Dia desses o Hermenauta me fez a pergunta que separa os homens dos meninos, os bons dos maus, os “raiz” dos nutella.
Chico ou Caetano?
No melhor estilo Caetano, respondi “Chico, ou não”. Porque essa é uma pergunta que pode ser respondida, sim, mas também precisa ser explicada; ela só aparenta ser fácil, e coisa séria assim não pode ser abordada de maneira leviana, um mero sim ou não.
Se em vez de perguntar quem eu prefiro você me perguntar qual é o mais importante, eu vou responder que Caetano é o músico vivo mais importante deste país; mais que isso, o músico mais importante do último meio século, o mais importante a surgir depois de João Gilberto.
Não ligo para as lives que ele andou perpetrando nesta pandemia, açoitado pela mulher-dragão, porque ele não tem mais nada de novo a me dizer; nestes tempos loucos tudo, ou quase tudo, pode ser perdoado. Mas eu sou baiano. Todo baiano nasce fã de Caetano, tem nele o porta-voz de pelo menos uma parte de si, e essa declaração deve estar em alguma parte da minha certidão de nascimento. Caetano é um dos artífices do que resolveram chamar de baianidade, assim como Jorge Amado ou Dorival Caymmi ou Ary Barroso. Deve ser por causa de Caetano que dizem que baiano não nasce, estreia.
Sendo um pouco mais racional, o fato é que desconheço músico, neste último meio século, que tenha tido tamanha importância na evolução da música brasileira, que tenha dado uma contribuição tão grande. Todo mundo que faz música no Brasil deve algo a ele.
Eu admiro Caetano pela sua capacidade de invenção e reinvenção, o seu esforço em levar a música brasileira sempre um passo adiante. Pela sua inquietação permanente, pela busca de novos horizontes, sempre. Pelo seu lirismo, também, principalmente nos aspectos formais, mas principalmente por ele ter sido, individualmente, um dos principais motores da música brasileira nos últimos 60 anos. Caetano é mais que um dos tantos gigantes que pisaram a Terra: é um deus, e é um privilégio ter vivido no mesmo tempo que ele.
Mas paixão, mesmo, eu tenho é pelo velho Chico.
Uns anos atrás ouvi cada um de seus álbuns com uma atenção que já não é mais comum em mim, cansado de um fin de siècle que parece nunca terminar. Na verdade, Chico Buarque foi um entre vários músicos que reavaliei. Na época, fiz uma revisão geral do conheço da música brasileira, e não é muito pouco. A partir daí refinei alguns conceitos, mudei outros, reforcei uns tantos. Entendi que o samba-canção é um dos momentos mais altos da música brasileira, lírica e musicalmente, insuperado ainda hoje, e foi injustamente relegado a um segundo plano pelo quase antagonismo da bossa nova. Descobri Carmen Miranda, uma das grandes sambistas da história e uma das melhores cantoras brasileiras de todos os tempos. Compreendi Gilberto Gil, cujo talento absurdo passei a finalmente reconhecer e admirar. Reencontrei o “Cinema Transcendental”, disco daqueles que tocavam direto no rádio em uma parte da minha infância, e entendi que ele sempre tinha sido o meu disco preferido de Caetano, eu é que não percebia e fingia preferir “Transa”.
Mas não há nada como ouvir Chico Buarque novamente, ou pela primeira vez.
Já escrevi aqui sobre a minha devoção por “João e Maria”. Mas não escrevi sobre o êxtase ao ouvir “joga bosta” — bosta! — “na Geni” quando era criança e entender que as coisas e as palavras podiam e deviam ser dessacralizadas — joga bosta em tudo, joga, joga bosta, joga bosta! Ou ver as manifestações pelas Diretas Já ao som de “Pelas Tabelas”.
Não escrevi sobre o arrepio que sinto cada vez que ouço “Cálice”. Em primeiro lugar pela familiaridade absoluta e, ao longo das últimas décadas, quase esquecida. Umas vidas atrás, quando ela finalmente foi liberada pela Censura, as rádios de Salvador pareciam não tocar outra coisa, e “Cálice” era a música que estava no ar, quase como orvalho ou o cheiro do óleo diesel nas avenidas ou do dendê na Praça da Sé esperando o ônibus ou o cheiro de mofo e de mijo que emanava dos casarões e dos becos do Pelourinho. E por isso ouvir aquele arranjo, depois de décadas sem a escutar ou ao menos ouvir com atenção, adquire uma importância que pouca coisa hoje é capaz de ter, à medida que as músicas se repetem e repetem e repetem sob um disfarce cada vez mais esgarçado de novidade.
Porque uma coisa não se esgarça, nunca: o lirismo de Chico Buarque traz sempre uma verdade absoluta e simples de que poucos letristas brasileiros conseguiram se aproximar. É o sujeito que revelou que saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu, mas se essa é talvez uma das imagens mais pungentes da música brasileira — enquanto tu pisavas nos astros distraída, hein, minha filha? — não é suficiente para explicá-lo, porque boa parte da sua graça está nas frases simples, na descrição de sentimentos menores, a poesia gigantesca que se tira do comum que é dito. Chico conseguiu isso como nenhum outro letrista jamais fez, e é isso que me liga a ele de maneira que eu sequer percebia.
Eu sempre soube que, se fosse músico e poeta e tivesse um talento pantagruélico assim, eu não seria Caetano. Minha admiração por Caetano é, antes de tudo, racional, é quase uma constatação. Penso em Caetano com a mão nos quartos diante do microfone e balanço a cabeça, é verdade, mas a verdadeira razão é outra: não consigo me imaginar escrevendo as letras que ele escreveu, não me vejo dominando aquele idioma, eu não consigo me ver sempre nessa busca por algo novo. E mais que isso, essa ligação emocional, que pode ter nascido da mãe que viu Chico surgir em shows no Rio, ou das músicas, ou do entendimento de que alguns dos versos mais belos da música brasileira dispensam de maneira tão natural quaisquer níveis de engenharia (como, se na desordem do armário embutido meu paletó enlaça o teu vestido, e o meu sapato inda pisa no teu?), eu não tenho com Caetano.
Chico, não. Sempre olhei para ele e achei que num boteco a gente ia se dar bem. Desconfio, por exemplo, que no fundo Chico Buarque é um conservador. Praticamente toda a música brasileira deve algo à bossa nova; ele não, é como se a música que ele sempre fez, aquilo que ele queria dizer só pudesse ser dito num idioma inventado pelas baianas expatriadas no Rio no início do século passado, e se sabe tão verdadeiro que não precisa de artifícios nem grandes invenções. E é por isso que eu sei que, fosse eu um gênio, seria um gênio assim.
Caetano pode ser a Ana Hickman, a mulher mais bela, perfeita quase. Mas a minha mulher é mais bonita que a Ana Hickman, sempre foi. É mais bonita porque é dela que eu gosto. E eu gosto é de Chico Buarque.
Nesse caso acho que o aforisma “gosto nao se discute” cabe perfeitamente.
O Chico deve ter escutado velhos 78s do pai. Desde o meio dos anos 60 muita gente via ele como um sucessor do Noel Rosa, não percebendo a nítida influência do Mário Reis.
Que bom ler seu texto. Como você, acho os dois gigantescos. E pra mim é claríssimo, desde quando eu tenho mais de 16 anos, que eu não preciso “escolher” um. Sei, sei, seu texto não é sobre escolher, mas ser escolhido.
Dois adendos. Pra mim, não há nada maior no Chico que “Quem te viu, quem te vê”. É o Everest do Himalaia. O outro é que meu pai era um homem conservador, nascido em 1918. Daqueles que não toleravam nada na música brasileira depois de, digamos, 1950. Não podia nem ver o cabelo do Caetano. Minhas irmãs e eu ouvíamos em casa esses caras que ele detestava e ele torcia o nariz. Um dia, ele disse, do nada: “Esse Chico Buarque é maior que Noel Rosa”. Nunca mais esqueci. Atravessar as idades assim não é pouco.
Boa resposta, Rafael! Eu escuto Caetano mais frequentemente, mas Chico é realmente uma experiência de outro tipo, é como rever um bom amigo, ele cria uma atmosfera singular.
Rapá, por que você não linka seus textos? De qualquer modo, vou procurar o de João e Maria (e salve Sivuca, hein)
Manda um abraço pro Hermenauta e pergunta se ele não tá a fim de escrever um blog, daqui a pouco volta a moda hehe
eu sinto falta do blog do Hermeneuta
lembro até hoje de uma postagem sobre corredores de naves espaciais em filmes e séries de ficção científica
Chico ou Caetano?
João Gilberto, sempre.
— Chico ou Caetano?
— Tom Zé, é claro.