And, in the end

Eu preciso confessar que os lançamentos recentes da empresa que se chama Beatles me enchem de tédio. Longe da empolgação inicial trazida pelo Live at the BBC e os discos do Anthology, o que se vê nos últimos 20 anos é indigno do legado da banda. Do engodo que foi o Let it Be… Naked, passando pelos cafés requentados da remasterização de 2009, o segundo Live at the BBC e o razoável Hollywood Bowl à raspagem de tacho que são as edições comemorativas, cada lançamento merece basicamente um bocejo e um tsc, tsc.

Quando o Álbum Branco foi remixado, em 2018, fiz um comentário aqui. Mas a verdade é que esses discos me interessam muito pouco. A essa altura da vida, a perspectiva de ouvir versões sempre inferiores de canções que já conheço de cor há décadas — isso quando não conheço as próprias versões, circulando há décadas no mercado pirata — não abre meu apetite.

Por isso, ouvi os discos de maneira muito superficial — confesso inclusive que na época não cheguei a ouvir muitas das faixas inteiras. Para que eu iria ouvir de novo as demos de Esher? Nessa brincadeira, acabei deixando passar alguns detalhes importantes.

Duas das faixas são realmente boas. Los Paranoias, que já tinha sido incluída em parte no Anthology III, aqui está em sua forma completa. É uma bela jam, talvez o mais próximo que McCartney chegou do jazz enquanto era um beatle. Mas é importante não tanto pelo seu valor intrínseco, mas porque acaba mostrando que talvez George Martin não fosse a pessoa indicada para fazer a curadoria do projeto Anthology, nos anos 90. Martin raciocinava como “o produtor dos Beatles”. Estava mais que disposto a jogar fora o que não se encaixava em um padrão de qualidade bastante alto e muito claro para ele. E nesse tipo de caça-níquel, às vezes o que se quer ouvir é justamente o contrário.

A outra é a faixa que abre o quarto disco, o take 18 de Revolution 1. É uma gravação maravilhosa. Ela consegue encapsular tudo o que Lennon queria dizer em Revolution e em Revolution #9, com a genialidade, coragem, experimentação, capacidade de síntese de uma época e senso comercial que tornaram os Beatles a maior banda da história. Se em vez de incluir essas duas faixas no disco ele tivesse finalizado e colocado só esse take 18, tinha passado o recado e feito um álbum muito melhor. Revolution #9 é uma maluquice de Yoko Ono contrabandeada num disco dos Beatles. Essa nova versão é Beatles puro, ao menos em um determinado contexto histórico.

Mas o principal aspecto que deixei passar é que Giles Martin, ao remixar o álbum, cometeu um crime de lesa-majestade.

A produção do Álbum Branco foi caótica. Geoff Emerick cansou e deu no pé, e isso alterou significativamente o padrão de gravação das músicas. Depois George Martin, de saco cheio, tirou férias e parte do disco foi efetivamente produzida por Chris Thomas.

O resultado é que o Álbum Branco sempre soou diferente. Mais agudo, mais metálico, mais agressivo. É uma prova da diferença que faz um engenheiro de som.

Giles Martin, no entanto, suavizou esse som. Tornou-o mais grave, mais de acordo com o padrão George Martin que voltaríamos a ver, em toda a sua glória, no Abbey Road. O resultado é uma fraude histórica. É desonesto.

Mas independente desses detalhes, minha opinião sobre esses lançamentos continua a mesma. São redundantes. Não comprei nenhum, nem pretendo comprar. Eles já são ricos demais para se importar se apenas baixo as .flacs.

Isso muda com a nova edição do Let it Be. Essa eu quero.

A caixa que anunciam agora é, em parte, o que se esperava, para o bem e para o mal. Traz o disco original remixado (o que deve ser algo bom, porque ele sempre soou mal, abafado, embora eu não saiba se é possível melhorar muito); um EP redundante; o Get Back com a capa original; e uns disquinhos com jams, outtakes e ensaios.

Os discos de adicionais são o mais decepcionante, porque o material disponível é tão absurdamente grande e variado que qualquer um poderia fazer algo melhor do que a sequência medíocre de outtakes que decidiram incluir. Com uma capa ainda mais apalermada que a do Let it Be original, traz uma seleção inexplicável em sua falta de imaginação ou mesmo alegria.

Pelo que vejo, o melhor da caixa é o Get Back. Não pelo disco em si, que não era melhor que o Let it Be final. Mas por finalmente trazer à luz o LP que chegou a ser distribuído para algumas rádios, com a capa em que eles recriavam o Please Please Me sete anos depois. Eu sempre achei que essa deveria ter sido a capa do Let it Be. Pelo significado, pela sensação de que ali se encerrava aquela história, e porque é uma ideia fantástica, mais típica dos anos 60 que minissaia e LSD.

É ele, só ele, a razão eu querer esse lançamento, depois de anos pouco me lixando. Eu faria diferente, claro. Minha caixa traria o Let it Be com a capa dupla da edição americana original e o livro que acompanhava a primeira tiragem, retirado logo em seguida porque aumentava muito o preço. Traria dois Get Back, com os dois mixes de Johns e as capas diferentes, para evitar a confusão que fizeram. E um álbum triplo com o que houvesse de melhor nos outtakes e jams da gravação do filme.

E é aqui que está a grande diferença. O álbum que está chegando às lojas traz basicamente outtakes do que já conhecemos. Sem ouvi-las não dá para saber quais são, mas aparentemente traz, de realmente interessante, apenas um ensaio de Gimme Some Truth, provavelmente uma das versões do dia 3 de janeiro, que mostra McCartney ajudando Lennon a compor a letra da canção. (E espero que a versão de Oh! Darling, que estaria mais à vontade no Abbey Road, seja uma do dia 31, que eu chamo de “bossa nova”).

E no entanto, os 30 dias de sessões têm tantas pequenas maravilhas que é quase impossível entender por que são ignoradas. Eu já falei aqui quais incluiria. Mas há muito mais que isso. Quem quiser conhecer, e tiver paciência, é só procurar nas redes P2P da vida por uma série de discos chamada A/B Road.

Ela só não tem o Get Back com aquela capa.

Mas há um outro motivo para eu achar que essa caixa tem algo diferente dos outros lançamentos.

Ringo Starr e Paul McCartney têm, respectivamente, 81 e 79 anos. Não seria agourar dizer que têm muito mais tempo para trás do que para a frente. A aventura dos Beatles representou um pedaço pequeno de suas vidas, mas foi decididamente o mais importante e o que deixou, durante 25 anos, uma série de problemas com que tiveram que lidar. Ao longo das últimas décadas, eles conseguiram resolver tudo isso: supervisionaram a transição para o digital, fizeram dinheiro como nunca tinham feito antes, e se empenharam em contar a sua versão da história. Faltava apenas o fechamento.

O Let it Be, junto com o filme Get Back, é o ponto final de todo esse esforço. É o último capítulo, a resolução afinal do seu momento mais conturbado, o mais contencioso, e certamente o mais doloroso. É como se Paul e Ringo pudessem dizer, finalmente, que o ciclo se fechou. A partir de agora, tudo o que a Apple Corps soltar é apenas para ganhar dinheiro, como foram as remasterizações dos últimos anos; decisões empresariais, basicamente, que não têm ligação orgânica ou emocional com a maior banda da história. O Let it Be/Get Back é certamente o último trabalho real dos Beatles. Agora eles podem descansar em paz.

3 thoughts on “And, in the end

  1. “Ringo Starr e Paul McCartney têm, respectivamente, 81 e 79 anos. Não seria agourar dizer que têm muito mais tempo para trás do que para a frente. A aventura dos Beatles”
    Aproveitando o ensejo, te envio esse link como uma mensagem de otimismo, quando vemos que o mais feio, mais desprezado e mais desrespeitado, no final se tornou o mais bonito, conservado e cultuado, no alto dos seus 81 anos. A vida dá voltas.
    https://youtu.be/vNSVGoPkiWk

    • Eu não tinha visto o clip, é bom. Pelo visto Ringo descobriu o que fazer durante a pandemia: juntar amigos em sua casa e sair lançando músicas de vez em quando. Isso é legal.

      Não sei quanto ao bonito — ele parece um leprechaun, pra mim –, mas é certamente o mais desrespeitado. É irritante ver tanta gente que teima em não reconhecer o grande baterista que ele é. Mas o que mais me impressiona, mesmo, é que um sujeito que teve tantos problemas de saúde na infância e adolescência, e passou a vida cheirando em excesso e enchendo a cara o tempo todo, chegue bem aos 81. É um sobrevivente, sempre foi.

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