Marighella

Fernando Meirelles me chamou de ladrão.

Não foi nada pessoal, até porque ele nem sabe que existo. Foi uma ofensa genérica: ele anda meio chateado porque o filme “Marighella”, dirigido por Wagner Moura, estrelado por seu Jorge e do qual ele é produtor associado, vazou nas redes. “Por alguma razão as pessoas acham que roubar fruta na árvore ou assistir filme pirata não é roubo. A mente humana é pródiga em autoengano”, ele disse à Folha de S. Paulo ontem, sentado nos muitos dinheiros arrecadados através de leis de renúncia fiscal e financiamento direto das tetas da viúva. O discurso é assustadoramente próximo dos bolsonaros da vida, que também chamam o financiamento público de filmes de roubo, mas adoram se apropriar dos fundos públicos em rachadinhas e quetais. Muda só o ponto de vista.

A novela de “Marighella” acabou se tornando razoavelmente longa. Primeiro por causa do boicote anunciado pelos bolsominions, assustados com qualquer coisa que não seja fake news; depois por causa da pandemia. Lá fora o filme estreou em 2019, fazendo o circuito dos festivais que é a praxe em filmes fora do esquema hollywoodiano. No Brasil, estrearia em novembro daquele ano, mas o governo Bolsonaro fez o que pôde para evitar sua exibição. Eles têm muito medo de filmes, de comunistas mortos e de vacinas. Recentemente, “Marighella” estreou comercialmente nos EUA, de onde vazaram as cópias legendadas que circulam agora. Vai estrear no Brasil em novembro deste ano.

O povo brasileiro ajudou a financiar um filme que, durante dois anos, não pôde ver, enquanto seus produtores o rodavam mundo afora para viabilizar seu lucro ou sei-lá-o-quê. Quando finalmente tem a chance de assistir a ele, graças à desonestidade inata dos americanos, é chamado de ladrão.

Assim, enquanto murmurava “não esculacha, chefia!” e colocava as mãos atrás da cabeça, sabendo-me pego, lembrei do Cacá Diegues chiando quando cobraram a ele algo que, se não me engano, chamaram de “contrapartidas sociais”, uns 20 anos atrás — e que, acho, consistia em levar ao povo o filme feito com seu dinheiro. Diegues é o mesmo sujeito que criou a expressão “patrulha ideológica”, em meio à ditadura militar. Como Meirelles, é gente que gosta muito de dinheiro público, mas não tanto de devolvê-lo.

Para piorar ainda mais as coisas, essa postura hipócrita do Meirelles talvez não fosse tão irônica se o filme não contasse de um comunista que dedicou sua vida, quem diria, à abolição da propriedade privada. Se ladrão há nessa história, esse ladrão é o Marighella, e nesse caso tenho muito orgulho de ser chamado assim, ainda que por tabela.

Só então eu, ladrão contumaz e irrecuperável, percebi que nunca tinha roubado um filme do Fernando Meirelles, muito menos esse “Marighella” (que, não custa lembrar, não é dele).

Eu não lembrava do filme, nem mesmo da polêmica causada pela escolha de Seu Jorge para o papel do protagonista, o primeiro caso de “blackwashing” de que tenho notícia. Na época achei interessante, porque não apenas é mais válido que embranquecer um personagem, mas também porque levou a uma reavaliação iconográfica de Marighella que corrigiu um grande erro histórico e jogou nas fuças das pessoas a glória da sua mulatice. Só depois percebi que há um problema inerente a essa decisão. A escolha de Seu Jorge parece mais que aceitável diante do histórico de racismo e obliteração da imagem do negro nas artes, mas no fundo acaba sendo mais um evento de negação da miscigenação brasileira, a entronização de um binarismo racial americano que representa um retrocesso e que, infelizmente, é cada vez mais aceito. Um cabo de guerra em que o mulato, moreno, pardo, chamem do que quiserem, é negado em função de um discurso insuficiente.

Mas quem disse que o crime não compensa não viu ainda este filme. “Marighella” é excelente, uma grande obra. É ainda melhor no atual contexto político do país, em que qualquer pessoa que não seja totalmente imbecil ou canalha é chamada de comunista. Wagner Moura estreia como um diretor seguro, que tem perfeita noção da história que está contando. Para inseri-la melhor no contexto atual, reforça inclusive a questão racial, que não era exatamente prioridade naqueles tempos. Moura mostra-se também um excelente diretor de atores, como se pode ver nas atuações excelentes de Bruno Gagliasso, Adriana Esteves e Luiz Carlos Vasconcelos. Nenhum desses, entretanto, iguala o desempenho excepcional de Seu Jorge. Seu Jorge consegue passar, simultaneamente e com brilhantismo, a dureza e a humanidade de Marighella.

A direção de arte também é excelente, em que pesem anacronismos como a presença conspícua de pistolas PT 92 muitos anos antes de serem criadas, antes mesmo até das Beretta 92 que as originaram, ou a luz avermelhada das lâmpadas de vapor de sódio nas ruas.

Terminado o filme, satisfeito com meu butim, desliguei a televisão esquecido de Fernando Meirelles, até que fui ao IMDb e vi que a nota dada a “Marighella” é 3,2.

Cheguei à conclusão de que só gente como Meirelles avaliou este filme, pelo visto. E visualizei imediatamente aquela legião de toscos tangidos pelo Carluxo apertando freneticamente a menor estrelinha, ignorando quaisquer qualidades cinematográficas do filme — o que, aliás, ele tem em demasia. Por isso ele deve ser roubado e compartilhado por quem puder. Todos os brasileiros deveriam ver este filme; velhos comunistas como Marighella e o Comandante Toledo (e João Amazonas, e Elza Monnerat, ou os tantos outros que não conheci) podem estar fora de moda, mas é preciso que voltem a mostrar a um povo cada vez mais afundado numa lama antes inimaginável que um outro mundo é possível, e que para isso ele nem precisa existir de verdade.

“Marighella” deve ser roubado e roubado e roubado de novo porque ele quase nos devolve o orgulho de sermos brasileiros. Ainda que seja de uma forma perfeitamente exemplificada na cena final, que deveria ter sido incluída no meio do filme: angustiada, desesperançada, mas ainda assim com orgulho e, acima de tudo, fé.

8 thoughts on “Marighella

  1. “E visualizei imediatamente aquela legião de toscos tangidos pelo Carluxo apertando freneticamente a menor estrelinha, ignorando quaisquer qualidades cinematográficas do filme — o que, aliás, ele tem em demasia.”

    Realmente, as avaliações ou são muito positivas ou muito negativas. Quase 3/4 das avaliações foram de nota mínima. Do restante, mais de 90% são de nota máxima. Os comentários negativos são de um nível pavoroso.

  2. A imprensa se mostrou desinformada e consequentemente desinformou o leitor sobre o “vazamento” do filme. Comparou com Tropa de Elite, o que não tem nada a ver.

    Tropa de Elite teve uma cópia roubada de dentro do estúdio (se não me engano, de uma empresa associada que estava fazendo a legenda em inglês). Não tinha sido lançado comercialmente, e foi realmente um dos maiores vazamentos que se tem notícia.

    Com Marighella foi totalmente diferente. Foi lançado no streaming nos EUA seis meses antes do lançamento no Brasil. O pirata só fez usar ferramentas simples e amplamente conhecidas pra capturar o streaming direto de seu provedor oficial e transformar num arquivo de vídeo que pode ser copiado à vontade.

    Isso é feito todos os dias, o tempo todo. Não tem nada de excepcional.

    Os estúdios tanto sabem disso que lançam seus blockbusters simultaneamente nos cinemas do mundo todo. Porque, mesmo uma cópia filmada com câmera direto da tela do cinema, numa qualidade bem inferior à cópia digital, já representa um potencial prejuízo, se chega aos DVDs piratas muito tempo antes do lançamento. Imagine uma cópia digital entregue de bandeja!

    Se a fucking Disney, um conglomerado bilionário, faz isso, por que os produtores de Marighella não atentaram para a questão? Acho que só por burrice mesmo.

    Se os produtores não queriam que isso acontecesse, deveriam ter programado o lançamento simultâneo do filme nos EUA e no Brasil, como todo mundo faz.

  3. Independente do fato do Bolsonaro ser o mongoloide que demonstra ser todos os dias, pra mim, investir recursos, públicos ,ou não, para produzir filmes que são pura apologia à figuras nefastas como Lula, esse Maringhella, Suzane von Richthofen e assemelhados deveria ser punido com pena de prisão aos responsáveis. Esses bandidos supracitados, o mínimo que merecem é ser esquecidos e cumprir as penas que a nossa lei, mesmo que mais que maleável, os condenou. No caso do Maringhella, que é o objeto o post, a morte foi uma pena branda, em se tratando da gentalha em questão.

    • “Apesar do Bolsonaro ser um mongoloide” 🙄

      Que papo furado da porra hein.

      Você apertou 17 na urna até afundar a tecla, e agora que está com vergonha de ter ajudado a eleger o pior presidente da história do Brasil, fica negando o que fez.

      Tenho certeza que o Rafael só deixou o seu comentário ir ao ar para deixar cristalino como bolsonaristas,orgulhosos ou arrependidos, são apenas uma gente cretina.e hipócrita.

  4. Por não suportar o Seu Jorge (pelo deslumbramento e pela participação no “Cansei”), nem ia ver o filme. Seu post me deixou curioso. Vou buscar no torrent.

  5. “Paul Sernine”, o seu comentário foi bloqueado. Uma das poucas coisas que este blog nunca admitiu foi ofensa a outro comentarista.

    Dito isso, é impossível deixar de desconfiar que imbecil é quem vem a este blog, que nunca foi um blog de direita, e reclama de comunistas e de lulistas.

  6. Rafael,

    Antes mesmo de terminar de ler o texto eu já me senti compelido a cometer o meu próprio crime, como pirata e ladrão que sempre fui. Valeu! “O primeiro caso de ‘blackwashing’ de que tenho notícia” é muito bom! haha

    Esse apagamento da mestiçagem em favor do binarismo é mesmo muito triste, porque ele apaga também algo muito forte, nossa resposta, não teórica, mas ética à ideologia da pureza que ainda grassa pela Europa. É uma ética das mais bonitas que há e nada simplista, nada idealizadora, muito real (apesar dos pesares).

    Agora, o tema da pirataria e da propriedade privada me encanta. Se a gente desloca a discussão da cultura para a pesquisa científica ficam ainda mais claros os efeitos nefastos de tudo isso. Talvez você saiba que eu me formei na UFBA, onde também fiz meu mestrado. E sempre frequentei muito as bibliotecas da universidade. Livros são o material mais básico de uma universidade, é começo de conversa, e ainda assim é brutal a diferença entre a biblioteca Isaias Alves, lá em São Lázaro, e a biblioteca Florestan Fernandez, na FFLCH/USP. E essas diferenças não parecem consideradas em nenhuma parte. Não vou nem falar da diferença entre as bibliotecas brasileiras e as estrangeiras, o acesso aberto às revistas (o paper, mais que o livro, é o elemento central da pesquisa científica há bastante tempo), coisa que ainda claudica por aqui. Você acha que alguém na Bahia quer ser um pesquisador pior do que qualquer outro só por que mora na Bahia? O impulso do conhecimento é um impulso pela areté, aquela palavra que tradutores ora traduzem por virtude, ora por excelência. Ninguém quer ficar pra trás só pra play by the book. Honestamente, a propriedade privada é uma piada e seus dias estão contados.

    Por tudo isso, eu creio que nossos reais patronos (de nós, estudantes e pesquisadores periféricos) são gente anônima que eu simbolicamente represento em Alexandra Elbakyan e Aaron Schwarz, gente que dispõe do seu tempo e de sua vida para ajudar a inteligência de seres humanos desconhecidos. Aliás, já escrevi sobre tudo num post sobre [a erosão da propriedade privada](https://brausen.com.br/2020/02/a-erosao-da-propriedade-privada/).

    A verdade é que as pessoas vivem em diferentes mundos, e a ilusão da singularidade do real (mantida pelo império da ciência) mascara os efeitos éticos e políticos dessa pluralidade. Essas pessoas que você nomeia no post vivem num mundo diferente de gente como Alexandra e Aaron. Integrar-se ao mundo desses dois (o mundo do conhecimento livre) me parece fundamental para construir uma ética distinta entre seres humanos, mais aberta, menos susceptível ao medo, menos desconfiada (menos liberal e anti-hobbesiana). Se tudo isso pudesse ainda ser integrado à nossa mestiçagem, seria um sonho. Vê-se que eu sou o pessimista mais esperanço que existe! haha

    Um abraço e, as always, gracias pelo texto!

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