Rubem Fonseca, 8 anos depois

Eu não vou esquecer de quando li “O Cobrador” pela primeira vez. Tinha 19 anos e tinha dormido na casa de uma amiga. Acordei sem ninguém em casa, porque ao contrário de mim as pessoas tinham vergonha na cara e trabalhavam, e sem ter o que fazer abri o livro que tinha comprado no dia anterior.

Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo. Um cego pede esmolas sacudindo uma cuia de alumínio com moedas. Dou um pontapé na cuia dele, o barulhinho das moedas me irrita.

Aquilo era diferente de tudo o que eu conhecia. Era como se eu finalmente tivesse entendido Manuel Bandeira farto do lirismo comedido do lirismo bem comportado do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor. Sabia dele, claro, porque uns poucos anos antes, quando “Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos” fora lançado, a máquina de divulgação da Companhia das Letras, à época uma editora fascinante, fez com que a notícia extrapolasse o meio literário, virando quase um evento social. Mas não o conhecia. E então, de repente, dou de cara com aquele sujeito bruto, seco, visceral.

Faulkner jamais me daria novamente o choque que me deu em “O Som e a Fúria”, Dostoiévsky jamais repetiria a cena do assassinato das velhas usurárias por Raskólnikhov, ninguém pode imaginar a minha decepção ao ler “Dublinenses” depois de “Ulysses”, ou “Laranja da China” depois de “Brás, Bexiga e Barra Funda”.

Mas depois de “O Cobrador”, de “Feliz Ano Novo”, depois de conhecer boa parte dos livros dele publicados até então, li “Lúcia McCartney”, e de novo fiquei boquiaberto, sem reação que não fosse o deslumbre total. Ainda hoje “Lúcia McCartney” é, para mim, o melhor livro de contos escrito em língua portuguesa. A diversidade de temáticas e de abordagens, a verdade contida em cada um dos contos, a ambição literária que se podia ver nas palavras de um sujeito que sabia de onde sua prosa vinha, tudo aquilo me deixava embasbacado e impressionado.

Infelizmente foi mais ou menos nessa época, no começo dos anos 90, que essa magia devocional que já durava mais ou menos um ano se acabou. Um pouco depois de “Lúcia McCartney”: eu tinha esperado ansiosamente o lançamento de “Romance Negro”, mas já nas primeiras páginas uma frase me incomodou: “Seu corpo nu está me dizendo que é tudo verdade”. Corpos nus não dizem muito, dizem se têm frio ou calor ou vergonha ou medo, se estão excitados, e essa frase me soou tão falsa, tão artificial — especialmente nele, que escrevia brilhantemente a partir das verdades mais básicas, sem floreios, um Hemingway que deu certo — que foi como se, de repente, o meu deus infalível se mostrasse bêbado num fim de noite, olhado com desprezo pela moça que iria com ele para casa, um deus não tão infalível assim.

Mas aquele era um bom livro e isso era apenas uma bobagem menor que podia ser deixada para lá. Depois a coisa piorou, porque “O Selvagem da Ópera” era um livro tão destoante, e uma sequência de livros medianos (“Histórias de Amor” ou “O Buraco na Parede”) ou ruins (“O Doente Molière” é vergonhoso, “Diário de um Fescenino” não é muito melhor) transformou minha devoção em agnosticismo.

Curiosamente, à medida que sua obra ia decrescendo em qualidade, um fenômeno não tão curioso se consolidava: Rubem Fonseca parece ser protegido por uma certa camaradagem literária carioca, como se seus pares tentassem protegê-lo do mundo mau lá fora em respeito à sua obra pregressa, monumental. Basta olhar os jornais: não importa quão ruim seja um livro seu, sempre vai haver uma crítica favorável, no mínimo condescendente, em algum grande veículo de comunicação. Exemplos tantos de uma boa vontade generalizada, uma prontidão em inserir o livro no “estilo”, no “universo” de Rubem Fonseca. Vai ser fácil encontrar neles aquela vontade de ser amigo, de chamá-lo Zé Rubem, identificar aquela admiração necessariamente complacente que devia ser proibida numa reportagem sobre qualquer pessoa.

Daí se pode imaginar o prazer com que li “Secreções, Excreções e Desatinos”, um livro “conceitual” como o Sgt. Pepper’s. Mas foi alegria efêmera, porque a ele se seguiram livros menores — eventualmente interessantes, como “Pequenas Criaturas”, mas nunca grandes. Ele mudou de editora (perdendo as capas lindas, tão lindas de Hélio de Almeida) e lançou “O Seminarista”, livro tão tosco que chegava a ter erros de continuidade.

Eu não tinha mais interesse em Rubem Fonseca. Em 2011 vi que ele tinha lançado dois novos livros, “José” e “Axilas e Outras Histórias Indecorosas”. Deixei para comprar depois. O depois veio e passou, e de tanto deixar eu esqueci. De lá para cá, durante muitos anos ele não me mandou mais notícias, não falou mais comigo.

***

E daí que depois de alguns anos sem saber de Rubem Fonseca, sem sequer reler seus livros, fui procurar sua biografia e descobri que desde “O Seminarista” ele tinha lançado mais cinco títulos. Deus habitava meu coração nesse dia, segunda-feira passada, e comprei os cinco de uma vez. Chegaram mais rápido que de costume. Li-os todos em umas seis, sete horas.

Comecei pelo último livro de que me lembrava, “José”. Tive uma surpresa agradável: em vez de uma novela, tratava-se de um pequeno livro de memórias que, apesar do tom meio desconjuntado, do apego excessivo ao seu próprio estilo pouco adequado a reminiscências, acaba apresentando uma doçura da velhice, quase intimidade, ainda mais insuspeita em um sujeito cujo mundo literário é no mínimo singular.

“Axilas e Outras Histórias Indecorosas” é mais um livro de contos. O primeiro, “Sapatos”, é muito bom, evocando os idos tempos dos anos 60 e 70, em que por trás do seu estilo havia uma visão ética de mundo e uma indignação que mais tarde se perderiam. O resto é uma sucessão de às vezes pouco, às vezes nada bem-sucedidos contos que, no fim das contas, parecem apenas variações da mesma história. É como se Rubem Fonseca escrevesse com má vontade, com pressa, até impaciência. Parte de situações bobas que não consegue resolver adequadamente, apelando sempre para uma solução que agora deixa de ser necessária para ser apenas fácil.

A mania de fazer pequenas explanações pseudo-enciclopédicas sobre um tema qualquer, cultura de Google que hoje faz ainda menos sentido do que na época em que fornecia esteio para romances inteiros, como as facas de “A Grande Arte” ou os sapos de “Bufo & Spallanzani” ou ainda Bábel em “Vastas Emoções”, agora transplantada para um formato que os dispensa, hoje não é mais que uma caricatura, um cacoete literário que soa constrangedor à medida que se empilha em cada conto — às vezes, é a sua própria essência.

Mais impressionante ainda, por alguma razão “Axilas” mereceu uma tese acadêmica, de Alana Vizentin. Não li, não posso falar nada — mas não li porque não acho que esse livro mereça qualquer coisa além de um contraponto numa mesa de bar, e porque acho que já faz algum tempo que a academia brasileira, por razões internas de sobrevivência e auto-justificação, enveredou por descaminhos bizarros. O que importa é que o fato de alguém se dignar a escrever uma dissertação sobre livro tão medíocre apenas confirma aquela impressão de que, mais do que qualquer outro escritor brasileiro em qualquer tempo, mais até que Guimarães Rosa ou Dalton Trevisan, Rubem Fonseca é o alvo carinhoso de uma condescendência quase suspeita da crítica, que transforma a sua autorrepetição crescentemente pior em estilo, unidade, densidade.

Mas o livro traz, para um velho leitor de Rubem Fonseca como eu, o reencontro com um estilo, e é essa sensação a única coisa que faz sua leitura valer a pena. Um ou outro conto parece quase alçar voo, quase chegar ao padrão a que o escritor acostumou seus leitores. Mas o resto é uma sucessão de peças escritas com displicência que, mais e mais, se assemelham a cópias malfeitas de algo que já foi bom.

“Amálgama”, o livro seguinte, vem com pedigree. Diz um adesivo canalhamente colado à capa que o livro ganhou o Prêmio Jabuti. Alguém deve ter ganho um bom dinheiro para dar esse prêmio, porque “Amálgama” é um livro pior que “Axilas”, por sua vez medíocre. A orelha do livro tenta dar à obra um significado maior do que aquela a que ela pode almejar. O que eu não sabia, quando li “Secreções, Excreções e Desatinos”, é que ali Rubem Fonseca tinha descoberto uma fórmula para salvar seus livros cada vez mais fracos, mais descuidados: aglutine os contos sob um tema geral e o conjunto talvez esconda o fato de que eles são ruins. Funcionou em “Pequenas Criaturas”, um pouco menos em “Ela e Outras Histórias”, mas não pode salvar “Amálgama”.

A angústia existencial dos personagens de Fonseca agora se resolve, quase invariavelmente, com o assassinato. Essa sempre foi uma constante na sua obra, mas agora, de tão repetido, e em situações tão simplórias, o recurso perde significado. Personagens cada vez mais mal resolvidos, mais implausíveis, delineados de maneira tão descuidada, parecem matar apenas porque matar é fácil, ou porque esse é o final que se espera de uma história de Rubem Fonseca. Não há mais criatividade ou pujança: a literatura de Rubem Fonseca hoje se resume à aplicação quase mecânica de seus trejeitos e fórmulas sobre uma situação qualquer, sempre fácil.

Esta resenha de Luís Augusto Fischer me parece adequada. “38 contos, todos fracos, vários muito ruins, um ou outro de dar dó” é algo que define, e com uma grande dose de compaixão, “Histórias Curtas”.

E então vem “Calibre 22”, o mais recente livro. O primeiro conto traz uma ironia verdadeira e uma atualidade temática que parece indicar que o velho Rubem, apoiador do golpe de 64 e roteirista do IPES, pelo menos transformou sua visão de mundo em literatura de verdade, sintonizada com seu tempo. É só ilusão, no entanto: a ele se seguem contos e mais contos que repetem as mesmas anedotas mal estruturadas, mal escritas. Até mesmo Mandrake (que já tinha sido muito maltratado em “Mandrake: A Bíblia e a Bengala”), personagem recorrente desde os anos 60, se torna apenas mais um nome, alguém sem história, sem razão de ser. O conto que ele protagoniza, e que dá título ao livro, é tão vazio que faz pensar por que Rubem Fonseca colocou o que é seu personagem mais conhecido para protagonizá-lo, porque podia colocar qualquer um.

Rubem Fonseca se transformou em um pastiche de si mesmo, e talvez a melhor imagem para ilustrar essa transformação seja o fato de que, neste livro, “O Cobrador” se transformou em “O Matador de Corretores”, quase uma paródia triste e senil de sua obra. A coisa se torna tão séria que, embora as críticas favoráveis continuem pululando como sapinhos numa lagoa, apreciações corretas do verdadeiro valor de cada livro se tornam mais frequentes. Como esta, de Sergio Rodrigues, que beira o desrespeito — ainda que justo.

São quatro livros de contos publicados em seis anos. É impossível deixar de desejar que Rubem Fonseca tivesse evitado publicar tudo aquilo que escreve, que tivesse elaborado melhor seus contos, separado o joio tão abundante do trigo cada vez mais escasso, porque o resultado seria melhor. Ao longo desses quatro livros, alguns contos apresentados como medíocres ou francamente ruins poderiam ter dado origem a algo realmente bom. Mas a pressa que se depreende de sua escrita parece ser existencial. Não interessa mais a qualidade. O que Rubem Fonseca quer é continuar publicando, porque apesar do que ele diz, a literatura ainda faz sentido, e é isso que nos mantém vivos. Mesmo que nos mate aos poucos.

8 thoughts on “Rubem Fonseca, 8 anos depois

  1. Eu, sinceramente, sempre achei o Rubem Fonseca overrated. Seu reacionarismo e ligações umbilicais com a ditadura militar e com as Organizações Globo explicam…

    • Só pra esclarecer que eu não valorizo ou desvalorizo um artista por seu posicionamento político. Só estou dizendo que o Fonseca é tão falado por ser de direita e ter sido serviçal da ditadura. Gosto do Elia Kazan e do Borges, dois reacionários. Por outro lado, acho o Ken Loach chatíssimo.

      • Os cinco primeiros livros de contos de Fonseca são brilhantes. A obra posterior é menor, embora tenha coisas excelentes. É uma obra que vale a pena conhecer.

  2. Rafael:

    Eu gosto do Rubens Fonseca, mas depois de ler o seu post confesso que tenho até vergonha de fazer um comentário devido a minha reduzida intimidade com a obra do dito cujo. Entretanto eu li, dentre alguns, O Buraco na Parede que você diz ser mediano e eu concordo pelo fato desse livro parecer ter sido escrito pela sua imitadora mais talentosa, a Patrícia Melo, escritora do famoso O Matador que se transformou no filme O Homem do Ano. Eu também li A Grande Arte e esse livro me causou uma surpresa porque, ao le-lo em um domingo chuvoso no centro de São Paulo, eu vi que pela primeira vez um filme, que é o filme A Grande Arte do Walter Salles, derivado de um livro era superior a esse, justamente por ser sucinto, . E olha que eu adoro o assunto facas, etc. mas, mesmo assim, prolixíssimo tem limite.
    Quando você fala da condescendência da critica, pra não dizer puxa-saquismo de ignorantes babões, eu acho que isso levou o Rubens Fonseca ao ponto que chegou hoje, pois ele já havia se esvaziado de inspiração lá no começo da década de “90, mas essa gente o empurra e ele parece que não tem outra saída a não ser produzir se escorando nos seus cacoetes, aceitar bajulações e seguir em frente, assim como o Vinicius de Moraes, que quando compôs a “obra prima” da música brasileira, A Garota de Ipanema, já tinha se esvaído como poeta, mas a condescendência da patuleia o perpetuou como um gênio perene, independente da qualidade da sua produção nos anos de decrepitude poética.

    Pra terminar: selo do premio Jabuti em um livro…

    • Serge, vou discordar em parte quanto a Vinícius. Porque eu acho que, como poesia e letra de música são coisas bem diferentes, Vinícius meio que se reinventou. Concordo quanto à decadência do poeta, e aceito que se pode dizer que canção é algo menos exigente que poesia, mas a contribuição lírica dele a partir dos anos 50 revitalizou a música brasileira. É só julgar por parâmetros diferentes.

  3. Sem dúvida Rafael, na minha pouca destreza com a escrita acho que me expressei mal. Eu realmente falava do poeta e, mesmo assim, comparando o com o seu auge. O Vinicius era tão talentoso que mesmo em forte decadência na poesia, como letrista de musica popular foi fabuloso. Ou seja, o pior do Vinicius ainda é melhor que todos os outros.
    Eu só citei Garota de Ipanema porque tanto poeticamente, ritmicamente e melodicamente a acho superestimada, mas não ruim, longe disso; coisa de músico.

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