A reação à declaração do tenente expulso do Exército, Jair Bolsonaro, de que podíamos perdoar o Holocausto, mas não esquecê-lo, é uma mostra do quão míope e desconectada da realidade está uma parte da esquerda, pelo menos essa que parece militar em posts de Facebook e respostas inteligentes no Twitter.
O Holocausto se transformou em um trunfo histórico e político para o movimento sionista. Golda Meir mostrou entender isso perfeitamente ao dizer que “depois do que fizeram conosco, podemos fazer tudo”. É o que justifica a atuação de grupos como o Yad Vashem, que se recusa a aceitar homossexuais, ciganos e comunistas como vítimas do Holocausto, e o que motivou o protesto preconceituoso de certos setores judeus nova-iorquinos quando, no início dos anos 1990, um museu tentou promover uma mostra sobre essas vítimas do Holocausto. Em grande parte, essa é a justificativa subjacente ao colonialismo agressivo e ao genocídio que Israel executa há décadas na Palestina.
Mesmo gente mais ilustrada tem dificuldade em compreender a dimensão tenebrosa da Solução Final. Certos setores do movimento negro, por exemplo, tentam (inadvertidamente ou não) relativizar o Holocausto comparando números com outro crime contra a humanidade, a escravidão africana nas Américas, sem entender sequer o mínimo: que para além da questão racial inerente e justificadora, a escravidão tinha motivação e racionalidade econômica, enquanto o antissemitismo não tem nenhuma — ao contrário, é absolutamente irracional, ódio puro que deve ser materializado não importa o custo econômico. Escravizar negros gerava lucro; matar judeus representava um prejuízo que valia a pena diante do ódio aos “assassinos de Cristo”.
E no fim das contas nada disso quer dizer alguma coisa para 95% dos eleitores de Bolsonaro.
Analfabetos políticos e simplórios, eles estão absolutamente alheios a questões históricas como essa. Para eles, o Holocausto representa pouco ou nada. É algo que, quando ouviram falar, sabem ser errado, mas que já passou e não afeta suas vidas. Não têm a dimensão do horror, e para eles Auschwitz é algo quase tão distante, e sem nenhuma conexão emocional, quanto a batalha de Hastings.
Para esses eleitores, quando Bolsonaro diz que “podemos perdoar o Holocausto, mas jamais esquecer”, ele não está subscrevendo o nazismo, não está justificando suas ações, não está se posicionando a favor desse crime. Fora do sectarismo militante, pelo contrário, para seus eleitores ele mostra uma faceta que seus opositores não conseguem ver nele: um governante tolerante, moderado. É o contrário do psicopata fascista que seus opositores enxergam, e do idiota funcional, reacionário, ignorante e despreparado que ele realmente é. E nesse caso, ele é transformado, para aqueles que o elegeram, em vítima.
Ainda mais triste — ou talvez mais uma prova desse entrincheiramento intelectual míope — é que eles não conseguem ver que algo semelhante aconteceu com Lula. Quando ele traduzia posicionamentos mais complexos em palavras simples, quando dizia que “a gente não vai pagar a conta dessa crise criada pelos louros de olhos azuis”, ele era rechaçado pela elite, que o acusava de analfabeto — enquanto se fazia entender pela patuleia, que era o que interessava a ele. Bolsonaro faz isso de maneira mais simplória, talvez até involuntária.
O resultado é que o eleitor médio de Bolsonaro continua se identificando com ele. Com as barbaridades que diz, com a incompetência verbal. Esses eleitores foram educados, ao longo de quase 40 anos de exercício da democracia em eleições, a descrer de promessas de campanha de candidatos e confiar no seu “bom senso” e na opinião majoritária de sua comunidade. Eles veem no idiota twitteiro o seu mesmo padrão de comportamento, de pensamento, o mesmo modo de ver o mundo e se posicionar diante dele.
Talvez o fenômeno mais curioso nessas eleições tenha sido o número de famílias de latrocidas, de gays e negros que votaram nele. Para eles, o discurso identitário nunca surtiu efeito. Eles focaram seletivamente naquilo que lhes: o discurso do combate à corrupção, da restauração da ordem, do fim de privilégios que só os outros têm, do conservadorismo de costumes que representa uma estabilidade existencial perdida há muito tempo (se é que alguma vez existiu). Anos de bombardeio da mídia contra a corrupção inventada pelos petistas o tornaram descrente e radical, infelizmente com a ajuda alegre de uma parte do PT. E o crescimento da penetração das redes, da possibilidade do compartilhamento em massa de ideias semelhantes e compreensíveis, ainda que estúpidas, lhes deu força e autoafirmação.
É isso que essa parte dos seus opositores não consegue enxergar. É um problema que aparentemente tem origem no momento em que o Muro de Berlim caiu e a esquerda perdeu o referencial ideológico e concreto do socialismo. Órfã, se tornou presa fácil para a dominação das pautas identitárias, que sobrepunha questões de gênero e étnicas à luta de classes.
Desde o início, quem conseguia ver um pouco além dos posts lacradores de uma esquerda que achava que todo mundo ia se afastar de Bolsonaro pela sua homofobia, pelo seu racismo, pelo seu machismo delirante, tinha muito mais medo da sua incompetência e do seu despreparo. Mas a guerra de informação que se travou nas redes, especialmente no WhatsApp, se deu a partir de uma militância que privilegiava esses argumentos — que, no fim das contas, apenas galvanizavam a certeza de cada lado de que ele é que estava certo, levando a um impasse infértil que ajudou, mesmo que pouco, a beneficiar o candidato de uma direita desesperada.
É uma esquerda que se recusa a compreender as consequências sociológicas do crescimento do neopentecostalismo e sua teologia da prosperidade; que denuncia acertadamente que negros são as principais vítimas da violência, mas convenientemente esquece o que essas vítimas sentem na pele: que negros são também os perpetradores imediatos dessa violência.
Mais importante, não consegue entender as mudanças profundas que o capitalismo vem atravessando, possibilitadas pela tecnologia, e que transformaram profundamente a natureza das relações de trabalho. O sujeito que trabalha no Uber, o motoboy, o ciclista do Uber Eats, o caminhoneiro que está pouco se lixando se os subsídios que Bolsonaro prometeu há pouco vão beneficiar principalmente os fabricantes de pneus, os milhares de MEIs que aos poucos se tornam a norma nas relações trabalhistas representam uma mudança profunda e irreversível, que afeta profundamente a maneira como essas pessoas enxergam as pautas da esquerda. Para elas, que se veem não como explorados, mas como agentes autônomos, e que acham que seu sucesso depende apenas do seu próprio esforço, questões como previdência e pisos salariais representam antes de tudo a defesa de privilégios que certamente não são seus.
É com essa realidade complexa, em que certo e errado são cada vez mais fluidos, verdadeiros ou falsos apenas para um fragmento da sociedade mas não para outros, e que são definidos por experiências muitas vezes conflitantes, que essa esquerda teria que lidar — mas suas pautas identitárias impedem isso. Em vez de tentar compreender e lidar com esses processos, essa esquerda se esbalda em estultícies como o conceito de apropriação cultural.
As classes dominantes deste país nunca tiveram medo de se jogar aos crocodilos, se isso impedisse a esquerda de assumir o poder e promover mudanças estruturais que temem quase irracionalmente, em parte pela ignorância atávica e provinciana que lhe é característica e que fez, por exemplo, os médicos cearenses que foram vaiar os cubanos do Mais Médicos se espantarem ao ver que em Cuba há médicos negros. Já tinham feito isso com Castello Branco, e mesmo com Fernando Collor. A diferença é que agora, com a internet dando voz a uma legião de imbecis que sequer sabe escrever — e que se recusa até mesmo a confiar no corretor ortográfico do Microsoft Word —, quanto mais pensar política, essa burguesia tem ao seu lado uma camada de gente ignorante, preconceituosa e burra que assume como seu esse discurso. Eles, a propósito, são um indício de que em algumas coisas Marx estava errado. O barbudo não conseguiu prever que poderíamos viver a ditadura do lumpemproletariado.
De qualquer forma, são essas pessoas que ajudarão a decidir o futuro do país, e é com elas que se precisa dialogar. Mas essa esquerda parece não entender que política não é uma disputa para ver quem está moralmente certo ou errado. Infelizmente, é essa a base dessa esquerda identitária, aparentemente mais interessada em se afirmar diante de seus pares do que em conseguir conquistas tangíveis, mais interessada em fazer valer sua visão sectária de mundo do que em efetivamente mudá-lo.
A era dos presidentes da república semi analfabetos, grosseiros e pouco afeitos as letras, foi inaugurada com o Lula e não parece que vai acabar tão cedo.
“É uma esquerda que se recusa a compreender as consequências sociológicas do crescimento do neopentecostalismo e sua teologia da prosperidade; que denuncia acertadamente que negros são as principais vítimas da violência, mas convenientemente esquece o que essas vítimas sentem na pele: que negros são também os perpetradores imediatos dessa violência.”
Ainda neste tema, boa parte da esquerda dava a entender que a demanda por segurança pública era ou frescura burguesa ou coisa de amante de esquadrão da morte. Dava a entender que era uma maravilha que milhões de brasileiros na prática tenham sido subtraídos da autoridade — e, consequentemente, da proteção — do Estado e entregues à autoridade dos traficantes. Quase como se as comunidades controladas pelo crime fossem exercícios em poder popular. É a contraparte esquerdista da quedinha de parte da direita, incluindo o Capitão, pelas milícias.
Pior: não dá nem para dizer que a complacência com o crime tenha resultado em uma polícia mais obediente à lei ou em um sistema judicial mais deferente aos direitos dos suspeitos e prisioneiros. Basta ver o que a polícia de um governo “amigo” do PT, o do PMDB no Rio, fazia. O caso Amarildo é um exemplo.
Sim, a postura de Bolsonaro na questão da segurança pública é um convite a um banho de sangue e, mesmo na mais otimista das hipóteses, incita os agentes de segurança (que, admita-se, têm um trabalho duro) ao desrespeito aos direitos básicos dos cidadãos e a “atirar primeiro e perguntar depois”. Causa, porém, nojo ver esquerdistas que só descobriram agora que há um problema de violência sério no Brasil, que morre gente (inclusive quem não tem absolutamente nada a ver com o assunto) quando há confrontos entre polícia e criminosos e que os negros estão desproporcionalmente expostos à violência de modo geral e à arbitrariedade policial em especial. Por onde andava essa gente entre 2003 e 2016?