Ao contrário de tantos outros artistas brasileiros, João Gilberto era um samba de uma nota só. Nunca evoluiu. Aquilo que ele trouxe de uma temporada de surto em Juazeiro o acompanhou a vida inteira. Ele nunca fez algo diferente, nunca foi adiante. O que ele fazia em 1959 era exatamente o que fazia meio século depois, mas agora brigando com aparelhos de ar-condicionado. Era um maluco — chame de excêntrico, se quiser, mas ele era maluco — com um talento único, capaz de descontruir harmonias inteiras e reconstruí-las de maneira surpreendente, que inventou um jeito assombroso de tocar violão e repetiu isso pelo resto da vida. E que, de lambuja, aperfeiçoou um jeito de cantar que iria se afirmar definitivamente em Roberto Carlos.
Mas essa única coisa que ele fez foi revolucionária. Sozinho, João Gilberto criou um gênero musical que revitalizou a música brasileira de maneira impensável e irreversível. Sem ele, Tom Jobim e Vinícius de Moraes fariam uma música diferente — bela, certamente; melódica e liricamente sofisticada, com certeza; mas não nova. Basta ouvir o disco “Canção do Amor Demais”, de Elizeth Cardoso, para entender isso. Sem João, a bossa nova seria pouco mais que uma cópia descarada do jazz temperada com pouquinho de samba aguado, eventualmente cedendo aos arroubos semi-sinfônicos de Tom Jobim. Seria Carlinhos Lyra cantando “Influência do Jazz”, ou Billy Blanco jogando uns panos mais arrumados nas costas da música da favela e usando a coitada para cantar as agruras da classe média carioca.
A bossa nova é talvez o gênero musical mais superestimado da história da música brasileira. Se esgotou rápido demais, e no fim das contas não conseguiu superar suas origens de elite carioca. Mas a sua influência é imensurável, e ela certamente não seria a mesma sem João Gilberto. Se conquistou os jazzistas americanos — e sua influência, pelo menos durante um breve instante, foi enorme; o que me vem à cabeça imediatamente é Sonny Rollins tocando If I Ever Leave You, mas exemplo é o que não falta — não foi porque os deslumbrou com algo diferente ou no mínimo exótico com Carmen Miranda 20 anos antes; foi porque eles reconheceram sua própria música ali, mas com a impressão digital de João Gilberto.
E isso basta.
Pois é Rafael:
O problema é que a música do João Gilberto morreu ontem com ele. Como ele cansou de explicar, ele não cantava Bossa Nova, mas sim Samba, um samba Gilbertiano.
A bossa nova vai sobreviver nos seus “barquinhos”, mas sem a síncope e a suavidade impressionantes do canto e do violão do João. Pra quem gosta de propalar que ninguém é insubstituível, aí está, não é verdade.
Fi da peste cáustico…