Dia desses me bati com um depoimento de uma francesa no Quora dizendo que essa conversa de gauleses cheirarem mal é mentira, que isso não existe, que eles fazem os melhores perfumes do mundo.
Qualquer pessoa pode contrapor essa afirmação delirante com mais que o senso comum. Por exemplo, com estatísticas sobre o uso de sabonete — os franceses não são muito chegados nessas sofisticações e as consomem bem menos que outros povos europeus. Eu poderia contradizer essa moça com uma história pessoal muito triste.
O fato é que quando vejo um francês dizendo com a cara mais sonsa que “nóis num fede não” a vontade que dá é de dar uns tapas para ele deixar de ser cínico desse jeito. Alguém devia deixar a polidez de lado e dizer na lata que eles fedem, sim. Fedem muito. Pegue um metrô em Paris no verão ou num dia de chuva para você ver uma coisa. Quantas vezes vi senhoras com cabelos literalmente duros de tanta sujeira acumulada, o tipo de cabelo que a gente cá na Ilha de Vera Cruz só vê na volta dos blocos de carnaval em Salvador. Uma vez, em Londres, uma senhora loura, gordota, entrou numa loja de camisetas em Camden. Fedia, fedia, fedia. “Saporra é francesa”, pensei. Se eu tivesse falado em voz alta perto de outras pessoas teria falsamente me arrependido imediatamente pelo meu preconceito, com a hipocrisia diante dessas coisas que me é peculiar, mas teria ao menos o consolo de estar certo assim que ela abriu a boca e lascou um combien.
Mas nada pode se comparar ao dia que, até hoje, às vezes lembro em sonhos, pesadelos dos quais invariavelmente acordo suado, gritando, pedindo ajuda a um Deus que nunca, nunca, nunca me ouve.
Tem alguns anos, isso, quase dez. Eu descia o boulevard Saint Michel e entrei numa Gap porque resolvi comprar uma camisa.
O provador da loja era no subsolo. Lá fui eu, com duas camisas — iguais, mas de cores diferentes — que, se bem sucedido, me fariam parecer um marinheiro marselhês, e quem sabe eu não poderia vir a ser um dos ajudantes do Conde de Monte Cristo, ou pelo menos me enturmar com a Brigitte Bardot e a Isabelle Adjani. A camisa eu já tinha.
Infelizmente o provador estava ocupado. Fiquei por ali, olhando as modas bagunçadas em volta, até que o sujeito saiu do provador.
Era um francês típico, coisa que para mim, turista invariavelmente embasbacado, era algo cada vez mais raro. Naquele ano mais que em outros: graças a Lula, eu nunca tinha visto tanto brasileiro nas Oropa, e ali, em Paris, em todo lugar que se ia o português com sotaque paulista ou carioca se fazia presente como na feira de Caruaru.
O patrício que saía do provador parecia saído de um livro de Simenon: era muito branco, cabelos pretos, alto, magro, o nariz aquilino de De Gaulle. Trazia um pulôver furado, mas do jeito que ele olhava para o mundo, aquilo parecia mais charme do que pobreza. Um francês. Se eu, paraíba, saísse com uma roupa furada daquele jeito olharia para as pessoas pedindo desculpas por existir — mas ele, francês, não estava nem aí.
Assim que ele saiu do provador, eu entrei. Não devia ter feito isso. Devia ter esperado algumas horas, talvez dias. Melhor, devia ter ido a outra loja, no boulevard Magenta tem umas lojas tipo sulanca que acabariam sendo uma escolha melhor. Era melhor ter pego o próximo avião de volta para o Brasil, era melhor me deixar chicotear por dez mouros cegos. Eu teria sofrido menos.
Porque eu nunca tinha sentido um cheiro igual àquele; parecia o cheiro de dez mil sovacos jamais lavados, suados, sofridos, calejados numa muleta. O cheiro de trinta mil escravos hebreus construindo a pirâmide de Gizé na época da seca do Nilo. Acredito que o filho da puta não tomava banho há meses. Não era só o sovaco: era o cheiro de um corpo completamente imundo, um corpo que não via água — quanto mais sabonete — havia meses. Eu nunca vi um fedor daqueles. Eu que tinha orgulho de lembrar que, em meus verdes anos, andei em tantos lugares a que pessoas decentes jamais iriam. Havia o fedor bom, as moças da minha adolescência que fediam a perfume Avon. Havia o fedor ruim, o fedor dos doidos que moram na rua, o fedor do desespero, da tristeza, da loucura; o fedor da miséria que destrói as noções de higiene porque o esforço para conseguir sobreviver é tão maior que essas bobagens. Mas aquele era um fedor diferente. O fedor que eu sentia ali, e que pela primeira vez em minha vida me fazia ter ânsia de vômito em um provador de roupas, era o fedor da imundície consciente, desnecessária, pusilânime.
Tive que sair dali imediatamente, sufocado, cego, trôpego. Dir-me-iam bêbado.
Esperei algum tempo e entrei de novo no provador. Ainda fedia, e muito, mas agora era tolerável. Experimentei a camisa rapidamente, vi que dava em mim, saí correndo, deixando para trás os demônios que me assolavam e tiravam minha saúde.
Como a vida sabe ser canalha e debochada, fiquei exatamente atrás do sujeito putrefato na fila do caixa. Vestido o filho da mãe fedia muito menos.
Eu jamais esqueceria essa experiência. Mas demorou alguns anos até entender que isso era carma. Essas coisas orientais que dizem que o que vai, volta. Eu não acredito nessas besteiras, não consigo. Mas eu não acreditava que o povo brasileiro ia eleger Bolsonaro e olha ele aí. É por isso que hoje sei que aquele francês imundo foi a forma como as parcas resolveram me lembrar de maldades cometidas em outros tempos.
***
A negona no caixa, com óculos de Risoleta Neves, grossa, metida, canalha, apenas dizia: “Vingt sous, vingt sous!”, e me olhava como quem olha uma lagarta que rói a sua roseira.
Era a mesma Paris, uns muitos anos antes. Estou perto do Louvre e a moça que está comigo precisa ir ao banheiro. Descemos numa das estações de metrô, que eu não lembro mais. Talvez tenha sido a Palais Royal, talvez a Louvre-Rivoli — certamente a linha 1.
E enquanto esperava, resolvi que ia no banheiro também, fazer xixi. Entrei no banheiro e a negona me lascou um vingt sous.
Eu sou baiano e considero desaforo pagar 20 centavos de franco para dar uma mijadinha. Não. Na minha terra, na velha Cidade da Bahia de Jorge Amado e do mano Caetano, a gente mija e caga na rua, na calçada — ultimamente essas coisas de civilização andam atrapalhando e o pessoal parece estar mais tímido, mais acanhado e cheio de não-me-toques, mas além de todo ano haver um carnaval para nos redimir, de vez em quando a gente vê o resultado do trabalho de um saudosista — e pode acreditar, uns anos atrás fui à praça Castro Alves com minha então namorada e ali, atrás da estátua da poeta, um baiano tinha deixado sua homenagem a séculos de escravidão, de exploração, de suor e sangue.
(Acho, no entanto, que ele foi apressado demais. Esperasse uns anos e poderia ter feito aquilo atrás da estátua de Gregório de Matos, era só atravessar a rua. Porque isso tem mais cara de Gregório que de Castro Alves, convenhamos.)
Mas certo, Paris, a conversa era outra. A negona repetindo com cara feia vingt sous, vingt sous. OK. Então tá, se eu tenho que pagar que seja pelo serviço completo.
Era a minha primeira visita a Paris. Eu tinha acabado de achar uma rua que aparentemente homenageava meus ancestrais, a rue de Valois. Via pela primeira vez a única cidade que, até o fim dos meus dias e não importa quantas eu conhecesse depois, iria rivalizar com Salvador. O grau de excitamento só era igualado pela vontade de parecer cool, calm, collected. E por falar em cool, com tudo isso fazia dias que eu não ia ao banheiro.
Aquele era um banheiro tão bonito, tão antigo, tão chique. O mosaico no chão remetia à Belle Époque, o teto, tudo aquilo me fazia pensar que civilização era aquilo, não era o Terminal da Lapa em Salvador. Mas a negona com óculos de Risoleta Neves ficava repetindo com cara feia, vingt sous, vingt sous.
Do bolso da parka emprestada que eu usava surgiram os vingt sous. Estendi as moedinhas mas ela, grosseira como sempre, me mandou largá-los num pratinho ao lado do ventiladorzinho que jogava ar mais fresco em seu rosto. Entrei no banheiro, abaixei as calças como Bolsonaro diante de Trump, olhei para o mosaico no chão.
Quando saí eu era um homem mais leve, em paz com o universo e com a humanidade. Saí do banheiro olhando firme para a negona e sorrindo para ela — sê como o sândalo, que perfuma o machado que o fere. Fiquei alguns instantes no corredor da estação, parado a alguns metros do banheiro. Estava feliz, pensando na negona no banheiro da estação do metrô, imaginando-a olhando para os vingt sous que eu havia lhe entregado, imaginei o ventiladorzinho jogando ar mais fresco no seu rosto. Alguns minutos depois, a moça que estava comigo surgiu afobada:
“Rafael, vamos embora, alguém empesteou este lugar.”
É Rafael:
Paris sempre foi suja e nojenta e o povo igualmente. Agora entendo porque a esquerda,depois da queda da Bastilha, começou a se estapear e resolveu passar o país pra outro absolutista (esse militar), não tinha válido a pena.
Hahaha, relatos deliciosos.
Muito bom… Mas a coisa não se restringe à França. Lá no início dos 90, pouco depois da queda da URSS, visitei Moscou e fui de trem de lá para São Petersburgo. Era uma cabine leito e eu ia com algumas amigas espanholas. Um dos quatro leitos estava vago. Naquela época a cabine ia trancada, por causa da violência (não sei se continua assim). Já no início da manhã, perto do destino, o segurança abre a porta da cabine e deixa entrar uma russa loura, lindíssima, estonteante. A visão do paraíso foi logo seguida pelo cheiro dos infernos. Uma coisa nauseabunda, palavra perfeita para a situação. Vai ver é a fascinação que os franceses sempre exerceram nos russos.
Acho que o frio justifica um pouco desse fedor. Ou melhor, a tradição histórica derivada do frio. Mas tamém acho que depois que inventaram o aquecedor isso não tem mais justificativa. 😉
Tão detalhadamente descritivo que eu senti o maldito cheiro aqui!