeitar sequer a mínima fímbria de plausibilidade; e talvez como resposta a esse novo que ele tinha anunciado, em pouco mais de dois anos o próprio Superman passou a voar e fazer essas coisinhas do Superman.

Mais que isso, os super-heróis tomaram conta do imaginário como virtualmente nenhum personagem de ficção antes dele. Hoje o Homem-Aranha é mais famoso que Jesus Cristo, e está na psique coletiva de maneira muito mais constante e intensa do que, por exemplo, Aquiles ou o Rei Artur. Eu não perderia um tostão se apostasse que o Batman é muito mais conhecido do que o Barão de Charlus.

Mas acho que algo importante mudou quando os heróis passaram a ter essa dimensão sobre-humana. E não consigo deixar de imaginar que talvez isso tenha algo a ver com essa era estranha, ansiosa e frustrante em que as pessoas vivem. Talvez seja como se o impossível tivesse deixado de ser realmente impossível, e essa noção tenha contaminado, em algum nível muito profundo, a maneira como as pessoas enxergam o mundo. Super-heróis talvez sejam uma face do hedonismo quase mandatório que se tornou a regra das sociedades atuais. Talvez. Certo, mesmo, é que essa invenção do século XX encontrou no século XXI ninho farto para crescer e tomar conta da imaginação de todos.

***

No século XXI esse processo avançou ainda mais.

Demorou até os super-heróis chegarem adequadamente ao cinema — sem contar desenhos animados como os do Superman pelo Max Fleischer ou a fantasticamente tosca série da Marvel dos anos 60 na TV.

Mas em 1979 o primeiro grande filme de super-heróis, Superman, concorreu apenas a Oscars técnicos, como edição, música original, som. Agora, filmes de super-heróis concorrem ao Oscar de melhor filme. É uma mudança significativa não apenas de sua importância na indústria cinematográfica, mas da própria sensibilidade da plateia. O processo de transformação e mitos desses personagens — feitos com a única intenção de vender revistas e garantir o leite das crianças — se completou.

O século XXI tem sido a era dos filmes de super-heróis por uma única razão: porque agora é possível fazê-los. Não há mais limites. Em 1978 o Hulk de Lou Ferrigno precisava de uma boa dose de boa vontade para ser encarado como tal. Hoje isso não é mais problema, e o Hulk pode ser feito como seus autores o conceberam (por que, mesmo depois de três filmes diferentes, ainda não conseguiram é um mistério para mim).

Mais que isso, o cinema é a nova casa dos super-heróis. As vendas de revistas em quadrinhos caem a cada ano. Não é de admirar: nas bancas — eu sou um ser do século passado; ainda gosto de bancas de jornal —, de vez em quando folheio algumas revistas e vejo um tal de “Aranhaverso” com um bocado de Homens-Aranha, um Peter Parker que agora é o dono milionário de uma empresa de tecnologia, e o Bruce Wayne não é, de novo, o Batman. O mundo dos super-heróis alcançou um nível de pseudo-complexidade que as torna distantes do que eu, pelo menos, entendia como quadrinhos.

Isso me incomodava até que vi a notícia de que a Marvel tinha cancelado os títulos do Quarteto Fantástico, virtualmente apagando a presença da marca nas bancas, para esvaziar a força de mercado dos personagens e forçar a Fox a lhe devolver os direitos cinematográficos sobre o grupo.

Se a Marvel faz isso com um dos seus super-heróis mais queridos — foi o Quarteto que deu início à revolução dos quadrinhos que a ela empreendeu a partir do início dos anos 60 —, a razão é muito simples: hoje, as revistas não são realmente importantes. Os filmes são. Enquanto a venda de revistas lhe gera milhões de dólares por ano, os filmes geram bilhões a cada nova edição — e alimentam a venda de merchandising de todo tipo, que rendem ainda mais. Mais vale fazer um filme do que editar 300 revistas. Não importa que a fórmula pareça estar se esgotando: é para assistir a esses filmes que as pessoas continuam indo ao cinema.

A era das revistas em quadrinhos passou. Mas os super-heróis se tornaram maiores que elas. São novos deuses de uma sociedade cada vez mais descrente. Para o alto, avante e amém.

8 thoughts on “Super-Heróis

  1. Ótimo artigo, Rafa, ótimas reflexões.

    Eu tenho acompanhado os quadrinhos atuais através dos abnegados grupos que traduzem os scans estrangeiros, e é complicado mesmo, esse negócio de Aranhaverso eu passo longe, tem até a Spider-Gwen, qué dizê, a Gwen além de voltar da tumba ainda virou uma super heroína também.

    Mas tem algumas novidades interessantes, que a gente sabe que são sempre temporárias né. A série do Superior Homem de Ferro foi bem legal, com o Tony Stark vilão e se achando superior ao resto da espécie humana porque era mais inteligente, e usando um aplicativo de celular que era como se fosse uma droga viciante, pra faturar bilhões. Durou poucas edições e se encerrou dignamente.

    Enfim. Se tivesse menos títulos, mais histórias fechadas, seria melhor pra cativar o público casual.

    Queria apenas fazer um contraponto, até romântico, à primeira questão que você levantou, dos heróis com poderes. Eu ainda acho que falta o cinema explorar algo que é a motivação dos heróis, a nobreza de caráter deles. Eu sempre digo que super herói não é o que é pelos super poderes, mas pelo que ele tem no coração.

    O segundo filme do Capitão América explora um pouco isso. Quando ele conclama os membros do S.H.I.E.L.D. a resistirem, ou seja, nessa hora a sua voz é que foi o seu superpoder. Ou quando desiste de lutar com o Soldado Invernal porque este é seu amigo. Nessa hora Steve Rogers mostrou ser um herói.

    Mas fora esse filme não vi isso sendo explorado. Tudo vira um grande clichê, as motivações dos personagens ficam rasas e tal.

    • Marcus, eu não sabia dessa Spider-Gwen. Pensava que o ponto mais baixo a que a levaram foi ter dois filhos com o Norman Osborn. Eu estava enganado, pelo visto.

      Eu tampouco sabia desse Superior Homem de Ferro. Isso veio depois do Superior Spider Man? Eu já tinha deixado de ler as histórias do Homem-Aranha, mas de vez em quando folheava umas revistas e acho que deu para entender alguma coisa. É um princípio interessante. E como todo princípi interessante eles tendem a repetir até a exaustão.

      Mas não acho que eles estejam preocupados com o leitor casual. Com relação ao que chamam agora de “arcos”, as histórias em vários capítulos, isso é basicamente uma invenção da Marvel que se tornou a norma, e a verdade é que vem dando certo há 50 anos. Mas a principal razão, pra mim, é que a atenção da Marvel já não está nos quadrinhos há algum tempo.

      Quanto aos filmes, para mim a fórmula chegou à perfeição em “Capitão América – Soldado Invernal”, que você comentou. Embora eu sempre tenha desconfiado de que gosto do filme porque ele usa muitos elementos de uma fase do Capitão América publicada no Brasil em 81, justamente quando comecei a ler esse tipo de quadrinhos, acho que esse é o filme que conseguiu realizar com mais perfeição todo aquele universo dos quadrinhos da Marvel no cinema. De lá para cá é ladeira abaixo: porrada, elementos de comédia, uma grande crise no final, e é como você diz: personagens rasos. Acho mesmo que a fórmula está se esgotando.

      Mas não acho que isso vá mudar. Olhando direitinho, mesmo os mais complexos personagens dos quadrinhos da Marvel ainda são razoavelmente simplórios. Faz parte da natureza do gênero e eu acho que esse é o seu grande apelo. Além disso, o público do cinema não quer personagens mais complexos. Quer espetáculo. (Um parêntesis: nas séries do Netflix esse aspecto dos personagens é mais bem resolvido, porque eles têm mais tempo para contar a história.)

      Quanto aos quadrinhos, tenho a impressão de que o que aconteceu foi uma combinação de duas tragédias. A primeira foi a “x-menização” do gênero. Das histórias simples tradicionais, a regra passou a seguir as fórmulas complicadas, rocambolescas das histórias dos X-Men, que se pretendem profundas mas ainda assim são esquemáticas — e eu pessoalmente acho um porre quando destroem o mundo de dois em dois dias. A outra foi a influência nefasta da morte do Superman: de repente, todos os super-heróis passaram a morrer, real ou figuradamente, e ser substituídos por alguém. Não sei como aconteceu, mas vi que até o Comissário Gordon já virou o Batman. Assim é demais pra velhinhos como eu. Eu, pelo menos, sinto como se tivessem barateado tudo.

      E quanto aos scans, é engraçado, mas eu uso para o contrário de você: basicamente para reencontrar o meu passado. Por exemplo, baixei todas as Disney Especial que consegui encontrar, além das coleções completas da Capitão América e da Heróis da TV até 84. Mas tem uma coisinha a mais: graças a esses samaritanos, tenho a imensa maioria das revistas do Batman, do Capitão América e do Homem-Aranha publicadas nos EUA até o início dos anos 2000. Gosto especialmente das histórias do Batman dos anos 40 e 50. Li algumas delas quando criança, porque a EBAL era uma bagunça só e na mesma revista publicava histórias desenhadas pelo Neal Adams e pelo Frank Robbins, e é sempre um prazer reencontrá-las quase 40 anos depois.

      O mais importante é que cada vez mais prefiro a inocência e a ingenuidade dessas histórias às histórias de hoje. Mas eu tô ficando velho.

  2. Senti falta de uma análise sobre onde se encaixa o maior herói de todos: Chapolin Colorado.

  3. “Tinha sido assim durante séculos. Dr. Hyde, Drácula, o monstro de Frankenstein: a moral subjacente a todos eles era a de que a busca pelo além não podia terminar bem, como não terminou para Adão nem para Prometeu. O modelo ideal era o humano: imperfeito, fraco, mas familiar e acessível.”
    Aí é que está: talvez estejamos voltando à norma histórica depois desses séculos (se os santos católicos, mais próximos de nós cronologicamente, são um contraexemplo é coisa que não sei – tecnicamente os milagres são atribuídos a Deus), afinal de contas, Aquiles, citado no texto, era filho de uma ninfa. O que eu me pergunto é se existe diferença sociológica entre ficção encarada como ficção como a dos super-heróis e ficção (ou pelo menoa relatos sobrenaturais) que sempre se pretenderam ou acabaram encarados como verdade histórica, como as histórias de Adão e Prometeu, também citados no texto. Talvez no fim das contas, Drácula e Prometeu não sejam, sociologicamente falando, do mesmo time. Nesse caso, o exemplo das mitologias/religiões antigas não vale e realemnte temos agora algo sem precedentes históricos.
    “Eu não perderia um tostão se apostasse que o Batman é muito mais conhecido do que o Barão de Charlus.”
    Também… Proust é covardia. Ainda hoje deve haver mais gente que sabe o nome dos Três Mosqueteiros, do irmão de Sherlock Holmes e do professor que viajou até centro da Terra no livro de Júlio Verne do que gente que pode dizer o nome de um só personagem de Proust.

    • Thiago, é um belo ponto, esse do retorno a uma norma histórica. Acho que você tem razão.

      Embora eu ache que especificamente Prometeu e Frankenstein sejam a mesma coisa — Drácula estaria em outro patamar —, representando a busca por um papel que deveria ser só do divino, essa ideia é perfeitamente compatível com o afrouxamento do domínio da filosofia cristã sobre o imaginário ocidental a partir do Renascimento, num processo de ocupação de vácuo semelhante ao surgimento do feudalismo com o enfraquecimento do poder central romano. E assim recriamos nossos Hércules (aliás, também literalmente: a Marvel tem o Thor e o Hércules como personagem). Resumindo: menos Deus, mais deuses.

      Nesse caso, seria possível que os santos sejam basicamente um exemplo da centralização necessária ao monoteísmo cristão. Mas talvez isso seja forçar um pouco a barra, porque tenho a impressão de que estão mais próximos de um tipo especial de sacerdotes comum a virtualmente todas as religiões antigas, como as sibilas de Delfos — intermediários privilegiados entre o humano e o divino. Os santos então teriam sido, originalmente, um instrumento nem tanto de centralização, mas de adequação cristã às normas sócio-religiosas pagãs.

      E aí lembrei de “Marvels”, uma série fantástica que talvez coloque isso em termos mais claros.

      Quanto ao Charlus, é que eu não gosto de perder aposta. Sei lá quanta gente conhece Arne Saknussemm, por exemplo (eu conheço desde os 5, 6 anos, porque havia um desenho animado da Hanna-Barbera nos anos 70 baseado em viagem ao Centro da Terra; mas eu achava que o nome era Arlo Sakrussem. )

  4. Rafael:

    Tanto nos posts quanto nos comentários, até agora, faltou algo sobre os X Man.

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