Sempre que Paul McCartney lança um disco, é inevitável que as pessoas se façam uma pergunta: será que é o último? Aos 78 anos, ele lançou hoje McCartney III, em que, como nos álbuns com títulos semelhantes lançados em 1970 e 1980, toca todos os instrumentos.
Se for o último, McCartney pode bater as botas tranquilo: é o melhor álbum do velho sir em um bom tempo. Melhor certamente que New, de 2013, e na minha opinião melhor que o Egypt Station, de dois anos atrás. E é melhor principalmente por uma razão simples: a simplicidade.
Os últimos discos de McCartney parecem assolados pela praga da superprodução. Esse sempre foi um defeito seu, é verdade. Mas nos anos 2010 ele parece ter sido elevado à vigésima sétima potência. Em New, em que a maioria das canções é pouco inspirada, McCartney tentava obter uma sonoridade moderna que lhe soa estranha. Em Egypt Station, um número maior de boas canções às vezes patinava na necessidade de ser moderno, no excesso de sons. Daí porque a simplicidade de McCartney III é tão bem vinda.
Talvez isso se deva ao fato de que o disco, não planejado, é um produto das circunstâncias, daquilo que Macca aqui chama de rockdown, num trocadalho do carilho que quase se pode tolerar. A consciência da pandemia, a angústia existencial que tomou conta da humanidade, os dilemas que todos têm que enfrentar no conflito entre ganhar a vida e não morrer, tudo se reflete no álbum.
Como seus antecessores, McCartney III não foge à sonoridade da música pop inglesa atual. Talvez nem pudesse. Mas desta vez Paul parece estar no controle, o que parece lhe permitir adotar a abordagem mais simples em muitos anos e ressaltar a qualidade (ou não) de cada canção. Em seus melhores momentos, traz canções curtas que funcionam muito bem. Em seus piores, traz o velho McCartney que não sabe a hora de parar.
A crítica tem saudado o experimentalismo do disco. É possível ver isso em algumas canções, mas é exagero. Talvez mais acertado seja chamar o disco de simples, contido, e muito bom.
Faixa por faixa:
Long Tailed Winter Bird é um instrumental construído sobre um riff de violão com traços indianos que deriva para um típico groove “mccartneyano”, e serve admiravelmente como introdução ao disco. É provavelmente a música que define o clima do disco como “experimental”, e é surpreendentemente boa. Traz ecos também do primeiro disco do Fireman.
Find My Way é uma bela canção pop que poderia ter sido composta nos anos 80. Simples, direta, agradável como pouca coisa que McCartney fez nos últimos anos. Dela McCartney tirou o primeiro clip.
Pretty Boys fala sobre a relação de fotógrafos e seus fotografados, aparentemente sobre suas sessões como beatle; se você não sabe disso, no entanto, provavelmente achará que é sobre michês. Como provavelmente a pessoa mais fotografada na história da humanidade, McCartney parece ter uma relação ambígua em relação a isso, e o seu lado negativo está explícito aqui. É uma balada que lembra muito as que ele vem soltando ultimamente, mas a instrumentação mais esparsa, contida, ajuda a lhe dar uma beleza que muitas vezes falta em suas similares.
Women and Wives é uma balada em que McCartney abusa de acordes que se tornaram comuns nos seus últimos discos e um piano que parece saído de Chaos and Creation in the Backyard para filosofar sobre o sentido do casamento, suando um moralismo familiar que eventualmente marca sua obra e, eventualmente, o aproxima de George Harrison.
Lavatory Lil é um ataque de McCartney a alguém que lhe sacaneou — e é impossível não achar que ela é dirigida à sua ex-mulher, a perneta que lhe passou uma rasteira memorável. Lembrando muito um blues inglês dos anos 60, é uma das melhores canções do disco, com uma das letras mais diretas e bem construídas. Uma espécie de Poison Ivy com mais veneno, mais raiva e um bom riff copiado de John Lee Hooker. É a melhor canção do disco, a mais espontânea, a mais vibrante, e que serve para lembrar que McCartney, quando quer, é um grande roqueiro à moda antiga.
Deep Deep Feeling é aparentemente uma tentativa de traduzir a angústia de viver sob o lockdown. Deve ser por isso que dura intermináveis oito minutos. Se você olhar por este prisma, a canção cresce e adquire um significado maior. Se não, vai achá-la apenas excessiva, longa demais, com bons elementos aqui e ali. Uma canção que poderia ser boa se fosse editada com cuidado, mas que ainda soa melhor do que soaria se fosse tocada apenas no violão. É também a mais claramente experimental.
Slidin’ seria melhor se fosse uma homenagem à heroína, mas parece ser sobre paraquedismo — ou sobre um urubu, ou uma muriçoca, sei lá. Bom rock, talvez um pouco excessivo — não à toa tem a participação de Greg Kurstin na produção —, mas longe ser uma das piores canções do disco.
The Kiss of Venus vem num tom em que McCartney não pode mais cantar, mas ele insiste. Não muito inspirada, traz uma letra barroca que, diz o autor, é filosófica e profunda. Na verdade é um monte de bobagem enfileirada para parecer fazer algum sentido. Truque velho, que às vezes funciona, mas não aqui.
Seize the Day é uma boa canção, evocando um pouco da criatividade melódica de McCartney. Em alguns momentos ela ameaça crescer e desabrochar, mas para logo com essa frescura e volta a ser a musiquinha menor que é.
Deep Down é talvez a música mais chata do álbum. Basicamente um trecho artificialmente estendido muito além do razoável em estúdio, uma espécie de jam session do eu sozinho. Muita gente, no entanto, vê nela o ponto alto do disco. Tem gente para tudo nesse mundo.
Winter Bird/When Winter Comes é a música perfeita para encerrar o disco: uma típica balada ao violão de McCartney, um lembrete de que nesse estilo ele sempre foi insuperável. Gravada há mais de 30 anos, numa sessão em que George Martin estava presente, ela traz um McCartney com uma voz muito mais jovem, mas já um cinquentão relembrando dos tempos em que saiu dos Beatles e morava numa fazenda na Escócia.
O resultado é isso: o melhor disco de McCartney nesta década.
Que um homem de quase 80 anos consiga fazer um disco como esse é um milagre inexplicável. Independente de sua qualidade, McCartney III já cumpre um papel importante, agregar mais um elemento à lenda de Paul McCartney, definitivamente o maior nome da música popular de todos os tempos. É esse aspecto maior que a vida, o fato de ser um tijolo não importa se grande ou pequeno numa obra monumental, que é visto antes de qualquer outra coisa em um novo disco de McCartney. Não poderia ser diferente.
Bom Rafael: acho que a simplicidade a que voce credita a melhor qualidade desse disco se deve a Covid 19. O Paul desde os anos finais dos Beatles ja se recusava a ser simples. Acho que agora foi obrigado.
Eu não diria isso. A ideia de um disco “back to basics” como o Let it Be veio dele. Seu primeiro disco é o mais simples que um ex-beatle já gravou. E sua carreira, sempre irregular, alterna excessos e coisas extremamente simples.