A solidariedade do “trade”

Nos últimos dias andou circulando nas redes esse card com um apelo do trade turístico.

Sinto informar, mas eu quero é que se fodam.

Eu tinha uma viagem a Roma marcada para ontem. Há algumas semanas, quando a chapa por aquelas bandas começou a ficar realmente quente, liguei para a TAP tentando remarcar as passagens para novembro. Até podia, mas teria que pagar a diferença tarifária e taxa de remarcação. No fim das contas, as passagens sairiam pelo triplo do preço original. E se cancelasse não receberia nenhum tipo de reembolso porque, compradas em novembro do ano passado, elas tinham preço promocional.

Não adiantou argumentar que o adiamento era por uma questão de saúde pública, etc; eu estava por minha conta e o prejuízo, em qualquer caso, seria só meu.

Naquela hora não vi nenhum oferecimento de ajuda ao turismo, nenhum pedido de união e de solidariedade.

Eu desisti e já estava conformado em acionar a empresa na justiça. Só que a Terra é plana, mas dá voltas. Veio o lockdown italiano e a TAP se viu obrigada a cancelar todos os voos para a bota.

Na última semana, passei literalmente horas pendurado ao telefone esperando para resolver a questão do reembolso. Foram dezenas de ligações, que sempre caíam, às vezes depois de mais de uma hora ouvindo a muzak terrível deles, técnica que imagino feita justamente para fazer você desligar em desespero. Agradeço à boa alma que inventou o viva-voz, sem o qual eu não conseguiria passar por essa via crúcis. Só fui conseguir falar com eles ontem à noite, coincidentemente quase na hora em que deveria estar embarcando.

São essas companhias que vêm agora pedir solidariedade e ajuda. As mesmas que cobram pela sua bagagem enquanto mentem dizendo que vão baixar o preço da sua passagem. Que têm lucros bilionários e quando a coisa aperta correm atrás do dinheiro do Estado.

Que se fodam.

Ah, mas não é bem assim, dizem. Tem os pequenos, dizem. As agências de turismo, o receptivo, etc.

O problema é que aí a coisa é ainda pior.

É inacreditável que não percebam o quão canalha e irresponsável é esse apelo para que as pessoas viajem em um momento tão grave. Remarcar para quando, se ninguém sabe quando essa crise Walking Dead termina? Deixar o dinheiro com eles enquanto o governo autoriza empresas a reduzirem pela metade os salários de doentes?

O que eles estão pedindo é que você salve a pele deles, e que se danem a saúde e mesmo as vidas das outras pessoas. Inclusive a sua. Neste exato momento, centenas de pessoas estão presas em cruzeiros e quetais porque, sem tirar a responsabilidade desses idiotas — e daqueles que cederam às pressões embutidas no “nós não vamos devolver o dinheiro”—, essas empresas exerceram uma versão muito própria desse tipo de solidariedade, como sempre.

Eu importo pouco para eles porque não sou cliente de agências de turismo há muito tempo, desde que, para evitar trabalho e aproveitar a suposta expertise do pessoal, fui em uma e pedi para organizarem uma viagem. Me sugeriram hotel em Whitechapel com preço de Bloomsbury, além de uma série de penduricalhos que só serviam, obviamente, para aumentar a comissão da vendedora. Saí de lá com um “amanhã a gente compra” que, se funcionava para minha mãe, deve funcionar para mim também.

Afinal, que solidariedade é essa? Eu me pergunto quanto dessa solidariedade foi posta em prática antes. Comigo eu sei que não foi.

Me pergunto quanto dessa solidariedade é exercida no dia a dia. Quantos deles deixam de pegar Uber para pegar um táxi e ajudar um defensor que tem uma cota diária de dinheiro para entregar ao dono do táxi? Indo mais longe, quantos deles se juntaram aos funcionários públicos na defesa de suas aposentadorias? Quantos protestaram contra a reforma da Previdência? E é melhor não falar da reforma trabalhista, que sei que eles apoiam em sua quase totalidade.

Não, não. Eu não sou solidário a eles. Fodam-se e boa viagem.

7 thoughts on “A solidariedade do “trade”

  1. Eu acharia engraçado, se não fosse muito irritante, esse negócio de “o governo autoriza as empresas a reduzir os salários pela metade”. E quem são esses canalhas burros e corruptos pra autorizar alguma coisa? Gente incompetente, nojenta. E não tem bom. Todos os policos, de todos os partidos, TODOS, são um lixo só.

  2. Eu já ia acrescentar “Mas só do turismo?!”, quando vi que você ao fim generalizou pra outras áreas. Fodam-se todos juntos.
    Aliás, essa crise me fez lembrar da célebre frase de Mrs. Thatcher: “Não existe sociedade, existem apenas indivíduos”. Beleza. Indivíduos vão morrer aos montes. Indivíduos vão falir, ficar sem emprego, na bosta. Alguns desses eu desejo que se vão o mais rápido possível (o pequeno general, o celerado do planalto,…). É difícil pensar numa frase que possa soar mais ridícula no atual contexto. Pena que Mrs. Thatcher já morreu e não pode morrer de novo.

    • Assino embaixo.

      O engraçado é que tem outro meme circulando, falando para comprar do pequeno merceeiro, do mercadinho do bairro, etc. A história do buy local.

      A gente podia falar do merceeiro que rouba no peso, dos donos de restaurantes incapazes de dar as sobras de seus restaurantes para moradores de rua, donos de supermercado que não permitem aos seus funcionários levar para casa alimentos vencidos mas ainda bons (alimentos industrializados têm datas de vencimento com margem de segurança; os funcionários quando podem escondem no lixo e pegam depois).

      Meu saco está cheio de gente que pede solidariedade mas é incapaz de dar. De gente que é capitalista quando está bem mas comunista quando a coisa fica feia.

      De modo geral, o Brasil não tem ideia do que é vida comunitária—aliás, é sintomático que aqui comunidade seja sinônimo de favela. Herança da escravidão, provavelmente. É uma das razões pelas quais minha fé no país está cada vez menor.

  3. Rafael:
    Restaurantes e supermercados não dão as comidas que sobram porque quando alguém passa mal depois de come-las, mesmo que esse não seja o motivo, falam que foi a comida estragada que tal lugar deu e os doadores são destruídos pela “justiça” e pela mídia. Acredite, eu te garanto que esse é o motivo da maioria não doar, eu trabalho com isso.

    • Eu sei, Serge. Mas deve haver uma maneira de chegar a aum consenso nesses casos, até para evitar o desperdício enorme. Quando se procura, acha.

      • É verdade, mas ainda não acharam, e o desperdício permanece. Talvez se houvesse bom senso de quem recebe a doação, e extremo cuidado de quem doa, ou seja, a verdadeira solidariedade entre as partes, não precisaríamos de governo algum para nós dizer como fazer.

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