Retalhos da Bahia

Antes de mais nada, um aviso: o que se segue é um punhado de notas desconjuntadas e meio desconexas, escritas a partir de um comentário do Leonardo Bernardes.

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Eu sempre disse que baiano é quem nasce em Salvador ou, no máximo, no Recôncavo. Pode ser na Graça ou na Calçada; só não pode ser em Vilas, que esses são tão baianos quanto o pessoal da Barra ou do Recreio é carioca — ou seja, herdam apenas os piores traços do caráter da terra.

Nessa tal baianidade eu também incluía Ilhéus e Itabuna, porque parte dessa sensação de pertencimento nasceu dos livros de Jorge Amado, até que percebi que a imensa imigração gerada pelo cacau — quantos sergipanos foram tentar a fortuna ali? — tirava um pouco dessa identidade. Desculpe, Ferradas e Tabocas.

Sempre achei, por exemplo, que era descaramento demais o sujeito nascer em Jeremoabo e dizer que é baiano. Nasceu em Jeremoabo, Ribeira do Pombal, Paripiranga? Você é sergipano, contente-se. Veio à luz em Barreiras? Hoje você é goiano, meu filho, e que Deus tenha piedade de ti afogado num mar de soja.

Mas nessa cidade onde todo mundo é d’Oxum, dizia um de seus poetas, há um regaço macio onde as massas cansadas, pobres, amontoadas, desejando respirar livremente, podem curar esse defeito de origem, e para eles o único jeito é ir para Salvador e se tornar baiano.

É a maravilha da Bahia. Nenhum outro lugar consegue receber e abraçar aqueles que recorrem a ela e transformá-los tão completamente em baianos legítimos. Começa pelo sotaque, vai-se tornando mais mole, o mundo vai sendo visto de maneira mais condescendente, vão tolerando cada vez mais o que antes era inadmissível. E aí não tem mais jeito.

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Fui criança na Salvador dos anos 70. Era uma cidade bastante diferente da de hoje, em tantos aspectos. Era um tempo em que o jornal mais tradicional da cidade dizia quais terreiros de candomblé bateriam naquele mês. Tinha-se a sensação de que quase todo baiano transitava entre a igreja e o terreiro de candomblé. Era uma realidade mais complexa do que o discurso identitário de hoje faz parecer.

É preciso entender o que qualquer baiano sabe: Salvador está longe de ser a Roma negra pretendida em prosa e verso. Kátia Mattoso escreveu que depois da Lei Áurea a elite branca, sem a salvaguarda jurídica que a instituição da escravidão lhe proporcionava, descobriu novas maneiras, mais sutis, de manter a distância entre ela e a patuleia negra — e ao mesmo tempo a tal patuleia descobriu novos mecanismos de se aproximar e beneficiar de uma maior proximidade (por razões análogas, leis segregacionistas nos EUA surgiram antes nos estados do Norte). Essa complexidade nas relações, além de ser a razão pela qual vejo boa parte dos tópicos abordados nas lutas identitárias atuais como burras, fez de Salvador provavelmente uma cidade que oscila entre o racismo descarado e a valorização da herança negra, mas ao mesmo tempo também uma cidade onde as relações de raça e de cor são mais complexas do que boa parte da atual militância parece poder compreender. Stuart Schwartz resumiu isso no título de um livro: negociação e conflito.

Nas últimas décadas, no entanto, esse processo se tornou quase caótico, com novos elementos sendo adicionados. Durval Lélis, surpresa, foi o primeiro a marcar a ascensão da Bahia evangélica, cantando que “era um bêbado e vivia drogado, hoje estou curado, encontrei Jesus: na casa do Senhor não existe Satanás, xô, Satanás”. E isso implica uma mudança no próprio conceito de cultura negra, que boa parte dos movimentos identitários ainda estão lutando para entender — ou ignorar. Uma coisa é o negro de classe média e boa educação que busca recuperar e recriar sua identidade a partir de uma reinterpretação e recriação de elementos históricos e símbolos afro-brasileiros. Outra é a crescente massa de negros pobres evangélicos, cada vez mais reacionários, cada vez mais proselitistas, mas que não podem evitar carregar consigo uma tradição baiana inconfundível e inamovível. Os identitários parecem apostar que a cor supera tudo isso. Estão errados, porque partem do princípio errado. A visão idílica que essa classe média tem do candomblé não é a mesma que o evangélico recém-convertido tem, porque ela não sabe o que é ter um ebó em sua porta, nem precisa se perguntar que religião é essa que permite que seus sacerdotes façam essas maldades, sem sentir que precisa se defender dela. Vai ser cada vez mais difícil renegar a baiana que vende bolinhos de Jesus em vez de acarajé e que aplaude a vandalização de terreiros de candomblé. Que síntese vai sair desse angu, só Oxalá sabe.

Mas naqueles tempos o movimento negro ainda não tinha conquistado tanto. Isso quer dizer que a Cidade do Salvador não se via totalmente negra como parece se ver, ou se apresentar, hoje.

Comecei a me entender por gente numa época em que a miséria mais degradante e desumana se espalhava pelas ladeiras do Maciel, mas também uma época em que ainda havia uma série de remanescentes da presença inglesa na Bahia. Não apenas as que restam, como o Clube dos Ingleses onde meu pai quase saiu no tapa com Glauber Rocha porque Glauber começou a elogiar Geisel e meu pai, ainda lembrando da prisão em 64, disse que ele era um filho da puta, ou o Cemitério dos Ingleses que ainda hoje é um desaforo à Ladeira da Barra; mas por exemplo a Nubar no Campo Grande, onde senhoras elegantes que queriam ser inglesas ainda iam tomar o chá das cinco e eu ia encher o rabo de doces. Não lembro se foi em “Casa Grande e Senzala” ou em “Sobrados e Mucambos”, mas Gilberto Freyre fala uma coisa interessante: que o pessoal do sul tem orgulho da colonização europeia, mas enquanto recebiam basicamente lavradores e gente iletrada, o Nordeste era onde estava o dinheiro do açúcar e o destino da elite d’além mar, principalmente ingleses.

Era nesse convívio que a cidade se moldava, e se tornava uma cidade cuja elite se queria branca, que com alguma relutância aceitava e valorizava os elementos que chegavam da cultura negra mas que ao mesmo tempo ignorava e discriminava a população negra. De muitas maneiras ainda é.

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A Bahia moderna começou a ser reinventada nos anos 30. O mesmo Estado Novo que consolidou o samba como a música nacional criou no país uma percepção da Bahia que se tornaria permanente. Pessoas como Ary Barroso, Dorival Caymmi e Carmen Miranda construíram uma Bahia que não me sai do pensamento, que tem acarajé e abará no tabuleiro da baiana e a morena mais frajola na Baixa dos Sapateiros. A Bahia que eles criaram tinha origem no povo pobre e negro, até então ignorado, mas que apontava para uma ordem nova das coisas, liderada por uma elite intelectual mais multirracial que em outros lugares e com raízes profundas na cultura popular. Para desgosto dos atuais militantes, era a Bahia da mistura, da miscigenação, da troca cultural indiscriminada e profundamente rica.

Negar tudo isso é uma estupidez. Mais que isso, é deletério.

Ilustrando essa mudança de pensamento, hoje, essa militância tenta de todas as formas resgatar a negritude de Machado de Assis, um dos escritores mais brancos da história deste país, sujeito cuja literatura é absolutamente, completamente, visceralmente branca. Ser negro era um detalhe que Machado preferia esquecer, e é preciso um esforço prometeico para vincular sua cor à sua literatura. É deprimente, mas esses movimentos vivem de símbolos e ressignificações (ressignificação está para os anos 20 como paradigma estava para os anos 1990). Enquanto isso, essa literatura baiana que floresceu com os modernistas fazia o contrário. Jorge Amado colocou, pela primeira vez de maneira consistente, o negro e sua cultura como protagonistas não apenas da literatura, mas da sociedade. A miscigenação era um fato desejável, e mais que isso, era um ideal.

Os baianos gostaram da imagem e tentaram se adaptar a ela, cada vez mais à medida em que isso lhes proporcionava um ganha-pão, e enquanto isso não significava o fim das distâncias que separavam pretos pobres de brancos ricos.

Mas como qualquer outra, ou talvez um pouco mais, a história atual da Bahia é a história de uma crescente reescritura do seu passado.

O recente louvor aos malês, lembrado pelo Leo, é um exemplo acabado disso. Tenho a impressão de que tudo isso deriva do livro do João José Reis, “Rebelião Escrava no Brasil”, de 1985, que devolveu à ribalta um pedaço importante, mas esquecido, da história da Bahia. A redescoberta da Revolta dos Malês oferecia um referencial de grandeza e dignidade à luta negra na Bahia. Assim como negros americanos, sem o referencial cultural que no Brasil os portugueses não conseguiram apagar, a partir de certo momento buscaram no islamismo um novo referencial de identidade, a Revolta dos Malês levava a resistência negra um degrau acima dos degolamentos de senhores e incêndio de engenhos. O Leo Bernardes tem parte de razão no que comentou aqui uns posts atrás: ela foi menos importante do que hoje tentam fazer parecer, no aspecto de definição da identidade ao longo do século XX. Ao mesmo tempo, não é possível esquecer que a repressão à revolta redefiniu a estrutura demográfica dos escravos na Bahia, e com isso padrões de comportamento e de relação com o mundo, e acabou desempenhando um papel significativo na definição das relações entre brancos e pretos ao longo do século XIX. Mas a sua retomada como símbolo é um processo posterior, e de certa forma descolado da realidade.

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Uma coisa me vem chamando a atenção nos últimos anos. Sempre que se conversa com um baiano de classe média ele começa, mais cedo ou mais tarde, a reclamar de Salvador. É inviável morar lá, sei lá o quê. Como ex-baiano e turista frequente, eu não vejo isso — ao contrário, vejo uma cidade que nos últimos dez anos melhorou sensivelmente. Depois de me raciocinar todo, como diz o seu melhor cronista atual, o Franciel, cheguei à conclusão de que isso é pouco mais que o mesmo desconforto dos ricos nos aviões cheios de pobres. Com todos os problemas e defeitos, a cidade que se está formando no século XXI é mais democrática, mais plural, não é aquela em que eles cresceram. A miséria que se espalhava no Maciel não é mais admissível. E é aí que essa baianidade nagô encontra o seu limite entre a população branca.

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Houve um momento em que a axé music esteve prestes a se tornar uma música universal, muito maior do que fora e do que viria a ser. Em algum momento do início dos anos 90, o Araketu e o Olodum de Pierre Onassis e Germano Meneghel pareciam ter acumulado as condições necessárias para elevar a axé music a algo superior, como os Beatles elevaram o rock. Partiam dos batuques nos terreiros, das rodas de samba no recôncavo, da música de Dorival Caymmi, Riachão, Novos Baianos, Caetano e A Cor do Som e levando-a adiante.

Mas justamente a sua força fez a sua desgraça. Ela nunca conseguiu se erguer acima de suas raízes populares. A partir dali, se resumiu ao que nunca deixou de ser: música para fazer as pessoas pularem e beberem cerveja.

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A Salvador branca, rica, essa já há muito tempo vem tentando se tornar uma cópia bastarda de São Paulo. Os bairros ricos de Salvador, especialmente os novos que se espalham em direção ao norte, na tentativa de alcançar Aracaju e realizar o sonho manifesto da Bahia de ser Sergipe, parecem Moema, com a mesma falta de identidade, e provavelmente os mesmos valores.

A Salvador negra, cada vez mais longe das raízes que se perderam na Saúde, que despencaram Taboão abaixo, se desenvolve sob um signo novo, de uma baianidade reinventada a cada dia. Mas essa Bahia ainda está lá. Se mudou da Saúde há muito tempo e hoje mora no Cabula, no Doron, no Bairro da Paz.

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Uns anos atrás, em Montmartre, um daqueles negões com cara de Senegal tentou me vender uma fita dessas iguais às do Senhor do Bonfim e que eles importaram. Eu disse que não, ele tentou jogar um “Tradition, Tradition!” (em inglês, não francês). Tive pena, pena genuína. Ele ainda precisava aprender muito com os malandros baianos, com o olhar único que eles fazem quando você se recusa a comprar, ou com a malandragem de já ir amarrando uma no braço da moça enquanto dizem que é presente pra depois tentar intimidar a coitada.

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Talvez algum dia eu consiga fazer alguma coisa dessa mixórdia.

7 thoughts on “Retalhos da Bahia

  1. Tudo sempre muda, muitas vezes pra pior , algumas vezes pra melhor, em qualquer lugar do mundo. As pessoas querem que os lugares, e as situações, fiquem cristalizadas como anseiam as suas memórias afetivas, mas a dinamica da vida não permite.

    • Cuidado com os identitários Wagner. Se depender deles, essa sua frase resultará no seu cancelamento, prisão e, quando for possível, talvez execução. kkkkkkkkkkk

      • Verdade. Mas há algum traço de negritude nos escritos ou na personalidade do Machado? A propósito, veja o que Joaquim Nabuco escreveu a respeito do bruxo do Cosme Velho:
        “Eu não teria chamado o Machado mulato [itálico no original] e penso que nada lhe doeria mais do que essa síntese (…). O Machado para mim era um branco, e creio que por tal se tornava [sic]; quando houvesse sangue estranho, isso em nada afetava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só vi nele o grego. O nosso pobre amigo, tão sensível, preferiria o esquecimento à glória com a devassa sobre suas origens”.

        • Sem dúvida Wagner, o Machado era assim mesmo. Tanto que a expressão “preto de alma branca”, o preto que não se sentia preto, ou que não queria ser percebido como preto, por motivos óbvios, imperou por quase 100 anos para discriminar o preto que agia de acordo com o que o branco considerava o “bom proceder”. Alguns pretos faziam de propósito, outros simplesmente não se sentiam inferiorizados e apenas viviam dentro de um gabarito branco .
          Situação complexa e, hoje, em 2021, melhorou, mas não mudou muito.

  2. Rafael,

    *Gracias* pelas lembranças e reflexões nos seus aforismos sobre Salvador. O texto está muito legal e muito estimulante, eu gosto de aforismos justamente pelo que se pode de chamar vantagens da desconexão (ou da desconjuntura). Lendo eu pensei um par de coisas que um dia a gente ainda conversa tomando uma cerveja, e selecionei dois temas que eu acho que valem estender a conversa:

    1. Sobre a tentativa de usar Machado de Assis como símbolo racial, tem outra coisa que me irrita. Eu tenho a literatura em alta conta, diria até que sou um rorteano a respeito da relação entre verdade e literatura, mas por que usar essa medida, por que esse canón? Nos EUA criaram uma série chamada Lovecraft Country, conheço pouco da literatura de Lovecraft, mas usaram esse contexto para falar do letramento (e da inteligência) dos negros norte-americanos num determinado período, pra representá-los em um contexto não estigmatizado — pode ser que tenha tudo a ver, mas soa como condescendência, um modo de abordar a inteligência dos negros por meio de “padrões de aferição” pretensamente universais mas que no fundo não são mais do que a expressão de uma incapacidade de assimilar o outro senão por meio da transformação no mesmo. A litetura não é um padrão universal, nem o conhecimento científico, aliás. No Brasil então, que sentido tem buscar um ícone racial entre escritores, num país de iletrados, que nunca teve a decência de aspirar por uma educação de qualidade pra todos? Que transforma seu intelectual mais pop-star (Paulo Freire) num pária, símbolo da manipulação (e não da liberdade que ele sempre ensinou)? Tudo parece que virou um capítulo dessa guerra cultural, as pessoas estão disputando o espaço público como hienas, quanto mais símbolos eles possuirem e mais importantes eles forem, melhor. Mas por que usar as medidas dos outros, por que não forjar nossas próprias medidas, esse apego a padrões estrangeiros parece perpetuar a injustiça em nossa história e nos tornar incapazes de ver o valor e a singularidade das contribuições para nossa cultura sem apelar a medidas universais (não locais), saca? Por que não Candeia? Candeia é nossa inteligência

    2. A outra coisa é que você evoca muita gente boa e a chaga da minha ignorância lateja . Gilberto Freyre, João José Reis. Falando mais concretamente da questão racial, Joaquim Nabuco é alguém que eu deveria ter lido. Agora, é incrível a criação de Jorge Amado, porque ele (branco) coloca o negro como protaconista de um modo totalmente orgânico (fora de qualquer teatro reparatório), sem parecer folclórico, como alguém integrado à cultura negra, não como observador. Do alto do meu completo desconhecimento, eu diria que seu pertencimento à cultura negra está estreitamente vinculado a sua posição socialista (é uma consequência da antropologia socialista). A versão liberal dessa aproximação ao outro que me vem à cabeça, eu confesso que penso maldosamente, é o documentário de família Clinton sobre o Curdistão.

    Você tem que soltar as histórias a medidas que elas vem a cabeça. E uma última pergunta, e Carlinhos Brown?

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