O Luiz Schwarcz publicou uma carta aberta em defesa das redes de livrarias Cultura e Saraiva, que pediram concordata dia desses.
É curioso que, quando o sapato aperta no calo de algumas pessoas, elas de repente se arvoram em defensores de todos os calos do mundo, principalmente os pequenos, aqueles de que ninguém parecia se lembrar antes. A carta do Schwarcz parece ser um caso desses. Invoca a devoção aos livros, pede a união amorosa e idealista de editores, autores e livreiros — é, aqueles mesmos que editoras grandes como a Cia. das Letras e a Record, e redes como a Saraiva, sempre asfixiaram.
Se eu fosse um pouco mais cínico enxugaria uma lágrima furtiva pela dor da Saraiva e pela bondade insuspeita da Cia. das Letras. E não riria com incredulidade ao ver empresas — que fizeram suas fortunas investindo em um modelo predatório — pedindo a solidariedade dos antes esquecidos para ajudar essas coitadas altruístas, vitimadas pela concorrência desleal da internet e da Amazon. Felizmente a bondade que mamãe colocou no meu coração tem limite, e tudo o que eu consigo fazer é me perguntar: só agora? Só depois que a Civilização Brasileira, a Distribuidora de Livros Salvador, a Didática, a Modelo, que centenas de livrarias pequenas fecharam é que vocês vêm falar em “união pelos livros”?
Não. Desculpe, mas não. Eu estou pouco me lixando para o destino da Saraiva.
Trinta anos atrás, Aracaju tinha umas cinco, seis livrarias. Provavelmente não eram o suficiente para uma cidade do seu pouco tamanho, mas cada uma delas era o retrato de um modo singular de ver livros e cultura, o estilo do seu dono. A Didática tinha identidade específica, a Modelo tinha um jeito diferente, a Regina tinha cara própria. Salvador, tão maior, tinha muitas mais, tinha inclusive algumas pequenas redes locais como a Civilização Brasileira e a Distribuidora de Livros Salvador, além de uma infinidade de pequenas aqui e ali, algumas especializadas, outras não. Livrarias como a Estante na Alameda Antunes ou a Freitas Kanitz em Ondina, umas tantas na Praça da Sé onde hoje só existem armadilhas para turistas.
Todas elas desapareceram. Hoje, a única livraria local em Aracaju é a Escariz, que nasceu como banca de revistas há mais de 30 anos e aos poucos migrou para o mercado de livros. A Escariz representa uma resistência heróica (desculpe, eu não sei escrever “heroica”) a um sistema em que editoras e grandes redes se uniam para oferecer mais vantagens ao leitor, ao mesmo tempo em que as negavam para as pequenas livrarias.
Mais triste foi o destino de Salvador, que viu a Civilização Brasileira passar pela humilhação de tentar macaquear seu algoz, transformando-se por algum tempo num arremedo de algo que não deveria ser imitado jamais, antes de fechar definitivamente as portas. Há umas poucas décadas a Avenida Sete era repleta de livrarias; hoje as lojas onde funcionavam vendem bugigangas e badulaques e roupas vagabundas.
Isso, claro, não pode ser creditado apenas à ação predatória das grandes redes; é o resultado das mudanças urbanas causadas pelo crescimento das cidades, pelo surgimento dos shopping centers, pela mudança de padrões culturais. Mas as redes foram um instrumento importante na derrocada das livrarias, e com isso, o que a cidade perdeu foi muito mais que alguns lugares onde comprar livros. Não apenas porque todas elas tinham algo em comum, a individualidade. Nem porque eram obras de pessoas mais interessadas em realizar suas próprias ideias de mundo do que em ganhar carroças de dinheiro, e portanto não eram, nem podiam ser, criações de entrepreneurs, de executivos modernos, de gente que quer apenas ficar rica, tanto faz se vendendo ideias, papel ou linguiça. Mas porque a cada livraria que fechou as portas na Avenida Sete ou no Calçadão da João Pessoa, as cidades morreram um pouquinho.
Não quero que fique a impressão de que estou dizendo que “naquele tempo era melhor”, porque não era. O mundo das pequenas livrarias era restrito, limitador. Mas elas tinham uma ligação orgânica com suas cidades, refletiam suas comunidades de uma maneira completamente inversa à de livrarias como a Saraiva, que impõem o seu modelo pasteurizado independentemente de onde se instalem.
Foram essas livrarias, retratos únicos das cidades onde estavam, que redes como a Saraiva e a Siciliano engoliram sem pena e sem cartinhas. Ninguém fez apelo bonitinho quando a livraria da esquina fechou as portas diante da concorrência impossível das grandes redes. E agora, quando o Schwarcz lamenta que “muitas cidades brasileiras ficarão sem livrarias”, só pode estar brincando. Para começar, a maioria das cidades pequenas do país já não têm livrarias há muitos anos, e quando essas cidades precisaram de uma, nunca interessou à Saraiva ou à Cultura abrir uma lojinha nelas. Ele certamente se refere às médias, aquelas onde a Saraiva dizimou a concorrência disponibilizando descontos oferecidos apenas a ela por editoras como a do Schwarcz.
Pior que isso, esse apelo é extemporâneo e inútil. Pequenas ou médias, essas cidades já não precisam da Saraiva, ou de qualquer outra rede.
Dia desses comprei “Os Anos 20”, de Edmund Wilson, livro que quis mas não tive dinheiro para comprar uns 30 anos atrás. Comprei também “Olympia”, de Otto Friederich, livro que quis mas não tive dinheiro para comprar uns 25 anos atrás. Ambos usados, já saíram de catálogo há alguns anos. E não foi na Saraiva, na Cultura ou mesmo num sebo local: foi na Amazon. Foi ela quem mitigou a ausência de livrarias.
Não é só isso que, na carta do Schwarcz, soa falso e até desonesto. “Com a recuperação judicial da Cultura e da Saraiva, dezenas de lojas foram fechadas, centenas de livreiros foram despedidos, e as editoras ficaram sem 40% ou mais dos seus recebimentos – gerando um rombo que oferece riscos graves para o mercado editorial no Brasil”, diz Schwarcz. Vamos falar a verdade. Dezenas de lojas foram fechadas — confere, embora ele se refira a redes como a Fnac e Saraiva. Editoras ficaram sem 40% ou mais de seus recebimentos depois de apostarem num modelo que prejudicava as pequenas livrarias — confere, e é essa a razão dessa carta. Centenas de livreiros foram despedidos — epa.
Se ele se refere aos vendedores da Saraiva, meninos mal pagos e explorados e sem conhecimento real do mercado editorial, chamá-los de “livreiros” é um desrespeito às centenas de pessoas apaixonadas por livros, que tocavam negócios além do comercialmente viável, e que foram tiradas do mercado pelas Saraivas da vida. Livreiro é outra coisa. Livreiros são aqueles de quem a Saraiva veio ajudando a tirar empregos e ganha-pães há décadas, com a ajuda das grandes editoras. Sempre em silêncio, acompanhados de pequenos choros aqui e ali, mas que ninguém fazia questão de ouvir.
Não, não, eu não vou chorar a morte da Saraiva. Sua eventual falência não me vai me dizer absolutamente nada. A vida é assim mesmo — devem ter sido exatamente essas as palavras ditas quando a Civilização Brasileira fechou. Agora é a minha vez de louvar a lógica fria da consolidação de mercado e do ganho de escala que fez da Saraiva um instrumento de destruição das pequenas livrarias, a mesma que agora faz da Amazon a guilhotina no pescoço das “megastores”. Foi na Amazon, aliás, que aprendi que, procurando, posso comprar livros novos — inclusive livros da própria Companhia das Letras — por preços muito mais baixos, como meu pai me ensinou há quase 40 anos numa Civilização Brasileira da Avenida Sete e que as Saraivas da vida tinham tornado coisa do passado.
Desculpe, mas para mim essas redes de livrarias podem morrer, com seus descontos insuficientes, com seus cafezinhos de dez reais, com seus iPhones e Blu-Rays. Para mim, a Saraiva já vai tarde.
Ufa! Se eu me senti bem lendo esse post, imagino você ao escrevê-lo. Fico pensando, pensando em como torná-lo melhor, mas… impossível. É isso a que chamam de catarse?
É mais ou menos isso, Caliban. Mas eu chamo de raiva e schadenfreude, mesmo.
Rafael:
O engraçado que a crise é pegou muito forte justamente pra esse dois monstros predatórios, porque a rede de livrarias Leitura vai terminar esse ano com 70 lojas em todo o pais, abrindo uma média de seis lojas por ano. Diz o dono da Leitura que sempre que um loja da prejuízo por mais de dois anos ele fecha a loja evitando assim o colapso da rede. Diz também que não usa financiamento bancário para crescer, assim o lucro, apesar de apertado, é certo. A maior parte das livrarias abertas pela Rede Leitura nos últimos tempos estão localizadas no Norte, Nordeste e Centro Oeste.
A Saraiva e a Cultura adoravam “vender” abaixo do custo para fechar as pequenas livrarias, deu no que deu.
PS. Sobre Livreiros: fui à Saraiva e pedi O Príncipe, do Maquiavel. A pessoa que me atendeu, uma mocinha, me pediu pra segui-la e percebi que ela estava indo para seção de livros infantis. Pensei “será que ele pensa que pedi algo como O Pequeno Príncipe?” Ao chegarmos na seção infantil, ela foi a até a estante e, acredite, pegou O Príncipe, do Maquiavel”. Ela achou o livro com tanta precisão que eu não tenho dúvida que foi ela que o havia colocado ali. “Livreiros”!
Algo me diz que a Leitura vai tomar o lugar da Saraiva. Grande rede, força para conseguir descontos… Tem a vantagem de não recorrer a bancos, o que é algo que faz toda a diferença, mas o que fica é a sensação de que a história se repete.
Pode ser.
Este texto me assustou pelo quanto poderia ser eu escrevendo-o, considerando as experiências que o embasaram.
Soteropolitano, mais de trinta na cara, passei minha vida escolar inteira fazendo compras nas inúmeras livrarias da Avenida Sete atééé a Joana Angélica. Saíamos daqui de casa (moro nas imediações do Campo Grande) e começávamos a peregrinação, de loja em loja. E, quando não havia um certo título em uma, o que se ouvia era “aqui acabou, mas tente na dali da esquina que eles devem ter ainda”. Nem parecia concorrência (não serei pueril de negá-la, contudo), mas parceria entre todos os envolvidos.
Era na Distribuidora da João das Botas (que, mais tarde, fechou para dar lugar a uma farmácia Santana, que, mais tarde, tal qual a Distribuidora, sucumbiu e fechou, por não conseguir concorrer com as Farmácias São Paulo e Drogasils da vida e do bairro), era lá que, em tenra idade, minha mãe me levava para passear (o lote era enorme e apinhado de prateleiras de todos os tipos, por todos os lados) e escolher os primeiros títulos de literatura infantil que despertaram o leitor em mim.
Foi numa livraria da Praça da Piedade, ao lado da antiga Secretaria de Segurança Pública e em frente à Faculdade de Economia e Contábeis da UFBa, que eu pus as mãos na minha primeira edição de Apanhador no Campo de Centeio (comprei o original em inglês anos mais tarde, numa outra ocasião). Lembro como hoje, eu, recém-admitido no curso de Direito, questionando absolutamente tudo na minha vida (inclusive que diabos estaria eu fazendo numa faculdade de Direito), faltando a aulas matutinas no prédio da Graça, para ir me espantar, a três quilômetros dali, com a prosa de Salinger, antes de finalmente adquirir o volume no mesmo estabelecimento.
Lembro, mesmo antes da graduação, em épocas de vestibular (ainda existe isso?), eu indo na Civilização Brasileira do Shopping Barra terminar de ler títulos da literatura indicada para as provas de Português da segunda fase. Não era grande dificuldade; o silêncio sepulcral, malmente entrecortado pela baixa música ambiente (sempre de ótima qualidade na loja), a iluminação intimista e acolhedora, precisa, mas convidativa nas suas sombras e eventuais cantos escuros, tornava, não raro, a experiência in loco ainda mais prazerosa que a simples leitura doméstica. Li “O Largo da Palma” de Adonias Filho ali, de cabo a rabo, numa única ida. Tenho dúvidas se as pessoas ainda conseguem coisas assim nessas megastores, inundadas de pessoas (e quase nenhuma delas lendo, por sinal).
É com pesar e melancolia que vejo essa miscelânea de lembranças esvanecer, como os lugares físicos a que elas me remetem. É com esses mesmos sentimentos que contemplo a escalada da anti-intelectualidade em nosso país. Se antes, com mais oferta e descentralização de fontes, já encarávamos os desafios de um país de relativamente pouca leitura (não só em praticantes, mas em horas a ela dedicadas), temo pelo que será de nós agora, com poucas opções de ambientes (e de má qualidade), os quais, mesmos estes, agora minguam como os anteriores que foram por ele enterrados. Um país sem espaços seguros para quem está aberto à alteridade, a se surpreender com algo anteriormente impensável, enquanto escancara uma obra qualquer.
Triste sina a da nossa civilização brasileira, sem maiúsculas.
Thiago:
Tem coisas que passam e não tem volta mesmo que sintamos muita falta. Eu gostava da segurança de poder alugar filmes (alguns, várias vezes para re-assisti-lo) na mega locadora que ficava perto da minha casa; os filmes que havia lá não tem para baixar na internet e nem em lugar algum. Acho que livrarias vão pelo mesmo caminho.
Putz, esse “vê se tem na livraria da esquina” é algo fantástico, típico de um outro tempo e de respeito às pessoas.
É isso: as lembranças das livrarias se confundem com as lembranças da cidade
E “O Apanhador” me traz outra clembrança curiosa. Eu o comprei na Livraria Brandão, lá na rua Rui Barbosa. Mas comprei junto com Crime e Castigo, comecei a ler os dois ao mesmo tempo, e a concorrência foi desleal: acho que por isso eu achei o livro muito fraco. Só uns quinze anos depois, quando li a versão original, consegui perceber a maravilha que ele é.
Serge, a quais filmes você se refere?
A Biografia, em duas partes, eram duas fitas, do mafioso Joseph Bonano, por exemplo.
Mais acertivo, impossível!
E eu acrescentaria a inaptidão da ingerência da Saraiva, que eu como ex funcionário – que falava que nem um doido na loja de Uberlândia, MG, cortava um dobrado,assim como tantos outros, fomos com o tempo trocados por procedimentos que visavam mais a idiotizacao da cultura literária do q a qualidade. Duplas funções e total descaso por parte dos rhs inexistentes nas lojas, além de outros absurdos trabalhistas que passávamos. So isso bastaria pra engrossar o corpo de “já vai tarde”, mais tbm a evidência de quanto o mercado literatura brasileiro se rendeu ao mercantilismo boçal e anticientifico, vazio, modista, tentáculo da pauta de extrema direita “revisionista” e do plano de emburrecimento da nação por livretos de youtubers néscios e panfletagem mal caráter, em detrimento a uma literatura mais urgente é a escassez programada de títulos mais úteis para entender a realidade w vivemos. Como ex livreiro vi um lugar onde me sentia bem, é que tinha como refúgio, trabalho e fonte de conhecimento sadio virar uma banca de “qualquer negócio”, de comércio sensacionalista e consumismo estúpido. Realmente vai tarde, mas o buraco q abre não é agradável.