Nos primeiros cinco minutos de filme, incluindo os créditos de abertura, o que chama a atenção são os vestígios de um mundo que não existe mais. Orelhões, fitas cassete, máquina de escrever, um Passat. Ao longo do filme, outras antiguidades vão aparecendo: Malt 90 em latas de folha de flandres, sacos de compras em papel pardo, resquícios de um mundo que existiu logo ali, mas já foi embora.
Esses artefatos arqueológicos de uma era que passou marcam a idade de “A Menina do Lado”. O filme é de 1987. Assisti a ele mais ou menos nessa época — não no cinema, mas em videocassete, outra relíquia que o tempo enterrou. Quase tanto quanto a história, me impressionou na época (e a muitos outros) a qualidade técnica do filme, superior à média do kinemanacional de então, a naturalidade de diálogos, a trilha sonora de Tom Jobim dando o clima mais que adequado ao filme.
“A Menina do Lado” conta a história de Mauro e Alice. Mauro é um jornalista enfurnado numa casa à beira da praia em Búzios para escrever um livro; Alice é uma garota que passa férias sozinha na casa da família, vizinha à alugada por Mauro. Mauro está beirando os 50 anos; Alice tem 14. Naquele ambiente isolado, livre das condicionantes do mundo cotidiano, longe das tantas coisas que nos ajudam a perceber a nós mesmos mais velhos ou mais jovens, nasce entre os dois uma paixão que se desenrola com a leveza de uma tarde sob o pôr do sol de Búzios. O espectador até esquece que, além de velho, Mauro é casado e seus filhos são mais velhos que Alice.
Então eu tinha aproximadamente a idade de Alice; revê-lo agora, quando estou mais perto da idade do Mauro do que daquela garota, deveria me dar uma visão diferente do filme: uma percepção recondicionada de “A Menina do Lado” como obra cinematográfica, claro, mas também da história que ele conta.
Mas o tempo não faz isso. Continuo achando o que achei então: o filme de Alberto Salvá é de uma delicadeza e de uma beleza enormes, algo incomum naqueles tempos em que a intelectualidade sudestina parecia inexoravelmente fascinada com o marginal, com a transgressão que a brutalidade do mundo atual parece ter tornado banais e quase pueris (apenas para efeito de comparação, vale a pena dar uma olhada em “Fulaninha”, de Davi Neves, filme da mesma época e com alguns traços em comum, mas mais preocupado em fazer um retrato pitoresco da Copacabana mítica da Prado Júnior). Mas talvez por entender melhor o que Alice significa para Mauro, hoje se torna impossível não achar que essa beleza e delicadeza eram ainda maiores em seu tempo.
O filme toma o cuidado de mostrar o nascimento da paixão em Mauro com delicadeza, evitando quaisquer paralelos possíveis com “Lolita”, a referência mais óbvia em se tratando de uma diferença tão grande de idade. Ao contrário de Humbert Humbert, em nenhum momento Mauro é apresentado como um predador obcecado, e aceita passivamente a evolução do relacionamento com Alice; diferente de Lolita, Alice não joga com o desejo de Mauro, e não está condenada a perder esse jogo como a jovem Dolores. O relacionamento entre Mauro e Alice não apresenta nada de doentio. Não que seja infenso aos problemas que a diferença de idade causa, ou que a própria situação não seja vista por ambos como complexa, mas as diferenças e a paixão são encaradas, acima de tudo, com naturalidade.
De certa forma, “A Menina do Lado” era um tanto anacrônico em seu tempo, e estava uns 15 anos atrasado. Na virada dos anos 60 para os 70 o tema parecia estar no ar: uma série de filmes abordou o mesmo tema, a paixão complicada entre gerações diferentes, como There’s a Girl in My Soup, com Peter Sellers e Goldie Hawn, Breeze, filme de estreia de Clint Eastwood, ou “Ensina-me a Querer”, que se não é clássico é pelo menos um filme cult há quatro décadas.
Ainda assim o filme despertou certa polêmica. Afinal, mesmo que se adote a postura leniente de que tudo é normal, o namoro entre um homem de 45 anos e uma garota de 14 é, no mínimo, incomum. Havia um nível diferente de tolerância, desde que respeitados alguns preceitos, mas os anos 80 não foram uma época de permissividade total. Isso fica claro na cena em que Adriano Reis, no papel de Lourenço — que aparece em cena logo depois de Mauro contar a Alice a história de Romeu e Julieta, história que tem como um de seus principais personagens um padre cujo nome não consigo lembrar agora —, se apavora com a notícia. No entanto, tenho a sensação de que, comparado às polêmicas de hoje, mais intensas, mais grosseiras e cada vez mais curtas, tudo foi bastante leve. Talvez porque naquele tempo a paixão de uma adolescente por um homem casado de meia-idade fosse insólita, até assustadora, mas não criminosa.
Mas o que mais me chamou a atenção agora não foi isso. É o fato de que essa polêmica hoje não existiria. Porque “A Menina do Lado” jamais seria feito em 2017.
Para ser válido e aceito hoje, “A Menina do Lado” teria que ser “Lolita”, talvez ainda mais condenatório, mais óbvio, mais categórico. Antes de crônica de um amor, deveria ser a denúncia de uma violência. Deveria ficar claro que aquela menina foi abusada, que não importa o seu consentimento ou sua iniciativa, não importa sequer a sua eventual maturidade.
Parece estar se consolidando uma noção geral de que a obra de arte não pode valer se não se adequa perfeitamente ao codex moral vigente. O mundus novus não aceitaria isso; o coroa necessariamente é malvado, deve saber e ater-se ao seu papel. Por outro lado a visão sobre a sexualidade de adolescentes é complicada e contraditória, defendendo uma liberdade cada vez maior dentro de um espectro de possibilidades cada vez menor. Diante de tudo isso, a nova ortodoxia não pode admitir que algo pré-definido como absolutamente monstruoso possa ser apresentado com um grau quase ofensivo de doçura e delicadeza.
Talvez o mundo esteja mais desiludido hoje, menos ingênuo. Talvez imagine, de saída, o que seriam Alice aos 40, Mauro aos 71. Talvez saiba que um amor assim jamais poderia dar certo, se por certo entende-se “duradouro”. Talvez tanta coisa, mas o que importa é que o calar de vozes e de experiências no campo artístico nos torna mais pobres. Não se trata da evolução dos costumes, de uma noção mais abrangente de tolerância e respeito: trata-se, ao contrário, do exagero normativista cada vez maior, do calar de vozes dissonantes e de um constante recurso à histeria como política.
Decididamente 2017 é um mundo diferente daquele de 1987. Um sinal disso é o fato de que há duas versões do filme no YouTube. Uma delas, a que tem mais republicações e visualizações, é uma versão mutilada e sanitizada: cortou as cenas de sexo e, o que é muito pior, a cena em que, num acesso de ciúmes, Mauro agride violentamente Alice. Como se o mundo, 30 anos mais velho, não fosse mais capaz de assistir àquelas cenas sem ter um ataque apoplético fulminante. Talvez não seja, mesmo.
De qualquer forma, é difícil condenar peremptoriamente esse mundo (desde que se releve aberrações como a recente onda de moralismo hipócrita, histérico e autoritário patrocinado por entidades como o MBL, que infelizmente pode ser explicada dentro de um contexto que os exageros do politicamente correto ajudaram a criar, ele também hipócrita, histérico e autoritário). É, afinal, um mundo com novos códigos — não melhores ou piores, mas diferentes, e sempre uma resposta ao seu próprio tempo. No entanto, é incômoda a sensação de que se está perdendo também a capacidade de enxergar o mundo fora do espelho — o que é estranho justamente numa sociedade que, mais rica do que nunca na história, acha que tem o direito absoluto a qualquer tipo de prazer, desde que em um mundo cada vez mais asséptico.
Concordei muito com o seu texto.
Ele coincide com a polemica artificial levantada pelo já citado MBL em relação a Caetano Veloso, mas o curioso é que essa polemica já existe nos meios ~progressistas~ há muito tempo. Não importa que Paula Lavigne esteja com Caetano até hoje e tenha sido um pilar importante na vida dele. As pessoas não querem ver que aquele fato específico não foi um predador explorando uma garota inocente. Elas querem regras gerais que se apliquem a todo mundo, mesmo quando não é o caso.
Discordo apenas de uma coisa: não acho que o MBL seja fruto dos “exageros do politicamente correto”, mas apenas da luta política, que agora se vira para a guerra cultural.
Eu acho que vários dos padrões de que o MBL se aproveita têm sido definidos, sim, a partir de vários exageros do politicamente correto. Lembra do Mapplethorpe, ou daquele monte de livros banidos, ou da questão Monteiro Lobato? Pra que a a palhaçada do MBL funcione, ela precisa ter algum respaldo nas camadas médias. E durante muito tempo o PC definiu, em grande parte, esses padrões. No caso do Caetano (que eu não lembrei), isso tem a ver também.
Concordo aqui: “exageros do politicamente correto”, mas apenas da luta política, que agora se vira para a guerra cultural.
Boa!
Pessoal, tudo certo, hoje os tempos são outros, mas misturar o caso do Caetano com a resenha do Rafael não é muito adequado. Porque? Observe que o roteirista do filme A Menina do Lado, teve o cuidado de fazer da Alice uma menina de 14 anos, não 13. Eu tenho 56 anos e quando eu tinha dezoito já sabia que não deveria fazer sexo com um menina com menos de 14 anos; era cadeia na certa, podia ter 13 anos e 11 meses, cadeia. Intercurso sexual com adolescente de 13 anos, ou menos, é crime. Então, vamos devagar com o andor. Dura lex, sed lex.
Interessantemente – e não sei se a lei tem algo a ver com isso -, acho que só passou a ficar claro que Jango e a então futura ex-primeira-dama Maria Teresa estavam de namoro à altura do suicídio de Vargas, em agosto de 1954 (pelo menos, não conheço referência anterior ao relacionamento deles). Ela nasceu de agosto de 1940.
Thiago, por favor, o fato de alguém não ser punido por um ato não invalida uma lei.
Nem eu disse que invalida lei nenhuma (se invalidasse, não haveria leis no Brasil). O que eu disse foi: só se tornou mais óbvio o relacionamento afetivo, romântico (sexual?) entre o futuro presidente e a futura primeira-dama depois do décimo quarto aniversário dela. Provavelmente, porque, antes disso, Jango, que já era o herdeiro do trabalhismo e tinha uma carreira política na qual pensar, não quis bancar as consequências legais e sociais da da idade da namorada. Foi SÓ o que eu disse.
Mas, verdade seja dita, no meio do festival de besteira que assolava o país, não parece ter ocorrido aos militares em 1964 abrir um IPM dez anos depois dos fatos para averiguar o assunto.
Como eu disse, um erro não torna outro erro um acerto, ou um outro crime passível de ser tolerado. Os dois erraram, os dois deveriam arcar com as consequencias.
Não sou especialista em Direito e posso estar errado, mas, no que se refere a consequências legais, acho que nos dois casos houve prescrição. Além, claro, de, por muito tempo, o casamento ter servido de recurso para extinguir a punibilidade: https://fabriciocorrea.jusbrasil.com.br/artigos/121941324/o-casamento-como-causa-extintiva-de-punibilidade-para-os-crimes-de-estupro
De acordo com o ordenamento vigente, deveriam ter sido punidos (assim como os 96% dos homicídios que não são solucionados), mas quando há discrição dos envolvidos e concordância da vítima (possa ela dar legalmente seu consentimento ou não), geralmente, não é. Pela mesma razão pela qual os 96% de homicídios não são. Não se pune o que não se conhece.
Já que a questão toda parece ser que “quando eu (Renine) tinha dezoito já sabia que não deveria fazer sexo co sabia que não deveria fazer sexo com um menina com menos de 14 anos; era cadeia na certa”, não precisa se preocupar por eles: eles escaparam. Ou por elas, já que a preocupação parece tardia e inútil. Felizmente, parece que um tipo de relacionamento que eu considero intrinsicamente complicado, reprovável e indesejável não chegou a ter o condão de destruir-lhes as vidas. Menos mau para elas. Dizer que há quem sobreviva a ser baleado não é apologia ao tiroteio.
Quanto a consequências morais, nem me consta que estejam fixadas em lei nem me consta que seja um campo de interesse do MBL (ou, aliás, de suas contrapartes de esquerda, que passaram 14 anos jurando que ovo era legume para não ficar longe das dádivas do poder).
O que eu tenho a ver com isso, já que eu não defendi nem Caetano Veloso (estou fazendo o que posso para não descobrir os detalhes da polêmica e não ir além das manchetes que vi na página inicial do UOL porque não sei quem me causa mais tédio: Caetano Veloso, Frota ou o MBL) nem Jango, eu não imagino.
Repito: tudo que eu disse foi que, aparentemente, Jango só achou conveniente começar a assumir o namoro com a futura primeira-dama depois do décimo quarto aniversário dela e a lei provavelmente teve influência nessa opção. Só.
Análise excelente não só do filme como de toda a questão de como arte é vista hoje em dia. Simplesmente não se aceitam ou não se permitem mais crônicas. Simplesmente o contar de historias. Sempre deve-se haver alguma suposta denúncia ou marketing social. Sempre um personagem como uma terceira voz condenando ações para explicar ao público que aquilo é errado, como fossem ignorantes. Mas sempre com esse viés moralismo e “educativo”. É de uma falta de inteligência sem tamanho.
Imagine as tragédias gregas analisadas por essa ótica? Shakespeare? O desespero por sinalizar virtude e se mostra dona da razão (razão essa que não existe alias) criou essas interpretações distorcidas. Filmes, novelas, livros, séries. Ninguém escapa. Simplesmente não faz sentido. Não faz sentido aplicar juiz de valor numa história cujo objetivo não é esse. Não é exagero dizer que o público emburreceu.