Os comentários do Thiago e do Serge sobre as razões para o crescimento do cristianismo em Roma merecem um post à parte. Ao contrário do Thiago, não acredito que o processo tenha sido mais ou menos como transformar Wall Street em um reduto marxista; ao contrário do Serge, acho difícil identificar, dentro do contexto histórico romano, a alegada superioridade do cristianismo. Essa, aliás, é uma noção bastante comum. É inerente às causas apontadas por Gibbon para esse crescimento, mas ele escreve dentro da tradição cristã, pressupondo ainda que inconscientemente uma certa superioridade doutrinária e histórica do cristianismo, e certamente não tem à disposição o volume de dados e análises que apareceram depois.
Primeiro é preciso entender o ambiente em que o cristianismo surgiu.
As religiões romanas, se podem ser chamadas assim, eram basicamente cúlticas, antes de doutrinárias. Mais importante que a crença em si era o cumprimento dos rituais. Cultuava-se um deus porque respeito lhe era devido; porque cumpria mantê-lo satisfeito para evitar que ele se irritasse e mandasse uma hecatombe como uma seca, uma enchente, ou mandasse sua sogra morar em sua casa; para conseguir alguma coisa — a cura de uma doença ou a vitória numa batalha, por exemplo; porque seus pais o cultuavam. Não era muito diferente do que vemos hoje. E como lembrou o Thiago, era algo mais cívico do que propriamente místico. Muitas vezes era o interesse da sociedade que estava em jogo, não a crença individual. Era uma espécie de imposto.
Um aspecto importantíssimo e determinante para o crescimento posterior do cristianismo é que os cultos romanos eram includentes. Ou seja, o fato de você cultuar o deus de sua família, ou da sua cidade, não implicava a necessidade de negação dos outros — nem da sua existência, nem da sua validade. Você podia passar a cultuar um novo deus sem precisar abandonar o que você já cultuava.
Além disso, a ideia de um deus hierarquicamente superior aos outros estava crescendo no mundo romano, em cultos como o de Isis ou do Sol Invictus, por exemplo. Se tornava mais comum, também, a visão dos diversos deuses e daemons como manifestações de um ser superior e único.
O mais próximo disso que temos hoje é o culto aos santos católicos. Você é devoto de Santa Edwiges, mas pode trocar para Santo Antônio daqui a pouco, ou apenas rezar para Santo Expedito em uma situação específica, e em nenhum momento você nega a santidade ou a força de Santa Bárbara ou Santa Zita. É fascinante como a Igreja Católica Apostólica Não Por Acaso Romana conseguiu acomodar, dentro de si, as práticas do paganismo romano.
Mas o cristianismo era diferente, e aqui está uma das principais razões para o seu crescimento: ele era excludente. Deus não pedia apenas que você O adorasse, como todos os outros: Ele também exigia que você negasse todos os outros. A bicha era ciumenta. Ninguém pode fazer ideia de quantas conversões se deram de maneira completa — para alguma parte dos convertidos, é bem provável que Jeová fosse apenas um novo deus superior aos outros, ao menos inicialmente —, mas de qualquer forma a exigência de exclusividade, mais cedo ou mais tarde, cobrava sua conta.
Um estudioso propôs uma situação hipotética que ilustra bem essa matemática. Imagine que numa cidade que cultua Minerva chegam dois pregadores, um cristão e um adorador de Esculápio. Cem pessoas vão assisti-los debater e pregar. No fim da sessão, cada pregador consegue convencer cinquenta pessoas. Parece um empate? Não é. No fim das contas, Jesus conseguiu cinquenta novos fiéis e não perdeu nenhum, porque mesmo os pagãos não se preocupavam em negar Sua existência. Mas Esculápio, Minerva e todos os deuses pagãos perderam cinquenta adoradores.
O cristianismo cresceu não pela oferta de aceitação de Jesus, mas pela exigência de negação dos outros deuses, como um cuco que precisa matar os filhotes dos outros para sobreviver.
De qualquer forma, isso só era importante, mesmo, dentro de outra característica única do cristianismo: o fato de que, acima de tudo, ela foi a primeira religião evangelizadora. Esse foi, talvez, o seu grande diferencial.
Nenhuma outra religião fazia algum tipo de esforço missionário. Conversões, como são entendidas hoje, eram um conceito estranho aos pagãos, porque para cultuar um novo deus não era necessária essa mudança absoluta de visão de mundo. Em termos religiosos, o mundo romano era extremamente tolerante.
Diferente delas, o cristianismo apostou no proselitismo. E mais que uma escolha, isso está no seu DNA.
Do ponto de vista da história judaica, Jesus foi um Messias absolutamente fracassado: não construiu reino nenhum, não resgatou nada. Ao contrário, foi executado por crimes contra o Estado. Assim, para seus seguidores a única forma de legitimá-lo como o Salvador foi fazer d’Ele não um rei secular, mas um redentor que veio salvar as almas imortais daqueles que O aceitam a partir do seu próprio sacrifício, ao mesmo tempo em que ameaça jogar todos os outros em algo pior até que Maricá. E se Deus amou a humanidade a ponto de sacrificar Seu filho por ela, era obrigação de todos os seus fiéis salvar essa humanidade, levar a ela a Boa Nova, dar-lhe a chance de se salvar.
Nisso, os cristãos estavam sozinhos. De certa forma, é quase como um time ganhando um jogo por WO.
O cristianismo cresceu no boca-a-boca, na convivência entre cristãos e pagãos, no trabalho de formiguinha. Cresceu no esforço sincero, altruísta e fanático dos fiéis para trazer mais ovelhas ao rebanho do Grande Pastor, e para isso é provável que a vida comunitária dos cristãos, os valores que professavam e sua ética social tenham tido algum papel. É muito fácil entender como funcionava: não é como uma Testemunha de Jeová batendo na porta de desconhecidos. Em vez disso, pense na sua vizinha bem-intencionada, sempre disposta a lhe ajudar sem pedir nada em troca, que vive lhe dizendo como a Igreja Universal melhorou sua vida, como tirou seu filho das drogas e salvou o emprego do seu marido — pense nela lhe chamando para ir a um culto, sem nenhum compromisso.
O cristianismo também cresceu principalmente entre a ralé, e é bom nunca esquecer isso. Não foi à toa que ele não conseguiu muito sucesso entre os judeus. Em vez disso, cresceu principalmente entre os pagãos pobres, mais tolerantes, mais abertos, criados dentro da noção de que não havia problema em cultuar um novo deus; e mesmo assim principalmente em segmentos intelectualmente pouco favorecidos, empobrecidos, ignorantes e incultos. Só no século IV começa-se a ver um número ainda pequeno de intelectuais cristãos.
Para essa patuleia, vulnerável e crédula, dois aspectos interligados devem ter sido importantes na criação de razões para a conversão: a ameaça de um inferno corroborada pela realização de milagres.
A literatura cristã fala de milagres quase tão grandes quanto o crescimento econômico do governo Temer com emprego informal. É preciso admitir: os cristãos nunca tiveram nenhuma vergonha de mentir descaradamente, de inventar as coisas mais mirabolantes se isso servia à sua missão.
Então como hoje, ninguém vê milagres acontecendo. Mas todos ouvem falar — olha aí o dr. Fritz ou Chico Xavier como prova —, e acreditam a partir daí, pelo desejo de acreditar e pela confiança em quem lhe conta deles. A força evangelizadora do milagre não está em seu acontecimento, mas na sua apresentação como fato e na fé de quem o utiliza como argumento. Não era diferente em Roma. A mensagem dos cristãos tinha como base um evento miraculoso, a ressurreição do Cristo que um primo do tio do cunhado da irmã do seu amigo tinha visto com seus próprios olhos; e a toda hora relatos de novos milagres apareciam. A literatura cristã, canônica e apócrifa, tem coisas do arco da velha: conversões imediatas de cidades inteiras, bichos falando, apóstolos matando e ressuscitando. Procure pelos duelos de São Pedro com Simão Mago, ou os Atos de João, um dos tantos apócrifos sobreviventes, e divirta-se com fábulas que deixam Hogwarts parecendo uma convenção de ateus materialistas. Mas elas funcionaram na época, mais ou menos como os martírios que foram pouquíssimos mas, recontados por cristãos fervorosos e fanáticos, viravam exemplos cabais e insuperáveis da força de Jesus.
O fato de esse ser um Deus pródigo na realização de milagres dava força à Sua maior ameaça: o desgraçado que não cresse n’Ele estaria destinado ao sofrimento eterno no inferno. Parece pouco cristão ameaçar as pessoas dessa forma, e ainda demoraria séculos até Dante nos mostrar a miséria que eram aqueles círculos, mas relatos detalhados nunca foram necessários: um Deus que fazia tantos milagres tinha força suficiente para lhe castigar de formas inimagináveis. O cristianismo cresceu também impondo o medo às pessoas, mais ou menos como uma milícia cobra proteção a um comerciante.
Mais tarde, quando o Império Romano entrou em crise, quando as ameaças bárbaras se tornaram mais presentes, com um imperador matando outro apenas para ser assassinado em seguida, o ambiente de incertezas e insegurança pode ter reforçado a mensagem apocalíptica dos cristãos. A promessa de um retorno iminente de Jesus, para acertar as contas com todos, e a oferta da ressurreição devem ter tido o seu apelo aumentado. Mas isso simplesmente não é relevante. O que importa é o inferno.
A conversão de Constantino é um excelente exemplo de tudo isso. Se se converteu por um sonho com Deus lhe dizendo in hoc signo vinces, ou depois de observar o crescimento do cristianismo entre seus soldados, ou por calcular que esse deus era mais forte que os de Maximiano — nada disso interessa: o fato é que ele é mais consequência do que causa do crescimento do cristianismo. Àquela altura, o cristianismo já tinha pelo menos 10% das almas do Império. Mais cedo ou mais tarde, canibalizando as outras religiões, ele seria dominante.
Claro, sua conversão deu início a um novo tempo. A boa vontade imperial e a construção maciça de novos templos favoreceram o crescimento do cristianismo. Provavelmente pavimentou o caminho para que as elites aderissem, também, vencendo o preconceito contra aquela religião de pobre e solidificando-a definitivamente. O Édito de Milão de 313 abriu as portas para a legislação anti-pagã de Teodósio 70 anos depois. O cristianismo se tornou totalizante, ameaçador, criminoso. Mas isso é outra história, e o resto é história.
Longe de mim ter alguma cultura digna desse nome a respeito desse assunto, mas a tese de que o cristianismo era mais doutrinário, excludente, linha-dura que o paganismo romano me lembrou algo que li no Bertrand Russell, em sua história da filosofia ocidental, sobre os judeus na palestina versus os judeus do exílio na Babilônia, depois da destruição do primeiro templo. Os desterrados eram muito mais linha-dura que os judeus “originais”, cujos hábitos já tinham relaxado bastante e até incorporado alguns paganismos, talvez porque para aqueles isso fosse necessário para sua sobrevivência como grupo coeso, etc. Enfim, se foi isso mesmo, talvez esteja no DNA dos monoteísmos…
Eu acho isso também. O mais engraçado é que os cristãos eram acusados de serem ateus. Mais do que acreditar no deus deles, eles negavam a existência dos outros. 🙂
No geral, concordo com o post, mas quem comparou a conversão de Roma ao Cristianismo com uma conversão de Wall Street ao marxismo foi Wagner. Eu só disse que Wall Street representa um conjunto de posições sociais e interesses mais restrito e definido (os caras sabem que a planificação econômica mata a atividade deles) do que uma sociedade complexa e imperialista (com uma classe dominante, classes subalternas, povos conquistados, colaboradores de Roma, etc.). E, como um adendo, que teoricamente alguém pode pensar como marxista e achar que o socialismo melhoraria mesmo a vida das massas e preferir continuar ganhando bem vendendo derivativos, junk bonds, etc.
“A literatura cristã, canônica e apócrifa, tem coisas do arco da velha: conversões imediatas de cidades inteiras, bichos falando, apóstolos matando e ressuscitando.”
Padre Manuel Bernardes, um dos clássicos da Literatura Portuguesa, falava de um santo cujas caminhadas eram acompanhadas pelas estrelas, que desciam do céu para iluminar seu caminho.
“Procure pelos duelos de São Pedro com Simão Mago, ou os Atos de João, um dos tantos apócrifos sobreviventes, e divirta-se com fábulas que deixam Hogwarts parecendo uma convenção de ateus materialistas.”
Na verdade, é um ponto interessante, sabia? Tempos atrás, li um texto no site de um think tank fundamentalista sobre os livros de Harry Potter e a principal crítica não era à suposta promoção da bruxaria e ao tom progressivamente sombrio da série como eu já tinha visto antes. A crítica era ao fato de que os bruxos do livro usam a bruxaria como uma tecnologia, com técnicas, regras, fórmulas de poções como fórmulas químicas, etc. Que isso era um exemplo da mentalidade materialista/humanista. Então, sim, aparentemente Harry Potter é muito ancorado na realidade para algumas pessoas…
E eu confundi tudo. Desculpa. 😉
Sem problemas.
“Sobre o crescimento do cristianismo em Roma”
Em suma: analfabetismo em massa da população, ou seja, ignorância em larga escala, mais maquina governamental, leia-se Constantino, fornecendo grandes incentivos e apoio irrestrito…cristianismo dominando Roma.
Só um porém, aí: a conversão de Constantino foi importante, claro, mas mesmo sem ela o cristianismo iria dominar o império romano. Crescendo a 2,5% ao ano, era só uma questão de tempo.
A própria expansão de uma seita proibida (com variações enormes no tempo e do espaço na intensidade da repressão) ou pelo menos desprezada já era um sinal do mal-estar psicológico das massas do Império e de que as molas do mecanismo estatal tinham emperrado.
Alguns autores apontam que o Catolicismo, embora não tão disseminado quanto em Roma na época de Constantino, parecia destinado a conquistar o Japão do Xogunato. Senhores feudais aderiam com famíliam servos e samurais, talvez sinceramente, talvez em busca de boas alianças com os europeus contra o governo central, provavelmente ambos.
Quando o Xogum decidiu que a disseminação da nova fé colocaria o governo dele a reboque de Roma, expusou os Jesuítas, desencadeou uma perseguição sistemática e brutal contra os conversos japoneses e fechou o país à influência ocidental até que, séculos depois, o Almirante Perry deu aos japones um ultimato para que o país se abrisse aos americanos. Um governo suficientemente determinado manejando um estado suficiente eficiente e destituído de escrúpulos e agindo suficientemente cedo pode travar a roda da história. Em algum momento, talvez por causa das rivalidades políticas, Rom deixou de ser este Estado.
As condições prévias para que Roma se cristianizasse são muito bem interpretadas por Michel Foucault no 3° volume de seu História da Sexualidade – O Cuidado de Si. Ele chega a dizer que a ética do cuidado de si, a igualdade legal entre homens e mulheres, o habito confessional epistolar e o exame de consciência do Estoicismo, a novidade de uma obrigação mutua de monogamia no matrimônio (que curiosamente só encontrava similar, por outras vias, no judaismo), a redução da importância das práticas homoeróticas, do desejo sexual e dos prazeres se comparado ao mundo Helênico – tudo isso fez com que o cristianismo caisse em Roma como uma luva.
O mesmo tema seria desenvolvido no inconcluso, mas ja publicado em francês, volume 4 – As Confissões da Carne, sobre a sexualidade sob o cristianismo hegemonico medieval desde os Doutores da Igreja ate pelo menos a escolastica e o surgimento das universidades.
Sobre isso, se se toma o belo romance de Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, se vê que o Imperador da Paz foi o único a combater frontalmente o cristianismo e ver ele uma ameaça capaz de infectar e destruir a laicidade do estado e da sociedade romana – mas Hélio Públio era tambem o mais fileleno dos imperadores, o unico que desprezava frontalmente o estoicismo, que teve abertamente um amante adolescente, que se casou com uma patrícia (ele proprio era equestre, outra dissonancia) por motivos claramente politicos e se recusou a ter filhos naturais, que deixou tres adotados para garantir uma sucessão estavel e plural ao Imperio, que tirou a cidade de Roma do lugar de unica metropole daquele imenso pais (e governou mais desde Atenas do que do Lacio), que cultivava habilidades de arquiteto e poeta (de novo bem mais proximo do universo do uso dos prazeres, grego, do que do cuidado de si, romano).
Ainda vale ler o texto de Freud, nao incluso nas Obras Completas, conhecido como “Manuscrito Inedito de 1931”, no qual antes mesmo de começar a esboçar seu Moises & O Monoteismo, faz uma curta mas agudissima conjectura de porque o cristianismo foi assimilado pelo mundo romano – uma delas é que a imagem de Cristo fornece uma satisfação homossexual sublimada sem igual, num mundo em que a homossexualidade ja tinha deixado de ser pratica central e ja havia ao seu modo se marginalizado…
Eu acho que Foucault estava equivocado. O problema nessa argumentação é que ele não percebe que parte do princípio falso de uma superioridade de valores. A verdade é que eles só são superiores depois de estabelecidos, depois que se afirmam como dominantes. Ao contrário, as práticas dos cristãos (com raras exceções) era consideradas repulsivas pela maioria dos romanos. Por exemplo, a obrigatoriedade de monogamia não era desejável nem na Idade Média cristã, quanto mais em Roma. E achar que uma religião se consolida pelo sofrimento e auto-negação que impõe me parece mais projeção de uma personalidade conturbada do que análise confiável.
Além disso, tomar literatura como referencial histórico é sempre complicado. Adriano não combateu ativamente o cristianismo. Pelo contrário, sua postura não foi diferente da maior parte dos outros imperadores, que os via como um eventual incômodo que não se transformava em ação política para todo o império. Alguns outros imperadores realmente bateram de frente com o cristianismo, mas bem depois: como Deocleciano, que instaurou a grande perseguição aos cristãos mais de 150 anos depois de Adriano, e depois dele Juliano, o Apóstata, que tentou restabelecer o paganismo
Quanto a Freud, bem… Eu realmente tenho dificuldade pra engolir essa história de Cristo como satisfação homossexual sublimada. Às vezes uma cruz é só uma cruz, sabe como é. O que eu posso contestar é que o homossexualismo nunca foi prática central em Roma, não como era na Grécia. Mas também estava longe de ser marginalizada, ou absolutamente condenada.