Fiquei velho.
E cheguei à conclusão de que a única certeza na vida é a Bruna Lombardi.
Uns tempos atrás — mentira; isso foi há oito anos, mas o tempo para mim não passa mais como passava antigamente, o passado não tem mais meio-termo: ou foi ontem ou foi há muito tempo, o passado agora pode ser o que eu quiser, como quiser — passei uma noite vendo as novelas da Globo, depois de uns dez anos sem sequer ter TV aberta em casa. Tomei um susto porque não conhecia os atores novos, e os que conhecia d’antanho, outros tempos de dois canais que entravam no ar às nove da manhã, esses estavam velhos, velhinhos cujo ápice tinha passado. E se o tempo tinha passado para eles, provavelmente tinha passado para mim, também.
Aquilo me lembrou que à medida que meus dias neste vale de lágrimas vão encurtando, o meu passado se torna mais longo que meu futuro. É uma sensação estranha.
Deve ser a idade; mas chega o momento em que a gente precisa admitir que tem menos tempo pela frente do que para trás, que os anos já vividos são mais numerosos do que os que ainda se vai viver. Percebi isso quando entendi que a maneira como eu contava o tempo tinha mudado.
Resumindo, isso foi em 2010. Foi quando percebi que 1990 tinha sido vinte anos atrás.
Antes disso, à medida que os anos passavam eu vinha me acostumando aos poucos, de maneira indolor, a números cada vez mais inflacionados. Ainda lembrava de quando 1977 tinha sido “o ano retrasado” — lembrava do momento exato em que me assustei ao perceber isso, numa manhã chuvosa na rua John Kennedy, na Barra (em frente ao bar do Chico que ainda está lá, com o mesmo cheiro único), e sabia que essa tinha sido a primeira vez em que me apercebi que o tempo, afinal, era e não era relativo. Mas enquanto 1977 tinha sido há cinco, dez, trinta anos, estava tudo bem, o mundo continuava o mesmo. Porque quando eu lembrava disso, lembrava de um momento em que ainda era criança, e havia uma diferença muito grande entre o adulto assustado com o tempo que tinha passado e aquele menino perambulando pela Vila Velha do Pereira.
Essa diferença permitia que aquele momento se congelasse para sempre, enquanto permitia uma elasticidade e conforto na percepção do tempo que outros dias não permitiriam. Porque enquanto o tempo passava eu mudava, aos poucos mas com constância, e isso criava um universo de distância entre um adulto e uma criança, algo que os separa e os torna independentes, uma ruptura que, paradoxalmente, estabilizava as coisas. É um universo que pode ser de dois, cinco, vinte, cinquenta anos; não faz diferença, porque são pessoas diferentes. Em 1987, em 1997 ou em 2007, 1977 continuava no mesmo lugar e eu era outra pessoa.
Ao mesmo tempo, enquanto 1990 era o ano retrasado, ele continuava próximo, e o tempo não tinha passado para mim. (As pessoas reclamam que o tempo está passando mais rápido. A verdade é que a memória tende a fixar apenas o que é novo; e o ser humano não lembra das coisas — lembra na verdade da última vez que lembrou das coisas, e por isso as memórias tendem a mudar com o tempo. Por isso, quando se tem oito anos, seis meses duram uma eternidade; é tudo novo e a mente tem que processar muita coisa. Mas quando ficamos adultos, e como há pouca coisa realmente nova entre o que acontece, a memória tende a processar apenas o inédito e o tempo parece mais curto.)
Mas quando 1990 se tornou vinte anos atrás, passei a lembrar de um Rafael adulto, ou quase. Era o Rafael de então, o mesmo de hoje; o Rafael que estava se tornando Rafael Galvão porque começava a ganhar a vida escrevendo e tinha que assinar com um nome diferente do nome do pai. Era o mesmo Rafael, só que vinte anos mais velho.
Há uma infinidade de experiências e percepções novas que constroem um abismo quase intransponível entre o Rafael de 1977 e o de 1990; mas quase nenhuma entre o de 1990 e o de 2017. Há experiências novas, sim; mas o que importa é a maneira como você reage a elas, e essa maneira já não muda.
Aparentemente, o mundo em que vivo é o mesmo em que vivi nos anos 70, nos 80, nos 90 ou no início deste milênio, quero crer. Internet, satélite, celular, saco plástico no supermercado, freio ABS e um bocado de eletrônica no carro? Isso não é nada. Balangandãs, só. Uma roupa diferente, o rayon que era moda e depois virou brega, os jeans verdes e as camisas verde-limão no intervalo, dos quais ficou apenas o orgulho por não tê-los usado. Balangandãs, bugigangas do tempo.
Mas ao mesmo tempo, tanta coisa ficou para trás, tanta coisa mudou. À medida que o tempo passa, entendo que lembro de tempos diferentes, que garotos de hoje não conseguem entender. De tempos piores e melhores, tempos em que as pessoas tinham aprendido a se comportar com medo do que os generais iriam dizer, mas também tempos em que as pessoas não se irritavam porque não conseguiam lhe encontrar ao celular. Tempos em que era educado oferecer um cigarro antes de fumar, de cinzeiros na mesa de trabalho, tempos de ler o jornal e ficar com as mãos sujas de tinta. Esses meninos, a quem o mundo vai jogar o fardo de lhe carregar, não podem ver a queda do muro de Berlim, não sabem o que foi o dia 15 de novembro de 1989, não viram a Challenger explodir a professorinha, não puderam acompanhar as mudanças que eu vi, não entendem o meu mundo. Não podem entender, e para eles o impeachment de Collor é tão distante quanto o suicídio de Vargas era para mim. A eles o mundo que para mim ainda está em construção lhes foi dado de porteira fechada.
Muita gente enfrenta isso dizendo que “minha infância foi melhor que a sua”, tentando disfarçar o fato singelo de que estão ficando obsoletos, de que a pele se torna mais flácida, de que as carnes despregam dos ossos, de que os cabelos cada vez mais brancos rareiam, e de que sua infância foi apenas a que ele pôde ter, assim como a de hoje é somente a infância possível a esses meninos. Mas não há enfrentamento possível. O tempo passa, você está mais perto da morte, e ela virá — embora eu insista que, ao menos no meu caso, isso não é garantido; embora às vezes desconfie de que há uma boa probabilidade de algo tão deselegante acontecer a mim, uma probabilidade talvez tão grande quanto a de eu, que não jogo, ganhar na Mega Sena.
O mais fascinante em tudo isso é que a mesma tecnologia que ressalta essas diferenças é a mesma que torna a velhice mais complexa.
40 anos atrás, o passado só existia na sua memória. Às vezes existia também na memória de um amigo com quem você conversasse eventualmente sobre os bons velhos tempos, lembra disso, lembra daquilo? Fulano, o que foi feito de fulano? O passado estava no seu lugar, agradavelmente distante mas guardado à sua disposição, e era tão pouco diante do presente, às vezes do futuro.
Mas então veio a internet e a humanidade passou a poder compartilhar com os outros as suas próprias lembranças, algo que jamais deveria ter sido permitido, como jamais deveriam ter aberto a caixa de Pandora. Para algumas pessoas, a principal mudança que a tecnologia trouxe não foi o futuro: foi o passado. Não é o YouTube que vejo na minha TV, e transforma a televisão em algo assíncrono, que faz essa mudança: são os programas que encontro nele, programas que vi há 40 anos e que agora posso ver de novo, iguais ao que eram e diferentes do que eu lembro. É essa onipresença de um passado que se recria diante de mim, essa subversão da passagem do tempo que incomoda e reforça essa sensação.
A chegada do que devia ser o futuro, seu rebaixamento a presente, fez com que o passado mudasse, e por isso ninguém esperava. Às vezes pode-se ter a impressão de que as pessoas mudaram. Gente que nos anos 80 conseguiu a proeza de programar seu videocassete para gravar um filme na TV hoje compartilha não os filmes, mas os comerciais que os mutilavam, porque são eles que se tornaram raros. Tudo isso em um espaço de tempo que, do ponto de vista histórico, é menor que um átimo.
O passado faz escândalo diante de você, o seriado que você viu há 40 anos está no YouTube, no Mercado Livre alguém tenta vender a coleção de revistinhas que você leu aos sete anos, a edição exata do livro que lhe deu uma nova visão de mundo. E tudo isso adquire uma grandiosidade ainda maior porque esteve ausente da sua vida durante tantas décadas, que é como as coisas devem ser. O passado deveria ficar lá, no passado, recriado apenas no momento em que você quer recriá-lo, da maneira como você quer recriá-lo; e não jogado na sua cara, com a objetividade estúpida da gravação magnética, agora digital.
Rever agora um dos primeiros episódios do Sítio do Picapau Amarelo, que você viu há exatos 41 anos, quando você ainda nem era você, é uma experiência perturbadora. Porque a cena que você lembrava de um jeito na verdade ocorreu de outro, a câmera estava à direita, não à esquerda de Pedrinho. Tudo isso lhe tira o conforto de ter o seu passado do seu jeito; agora, nem o seu passado você pode ter. E do futuro, se o presente lhe foi generoso e lhe ensinou alguma coisa, você nunca foi dono.
Mas ao mesmo tempo o resto está lá, imutável; a mesma música, os mesmos rostos, as mesmas vozes. Há uma familiaridade inevitável e irrecuperável nesse reencontro, e ele transforma o não em sim, o sim em não, e ambos são reais e não deveria ser assim.
Porque tudo isso ajuda a romper o fluxo normal do tempo, a maneira como ele seguiu durante tantos anos, anos que você viu passar. Mas o tempo não é o verdadeiro criminoso: esse é você, a maneira como você o enfrentou ou se abandonou a ele, a maneira como os significados mudaram quando você se tornou menos do que sonhava em ser.
Por isso olhar para Bruna Lombardi me acalenta e me dá a sensação ilusória de que não, o tempo não está passando, é tudo a mesma coisa. Olhar para uma mulher que é bela em 2017 como era em 1977 dá uma sensação de permanência que poucas outras coisas em todo mundo podem dar. E sua visão oferece um aconchego que o mundo tende a lhe negar, às vezes com violência, às vezes com a delicadeza cínica e hipócrita devida aos velhos e anciães.
É quase como se 40 anos não se tivessem passado para Bruna Lombardi. Ela é a casa antiga da sua rua que ainda não foi demolida. Os mesmos 40 anos que passaram para você, e deixaram cicatrizes, quando maus; aprendizados, quando justos; saudades, quando bons.
E isso lhe dá a impressão falsa, que você traduz em esperança, de que o mundo ainda é o mesmo. Que essencialmente a beleza do mundo é a mesma beleza, e você é a mesma pessoa, ou pelo menos pensa que é, e isso é suficiente, tem que ser suficiente, precisa ser suficiente.
Belo texto.
Somos da mesma geração e vivo algo semelhante ao que você descreve. Aliás achei brilhante a sua tese de por que agora o tempo parece que passa mais rápido.
Só acho que os celulares e principalmente a internet trouxeram uma mudança profunda sim. Como aliás você meio que admite depois.
Eu concordo com você. As mudanças são enormes, mesmo. Só que desse ponto de vista específico, sua importância não está na ecnologia em si, mas no passado que ele traz de volta.
Quanto à tese, ela não é minha. Neurologistas descobriram isso e eu acho que faz sentido. Acrescentaria o fato de que o ritmo da vida tá mais rápido, o volume de informação é maior e com menor duração.
Rafael:
Você diz”Por isso, quando se tem oito anos, seis meses duram uma eternidade; é tudo novo e a mente tem que processar muita coisa. Mas quando ficamos adultos, e como há pouca coisa realmente nova entre o que acontece, a memória tende a processar apenas o inédito e o tempo parece mais curto.)”. Vendo por esse prisma, se continuássemos estudando somente coisas inéditas o tempo continuaria passando lentamente como na nossa infância?
Consolo: pelo menos você está vivendo no século 20/21 em que tudo que é legal foi inventado. Pense bem: na Roma antiga o carro era uma carroça puxada por cavalo; agora, já em 1.800, ou seja, mais de 2000 anos depois o jeito de se auto transportar ainda era uma carroça puxada por cavalo. Quem teve o azar de viver neste dois, ou mais, milênios passados simplesmente morreu sem ver nada das maravilhas que resolveram aparecer todas no do século 20, você viu tudo.
Eu, no alto dos meus 56 anos, faço do seu texto as minhas palavras. E a Bruna ainda é uma coisinha.
Acho que provavelmente sim.
E você tem razão. São tempos impressionantes, no que têm de bom e ruim. Mas todos os tempos têm coisas boas e ruins, embora como você lembrou nenhum teve tantas maravilhas, em tão pouco tempo. E ainda assim eu tô ficando ficando velho. 🙂
Está sim, felizmente.
Olhando pro Macca, de quem sou fã desde os 7anos de idade (tenho 48), tenho a sensação oposta. E o Lennon, como estaria hoje? E o Bird? Já pensou se o Charlie Parker tivesse chegado à velhice e se tornado um velho reacionário e materialista?
Em tempo, antes que retruquem que o Macca não está detonado, já digo que as plásticas me chocam muito mais que o “let it be”…
Eu acho o velho Paul bem velho, por um lado, poreque me acostumei com imagem dele nas décadas passadas (embora menos velho que no período imediatamente posterior à morte de Linda); por outro, me espanta a jovialidade dele. Não é mole fazer duas horas e meia de show. Mas o que me espanta mais é o cabelo pintado. Cabelo pintado é barra. Cabelo pintado é a negação dos anos 60.
E isso é mais grave quando penso que Macca é provavelmente o homem mais fotografado da história. Mesmo os não-fãs tiveram, de alguma forma, contato com a imagem do mop top do início dos anos 60 e, agora, por um desses fenômenos das redes sociais, com o velho que alcançou uma espécie de fama de Buda moderno, de lenda absoluta.Se ele pode ser visto como símbilo de permanência, é ao mesmo tempo uma prova incontestável da passagem sempre deletéria do tempo.
Concordo contigo. Cabelo pintado de fato é de lascar, ainda mais na tonalidade acaju Sarney….
Amigos:
Até os anos 80/90 e começo de 2000, parecia que o “Macca” não ia envelhecer nunca, com aquela sua cara de bebê, mas na hora que e idade chegou, veio com tudo, de forma inexorável.
Verdade. Acho que o processo de divórcio com a Heather Mills deram uma baqueada bem grande no cara.
“Deu”, né… É que eu ia colocr a morte da Linda também…
Pessoal, correção: sobre a “eterna” juventude do Macca, não considerem o ano 2000, aí ele já estava ladeira abaixo.
Sim, talvez a morte da Linda é que tenha detonado o processo. Linda, ao meu ver, foi uma grande parceira do Paul, embora muito criticada. Mil vezes ela que a fria e calculista Yoko…
Eu ainda vou escrever um post sobre a Yoko…
Por favor! Leio tudo o que você escreve sobre Beatles. Aliás, conheci seu blog porque o Idelber uma vez disse no blog dele (com razão, diga-se…) que você era o cara que mais sacava de Beatles no Brasil.
Wagner:
Isso é a mais pura verdade: ninguém sabe mais de Beatles no Brasil, quiçá no mundo, que o Rafael.