Júlia, Sabrina e Bianca — e Momentos Íntimos

Anteontem parei numa banquinha de livros e revistas usados no mercado, enquanto ia comprar camarão, e comprei também uma Sabrina e uma Momentos Íntimos.

Alhures nesta internet sem lei você vai encontrar resenhas e críticas bem fundamentadas de livros decentes, como os do Machado de Assis, Alex Castro e Luiz Biajoni. Aqui neste blog não há lugar para tantas sofisticações, e portanto seguem alguns comentários sobre essa categoria literária tão desprezada por aí.

Antes, no entanto, uma explicação.

Uns sete lustros atrás, quando eu ainda era criança, costumava acompanhar minha mãe ao trabalho. Nunca tinha o que fazer, mas uma colega dela, que trabalhava no turno anterior, era viciada nesses romances de banca: Júlia, Sabrina e Bianca. Na época eu lia compulsivamente o que quer que me aparecesse na frente, e além disso tinha algumas horas completamente livres em minhas mãos. Assim, ao longo de alguns meses, li dezenas desses romances, a ponto de entender perfeitamente a estrutura comum a todos eles.

Lembre-se, era o começo dos anos 80. Aqueles livros editados então pela Abril tinham sido publicados nos EUA e na Inglaterra cinco, dez anos antes. Suas protagonistas eram sempre garotas belas, às vezes belíssimas, mas sempre despretensiosas. Sempre jovens, sempre querendo saber bem mais que seus vinte e poucos anos; trabalhavam, modernas que eram, mas muitas vezes apenas como um esforço orgulhoso e sensato por independência, antes que a necessidade mesquinha e pouco romântica de garantir o pão com manteiga da manhã seguinte e a prestação da geladeira. Porque no fundo, como moças sérias e direitas que eram, o que elas queriam era casar. Como um plus a mais adicional, essas heroínas eram invarialmente virgens, e embora já demonstrassem sentir alguma vergonha por insistirem em ser moças à moda antiga (o que obviamente as qualificava mais diante de suas leitoras), estavam decididas a se guardar para quando o amor verdadeiro chegasse.

Para essas moças que toda leitora queria ser, o de cujus chegava na forma de um homem alto, másculo, forte, seguro de si, dominador, arrogante, com um je ne sais quoi de mistério e, quase por desígnio divino, rico. Tinha sempre um “olhar magnético” — até hoje, quando lembro desses livros, é essa expressão presente em nove de cada dez deles que me vem à cabeça: um “olhar magnético”, geralmente vindo de olhos cinzentos.

Ela se apaixonava perdidamente, loucamente, descontroladamente, e a paixão era obviamente recíproca. Eles começavam a namorar, mas em algum momento um mal-entendido os separava, normalmente resultado da grande paixão e da grande insegurança de ambos. Era a suprema vitória dessas moças: conquistar o macho alfa, fazê-lo menino de novo, inseguro diante delas. Claro que, no final, o mal-entendido se resolvia. E a moça virtuosa e forte em sua feminilidade e o homem poderoso mas subjugado pelo amor seriam felizes para sempre.

Aí pela metade dos anos 80 apareceu um novo título. Se chamava Momentos Íntimos e trazia uma diferença fundamental, ainda que com um atraso de dez ou vinte ou oitenta anos em relação à vida real: agora as moças abriam as pernas. Momentos Íntimos tinha esse nome porque aqui o véu casto do pudor não mais caía depois do beijo mais ardente; em vez disso, éramos brindados com descrições lúbricas da maneira como ele, amante insaciável e talentoso, a fazia descobrir um novo significado para a vida. É bom lembrar que até o meio do livro as moças, assim como suas colegas belas, recatadas e do lar em Júlia, Sabrina e Bianca, eram virgens. Mas agora hímens rompiam a três por quatro, como barragens em Mariana.

Era isso que eu queria rever quando decidi comprar os livros.

Escolhi com algum cuidado. Os que eu queria precisavam ter sido publicados na primeira metade dos anos 80, no caso de Júlia, Sabrina e Bianca, e na segunda metade no caso de Momentos Íntimos. Escolhi a Sabrina pela logomarca, minha velha conhecida, e a Momentos Íntimos pelo preço original, marcado em Cz$.

A Sabrina traz “Terra de Paixões”, de Janet Dailey, publicado originalmente em 1975 e, aqui, em 1983. Antes de me aventurar no conto de fadas tive um lembrete agradável de que às vezes o melhor de comprar livros usados são os brindes involuntários que você recebe. Nesse caso, ganhei dois vales-transporte de uns 30 anos atrás e uma xerox da carteira de identidade de dona Maria Luiza Teixeira dos Santos. As sucessivas donas desse livro também deixaram suas marcas. Uma rubricou seu nome com a data: 16/01/84; outra, pioneira da economia colaborativa, preferiu deixar seu veredito: “Muito boa. Agradável de ler, curiosa, diferente. 18/05/12, Aju”´.

Eu não queria diferente, eu queria igual. De qualquer forma, o nome da autora não me era estranho. Fui catar e ela está na Wikipedia. Morreu dia desses, não sem antes vender a bagatela de 300 milhões de livros. Dizem que inovou o gênero ao criar o “romance de western”. E “Terra de Paixões”, um dos seus primeiros livros e que ainda está no prelo, é exatamente isso: uma modelo linda e virgem e esforçada conhece um cowboy de rodeio com metro e noventa, belo, arrogante, infelizmente sem o clássico “olhar magnético”. Se casa por impulso, porque percebeu imediatamente que esse era o homem de sua vida, e vai para a fazenda nele no Novo México. O choque cultural causa problemas, o pobre vaqueiro rico se sente inseguro porque acha que ela não vai se adaptar à vida no campo, e naturalmente o orgulho de ambos os afasta. Mas ai de você, pessoa pobre do século XXI já descrente da felicidade que só se pode encontrar num homem alto, másculo, forte, seguro de si, dominador, arrogante, com um je ne sais quoi de mistério e, quase por desígnio divino, rico, se aposta que eles continuaram distantes um do outro: no final vence o amor, sempre o amor.

A Momentos Íntimos traz “Insensato Amor”, de Catherine Coulter, publicado originalmente em 1985 e aqui um ano depois. Pertenceu a dona Maria Juvanira Nunes, que o comprou em 24/01/1986 — não, 1987: ela tinha escrito 1986, antes de riscar e marcar a data correta. Ainda não tinha se acostumado com o novo ano.

Dona Coulter também está na Wikipedia, numa página que parece ter sido escrita por ela mesma mas sem o destaque de Mrs. Dailey. Neste livro a digna senhora conta a história de uma modelo linda e virgem que conhece um médico de metro e noventa, de olhos verdes (diabo, aqui também falta o “magnético”), atlético, bem-sucedido, 15 anos mais velho, por quem se apaixona perdidamente. Se no livro anterior a história é contada exclusivamente do ponto de vista da mocinha, aqui Coulter, menos talentosa em seu ofício, é uma narradora onisciente, e sabemos que o pobre doutor também está loucamente apaixonado, mas inseguro por ser tão mais velho e achando que a família dela não vai aceitá-lo; e então eles se afastam, apenas para se reconciliarem no final, que acaba lembrando o do filme Lover Come Back sem a graça deste.

Mas isto aqui é Momentos Íntimos, não é Júlia nem Sabrina nem Bianca; aqui a jurupoca pia e geme e grita. A primeira vez da mocinha deste livro é descrita em detalhes:

A língua ardente tocou-lhe o sexo, e foi como se seu corpo todo entrasse em comunhão. Nunca imaginara que pudesse existir um prazer tão intenso!

— Oh! Elliot… Não pare agora, por favor… — sussurrou, sentindo-se transportada para o paraíso.

Elliot afastou-se um pouco para admirá-la. Sentia-a reagir e beijou-a com sofreguidão, contornando-lhe a boca com a língua.

— Você é tão doce! — murmurou, segurando-lhe os seios.

Christine gemeu baixinho, contorcendo o corpo. Percebendo que ela estava pronta para recebê-lo, Elliot então penetrou-a lentamente, tentando não machucá-la.

Os dedos delicados cravaram-se nas costas largas. Christine sentia um misto de dor e desejo. Olhou atônita para o homem cujo sexo latejava dentro de seu corpo.

— Elliot! — chamou, num espasmo de prazer.

Sinceramente não sei o que é pior, se a penetração lenta por um sexo que latejava dentro do seu corpo ou os adjetivos ou os pontos de exclamação. Mas o fato é que milhares, muitos milhares de senhoras neste país afora compraram e leram esses romances, e eles, ainda que por uns breves instantes, tornaram suas vidas um pouco melhores, com mais fé no amor e mais poesia.

Ler esses dois livros me fez perceber duas coisas curiosas. Uma, bem boba, é entender que pelo menos uma das minhas lembranças estava errada: eu achava que o rompimento entre protagonistas vinha antes, e não a apenas algumas páginas do final, como nesses dois romances; mas isso faz todo o sentido do mundo.

A outra é, antes de tudo, uma impressão: essas moças não faziam sexo oral. Em Momentos Íntimos a protagonista é servida magnificamente várias vezes, mas não retribui. Puxando pela memória, não lembrei de nenhum caso semelhante em algum dos tantos livros que li. E acho que há uma razão para isso.

De uma forma estranha, esses livros eram feitos não apenas para que as mulheres sonhassem com um príncipe encantado, mas para aumentar sua autoestima. Não importa a mediocridade da escrita, as estruturas dramáticass sempre iguais; o fato é que elas davam voz às mulheres, ainda que dentro de um contexto que dificilmente uma feminista, mesmo em sua época, iria admitir. Aqui as mulheres eram princesas modernas. E receber sexo oral pode implicar mais poder do que fazer. Sem falar no que pode ser um certo pudor natural da época: aprendia-se na Socila que uma moça decente não devia falar com a boca cheia.

Agora fiquei curioso para saber como é que são esses romances hoje. As pessoas parecem continuar precisando de amor e de sonhos, mas já não parece fazer sentido dividir as linhas em com e sem sacanagem. Mulheres virginais parecem alucinações do passado e a inocência parece pertencer a outros tempos. As moças de Júlia, Sabrina e Bianca ruborizavam; as de hoje mandam nudes pelo WhatsApp? Essas dúvidas, neste instante, me intrigam. Acho que vou na banca e perguntar ao jornaleiro: “Por favor, o senhor tem uma daquelas Júlias, Sabrinas ou Bianca bem românticas?”

6 thoughts on “Júlia, Sabrina e Bianca — e Momentos Íntimos

  1. Ah Rafael!
    Lamento decepciona-lo, mas de 1985 pra cá, pelo menos no que tange ao que as escritoras acham que é o sonho das mulheres, nada mudou. Eu li um livro só da série “50 Tons de Cinza”, o primeiro, e embora o sadismo seja a linha mestra, e até isso é bem suave, o conteúdo geral é puro Momentos Íntimos, só que mais chato por conta das inúmeras paginas com mensagens de e-mail entre os dois pombinhos. Ou a cabeça e os desejos das mulheres são sempre os mesmos, ou as escritoras vêem as mulheres, ou seja, a si mesmas, sempre da mesma forma.

  2. Se elas enxergam da mesma maneira, e o livro vende milhões de exemplares, os desejos devem continuar os mesmos…

  3. Adorei seu texto.

    Fui leitora assídua dessas revistas na década de 90, quando eu era adolescente. Hoje, me atrevo a tentar escrever minha própria história porque não gostei do rumo que estamos caminhando. Parece que o machismo voltou com força e as mulheres são poços de excitação. O cara continua alto, atlético e bem-sucedido, mas basta um olhar magnético e elas já molham a calcinha. Rsrsrs

    Adorei suas colocações.

  4. Essas mulheres dos romances baratos não eram inocentes, sempre me pareciam sonsas e usavam a virgindade como barganha. Nem todas as mulheres atualmente trocam nudes no whatsapp. A aparência física dessas mulheres nos romances baratos, sempre ‘brancas e perfeitas’ influenciaram o inconsistente coletivo sobre associar padrão estético e racial com personalidade e estilo de vida de ”moça pura”. Na vida real, mulheres vulgares e homens machistas se atraem e se merecem, são lados opostos de uma mesma moeda.

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