Perdidos na TV

Andei vendo, na Netflix, uns seriados que derivam diretamente de programas dos anos 60, meus velhos conhecidos.

O primeiro foi Star Trek: Discovery, mais um spinoff do seriado que só fui entender e admirar recentemente, agora em sua segunda temporada. O segundo é Lost in Space, versão nova do familiar “Perdidos no Espaço” que assolou as TVs do mundo a partir de 1965. Sua segunda temporada deve estrear em alguns meses.

Star Trek: Discovery é uma prequel da série original. Na realidade faz muito pouco sentido, principalmente pelas discrepâncias históricas e estéticas, como a exibição de uma tecnologia obviamente muito mais avançada do que a que víamos no seriado dos anos 60. Em acordo com os tempos, a principal personagem do novo seriado é mulher, negra, complicada, forte: isso a coloca a anos-luz de distância de um seriado em que mulheres apareciam de preferência em trajes sumários. E Sonequa Martin-Green é uma atriz muito melhor que William Shatner.

Mas o seriado começou muito mal. Já vão longe os tempos em que cada episódio de um seriado continha uma história estanque. Agora, cada um deles está mais preocupado em contar a parte que lhe cabe de uma história muito maior e garantir que você assista o episódio seguinte, porque seriados viraram grandes novelas, essa é a verdade. Em tese isso não é bom nem ruim; mas na prática, o resultado é que não temos mais grandes episódios como tantos da primeira série, porque eles não almejam isso.

O “Jornada nas Estrelas” original, com todos os seus defeitos, permaneceu porque conseguiu se tornar maior que seu tempo, utilizando como matéria prima exatamente o melhor que este lhe oferecia; discutia os grandes temas da então atualidade, e mais que a simples aventura, que a simples ficção científica, tentou abordar temas universais como tolerância, preconceito, amor. Star Trek: Discovery abdica disso na maior parte do tempo, e aqui os problemas individuais e a ação são o que realmente importa. O novo seriado é medíocre e a ele falta aquilo que tornou o original atemporal: o humanismo, a busca por respostas a questões maiores do que a simples aventura espacial, a defesa quase militante do respeito à diferença. Isso é ainda mais notável no ano da graça de 2019, em que esses temas são obrigatórios, ainda que normalmente em uma nota só.

Star Trek: Discovery respeitou o seu tempo ao colocar como protagonista uma mulher, negra, com nome masculino; mas mostrou o quanto isso pode ser vazio ao abdicar de qualquer discussão sobre o assunto; é como se estivesse apenas se antecipando ao tribunal do Facebook.

De modo geral, Star Trek Discovery é umbiguista como qualquer outra série menor produzida hoje, e isso dá o seu tamanho exato, lhe insere em seu tempo e o torna medíocre. Star Trek Discovery tentou encaixar pés frágeis em sapatos muito grandes demais, e não conseguiu.

(A situação mudou um pouco na segunda temporada. Não que milagres tenham sido operados, esta ainda é essencialmente a mesma série; mas parece que entenderam um pouco do que tornou imortal o seriado original. Agora, temas um pouco mais amplos se imiscuem em alguns episódios, embora esta ainda seja uma série dos anos 10, o que significa privilegiar acima de tudo os pequenos dramas individuais e o “arco” da estória.)

***

“Perdidos no Espaço” é outro velho amigo das gentes que se aproximam dos 50 anos, e dos mais velhos que isso. Crescemos assistindo a ele, e apesar de ter durado apenas três temporadas, como “Jornada nas Estrelas”, “Perdidos no Espaço” me parece ter sido reprisado com mais frequência, pelo menos no Brasil. Para mim isso nunca fez diferença, porque eu não ligava tanto assim para o seriado. Will Robinson era um idiota e o dr. Smith era um pé no saco e eu nunca entendi por que não davam um fim nele, ei, esquecemos o dr. Smith em Órion XIII, que coisa.

Para mim é tentador dizer que refilmar “Perdidos no Espaço” talvez seja a maior prova de que o mundo em que vivemos está criativamente esgotado, tendo que buscar referências em programas  medíocres feitos meio século atrás. Meio século é muito tempo. Só não é mais tentador porque não consigo esquecer que Walt Disney criou um império reembalando contos de fadas com mais de 400 anos de idade (na verdade, tem gente que diz que essas estórias na verdade têm milhares e milhares de anos).

O fato é que o novo Lost in Space tem uma vantagem inestimável em relação a Star Trek: Discovery: o original era ruim. Se qualquer sequência de “Jornada nas Estrelas” já começa em desvantagem, uma refilmagem de “Perdidos no Espaço” tem tudo a seu favor.

Para começar, é tão agradável ver novamente o letteringCreated by Irwin Allen”. Eu sei que na ortodoxia das coisas é Gene Rodenberry o bambambam das galáxias, mas a verdade é que nós, cá no meu torrão natal e no meu tempo, gostávamos muito mais das tosqueiras simplórias e mal produzidas de Allen. “Túnel do Tempo”, “Terra de Gigantes”, “Viagem ao Fundo do Mar”, tudo isso nos dizia mais que as indagações aparentemente profundas do capitão Kirk. E eram mais engraçados.

Sua nova encarnação não tem muito a ver com o original, além dos nomes dos personagens e da nave. A história é diferente, os personagens são diferentes. À primeira vista, deve mais aos filmes de astronautas feitos recentemente — especialmente aos filmes menos que medíocres de Ridley Scott, como Prometheus — do que à pequena tradição da comédia de ficção científica da TV americana dos anos 60. E isso é desnecessário. Lost in Space se sustenta sozinha. Talvez se sustentasse melhor se, 50 anos depois, fosse buscar mais inspiração na ”Tempestade” de Shakespeare, mas não dá para esperar demais.

Importante mesmo é que o novo seriado faz sentido, muito mais que Star Trek: Discovery. A família perfeita americana de 1965 não existe mais — já não existia naquele tempo, talvez —, por mais que os saudosistas queiram: os casais estão se divorciando, os filhos têm pais diferentes, nada é tão perfeito como nos anos 60.

O novo “Perdidos no Espaço” entende esses novos tempos, e isso parece ter incomodado muita gente. Comentaristas no IMDb reclamaram da nova abordagem “politicamente correta”: uma mulher à frente das grandes decisões, uma filha negra, o Dr. Smith como uma mulher, tudo isso parece incomodar muito um número muito grande de pessoas.

Por um lado, é inegável que há uma parcela assustadoramente grande da humanidade com muitos problemas para aceitar o mundo novo, e extremamente vocal em sua revolta.

Mas em parte essa revolta é compreensível. A sensação que essas pessoas parecem ter é que não basta lhe negarem uma primazia que lhes deveria ser reconhecida naturalmente — do homem sobre a mulher, do branco sobre o preto, do europeu sobre o resto do mundo; mas querem tomar também o seu passado, num momento em que, ao menos na seara do discurso, eles são cada vez mais minoria. Eu mesmo tenho dificuldades em entender a razão pela qual insistem em pegar símbolos que são caros a algumas pessoas e transformá-los a ponto de não os reconhecermos. Quem quer uma 007 feminina passa longe do que, para algumas pessoas, devia ser o objetivo da luta feminista: em vez de fazer uma cirurgia de sexo e dar um nome social ao Bond, James Bond, me parece mais justo criarem seu próprio ícone feminino. Talvez fosse mais fácil fazer Lara Croft se tornar adulta, por exemplo. (Isso merece um post à parte, que em suma discutiria o seguinte: para começar, Lara Croft diz mais às novas gerações do que James Bond. Mas se mesmo assim você insiste em emascular Bond, dá razão a quem reclama do discurso “hétero cis opressor estuprador por princípio”.)

Voltando a “Perdidos no Espaço”, o mais interessante nessa série — e em virtualmente todas as refilmagens de seriados antigos — é que eles perderam o humor. Agora eventuais tiradas engraçadinhas são restritas a um personagem, como tem acontecido nestes tempos, e neste caso o que mais se aproxima disso é Don, que de piloto e genro virou mecânico muambeiro.

Mas talvez as coisas sejam um pouco mais complexas do que isso.

O “Perdidos no Espaço” original nasceu como um programa para toda a família, em sua primeira temporada em preto e branco. Mas sendo tão estereotipado, tão esquemático, rapidamente se transformou em um seriado voltado para o público infantil, e daí a excessiva proeminência do Dr. Smith e de Will Robinson, sempre acompanhados pelo robô B9. “Perdidos no Espaço” nunca aspirou à profundidade de “Jornada nas Estrelas”; ainda assim, o Dr. Smith de Jonathan Harris foi um personagem razoavelmente ambíguo. Era um comunista canalha, covarde, aético, mas extremamente carismático em sua humanidade, a ponto de fazer o seriado passar a girar em torno de si. Agora, a Dra. Smith de Parker Posey, em um mundo em que o egoísmo substituiu a ideologia como motor da humanidade na TV, é uma boa personagem, mas sem as muitas vantagens que a comédia trazia para o Smith original.

Por tudo isso, você se vê torcendo pelo personagem menos humano de todos, o robô, e isso é muito triste.

Ele merece um parágrafo. Seu desenho é muito bom: do ponto de vista de um designer, ele respeita as linhas originais e as atualiza ao máximo. Certo, ele não é mais feito por humanos. Isso tira da série a possibilidade de discussão de um tema que que surge no horizonte, as possibilidades e os perigos da inteligência artificial geral, mas mostra que a própria percepção do espaço como reflexo da humanidade mudou, e muito, nos últimos 50 anos. Nos tornamos menos antropocêntricos e menos geocêntricos.

O robô original se chamava B9 — benign, sua besta, nunca percebeu? —, mas de benigno o novo robô não tem nada. E isso reflete o mundo pós HAL-9000. Se nos anos 50 e 60 a humanidade ainda podia ver a tecnologia como uma aliada subalterna e perfeita, hoje ela pode ser nada mais que uma esfinge. E essa é talvez a grande qualidade de Lost in Space.

3 thoughts on “Perdidos na TV

  1. Rafael, você diz: “Já vão longe os tempos em que cada episódio de um seriado continha uma história estanque.”
    A unica vez que isso acontece é no episodio 8 da segunda temporada, que na verdade é praticamente um refilmagem do Piloto da serie original, antes ainda da era Kirk, em que o capitão é o Christopher Pike, isso com direito até a imagens do episódio original da década de 60 que se funde ao Christopher Pike atual; muito bem feito alias. Esse episodio já conta com o Spock jovem (reproduzem até uma fala do final de insulto ao Spock “estou vendo um sorriso do seu rosto Sr. Spock?) e é muito bom, com uma reviravolta aos moldes da série original que é realmente surpreendente, porém só fica nesse episodio, o resto é duro de suportar. Alias o Christopher Pike veio pra ser o capitão da Discovery na segunda temporada com a desculpa que e Enterprise precisava de grandes reparos, justamente para suprir a incrível falta de carisma da comandante que era preparada pare ser a nova capitã, a Michael. A tal da Sonequa pode até ser uma atriz melhor que o Shatner, com você disse, mas não tem uma unha do carisma do velho capitão Kirk do Shatner.

    Quanto ao Perdidos no Espaço: aquela forçação de barra de mulheres sendo mandonas só pra mostrar o maldito “empoderamento” feminino é insuportável. Estou fora desse lixo.

    • O mais curioso é que esse piloto (The Cage, né?), que nunca foi ao ar no tempo normal, deve ser o mais reutilizado; a série original também o reutilizou em um episódio, não?

      Acho que o carisma do Shatner é algo construído posteriormente. Era um ator esforçado, teatral, cujo oversacting se tornou aceitásvel porque se deu numa grande série.

      Quando ao que você chama de forçação de barra, eu discordo. Não me incomoda, em nada. O que me incomoda de verdade é o quanto a Dra. Smith é chata.

  2. Não vi Perdidos no Espaço quando criança, então não tenho o apego emocional a esta série que tenho com Jornada nas Estrelas. Vendo mais velho, até achei meio divertida, mas acho que devia ter sido deixada nos anos 60 mesmo. Tentativas de atualizar e, pior, deixar mais séria a série ou mais dramática (como no filme dos anos 90) parecem-me fadadas ao fracasso. É como querer transformar os Ursinhos Carinhosos em antiheróis mercenários ou The Jetsons em uma análise de uma distopia pós-apocalíptica. É tecnicamente possível? Sim, mas por que alguém vai querer isso?

    A franquia Jornada nas Estrelas é uma vítima do próprio sucesso. É necessário manter um mínimo de coerência entre as histórias e implicações de mais de meio milhar de episódios, transmitidos em um período de meio século. Alguns dos obstáculos são basicamente inerentes (como o fato de que a tecnologia dos prequels Enterpise e Discovery parecer mesmo mais avançada que a da série original ou a mudança na aparência das espécies) e só podem ser contornados pela vontade dos telespectadores. E, claro, o mundo andou, as questões mudaram, mas a batalha pela narrativa do que deve ser o futuro continua furiosa. Vou esperar para ver Discovery, mas, apesar de tudo, estou confiante.

    Interessantemente, outra série antiga que está de volta é Além da Imaginação (The Twilight Zone). Até uns poucos anos atrás, só conhecia de nome e das referências na cultura pop. Confesso que, quando assisti a série original, adorei. O pouco que vi da série seguinte também me agradou. Espero que a nova série não desaponte. Se bem que começo a achar que nós é que estamos presos na Twilight Zone.

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