Somtrês

O site Audiorama tem uma seção com quase todas as capas da revista Somtrês.

Gente com menos de 40 anos talvez nem saiba que revista foi essa, que circulou entre 1979 e 1989 — tanto tempo atrás, tão distante quanto os primórdios do século passado. Mas no começo dos anos 80 a informação era escassa, a diversidade de equipamentos era tão menor mas mais significativa do que hoje e formatos e mídias estavam em franca evolução, depois de alguns anos de estabilidade. Era nesse contexto que a Somtrês oferecia uma janela para um mundo diferente.

Passear pelas capas traz à memória um tempo em que as pessoas se preocupavam com equipamentos de som como hoje se preocupam com vinis empoeirados — embora com mais pertinência e utilidade real. Marcas como Cygnus, ou equipamentos como o Esotech, da Gradiente, aparentemente o mais perfeito à disposição do mercado brasileiro naqueles dias, são daquelas coisas que a memória enterrou, mas que se erguem do túmulo  à primeira menção. É o que basta para colocar essa coleção de capas em boa posição no campo gigantesco das curiosidades nostálgicas, mas ela é mais que isso.

Em 87 a Somtrês previa o “som futuro”, num momento em que o CD (que ela já anunciava em 1979) começava a se popularizar no Brasil: morte do LP, queda dos preços, fim do contrabando, AM estéreo, VHS x 8mm; agora que o futuro se tornou passado, tudo parece tão distante, tão fora deste mundo. Tanta coisa não se concretizou, tanta coisa já é passado, tanta coisa não parece mais fazer sentido.

Também fica claro que a bobagem sempre grassou impune entre o pessoal que gostava de música. Lembro de ler nela que os LPs brasileiros tinham péssima prensagem, que bons mesmos eram os japoneses e, acho, os americanos ou ingleses. Podia ser. Mas lembro também de ler, sei não onde, e dito por gente que se apresentava como séria, que os CDs brasileiros eram piores que os japoneses — absurdo anti-binário que precedeu em alguns anos o terraplanismo que hoje achata o nível geral da inteligência da humanidade. Mas no fundo talvez nada tenha mudado. Talvez esse seja o mesmo pessoal que hoje deifica discos de vinil, inventando desculpas para o seu elitismo, já que ter discos importados em tempos de globalização e MP3 e Spotify ou tape decks de rolo quando o som é digital não importa mais.

O que se revelou mais permanente na Somtrês, ao contrário do que seus editores originalmente pareciam acreditar, foi a música. O Jornal do Disco era, de longe, a sua melhor seção, e com o tempo assuntos musicais se tornaram o verdadeiro cerne da revista, já que gente que simplesmente gosta de ouvir música está por aí em maior número que audiófilos, vendedores e técnicos em eletrônica. Rapidamente, uma série de produtos derivou da revista, sendo ainda melhores: a Enciclopédia do Rock, revistas sobre Elvis, Beatles, Stones, posters para cada gosto — ainda tenho uma coleção de posters dos Beatles com resenhas sobre cada faixa de cada disco escritas pela Maria Emília Kubrusly, no verso. Logo no começo, havia até uma página dedicada aos Beatles, escrita pelo Marco Antônio Mallagoli.

Lembro de praticamente todas as capas entre 1984 e 1986. Mais que isso, lembro também de algumas de seus primeiros anos, porque a Editora Três costumava reembalar seu encalhe e o colocar novamente à venda periodicamente, e eu comprei várias delas. Olhando para elas agora, me chama a atenção a mistura de serviço e música que ela tentava oferecer, e fico com a impressão de que ela era talvez meio confusa, tentando atingir públicos muito diferentes entre si.

A Somtrês foi morta pelo futuro que anunciava. Não conseguiu embarcar na onda que o Rock in Rio deflagrou no país, popularizando o rock além do eixo Rio-São Paulo. Contou também com um auxílio da Bizz, revista da editora Abril mais adequada ao público jovem — mais moderna, menos honesta, mais provinciana em seu pretenso internacionalismo, em uma editora maior — que arrebanhou boa parte da sua equipe. Seu surgimento em julho de 1985 significou a sentença de morte da revista da Editora Três, que se tornou automaticamente velha. A Bizz, em sua grandeza e canalhice, merece um post só para ela. Mas olhando agora as capas da Somtrês, congeladas em tinta e papel, tudo nela recendendo a um passado cada vez mais distante, inclusive o que para ela ainda era futuro, é impossível deixar de lembrar a sua importância.

3 thoughts on “Somtrês

  1. Sobre a prensagem dos discos estrangeiros serem de melhor qualidade que a dos brasileiros, não sei dizer. O que digo com certeza é que os discos dos EUA eram mais espessos, fletindo menos. Meu pai viajava muito a trabalho pros EUA e trazia discos de lá. Colocando lado a lado era nítida essa diferença. Ou seja, aqui as multis economizavam vinil diminuindo a espessura, já que o consumidor brasileiro médio não é de reclamar.
    Em relação ao CD, bullshit. O CD é apenas um meio que reflete ou deixa passar o sinal do laser (“0” ou “1” binário como você disse). A não ser que o espelhado da sua superfície descasque, não faz a menor diferença. Ao menos nos primórdios, todos os CDs brasileiros eram produzidos na mesma fábrica instalada em Manaus, cujo nome não me recordo. Era uma unidade moderna, pois obviamente teve que ser montada do zero lá por 1990.

    • A espessura dos discos foi reduzida de maneira radical na metade dos anos 80, em grande parte por causa da disparada inflacionária. Antes disso, a diferença entre os brasileiros e americanos não era tão grande assim, que eu me lembre. Aliás, nessa época eles chegaram inclusive a economizar o verniz nas capas dos discos (“Graceland”, de Paul Simon, é um exemplo). Era assustador. Eu tenho alguns discos dos Beatles comprados nessa época, com o selo amarelo. Chega a ser vergonhoso compará-los com os anteriores, com selo azul.

      De qualquer forma, a questão da prensagem diz respeito também a outras coisas, como qualidade de matrizes, etc. Eu não sei se era tão diferente, mas não entendo disso.

      O nome da fábrica manauara pioneira era Microservice, se não me engano. Uma das Somtrês (se não me engano uma que trazia um poster de Paul McCartney) trazia uma matéria sobre ela. Acho que foi a última que comprei.

      Dez anos depois, qualquer malandro em Cascadura pirateava CDs num galpão.

      • De fato os discos brasileiros mais antigos eram bem melhores. Lembro-me de um “Rubber Soul” original dos anos 60 de uma tia minha. Era espesso e resistente, tanto que prosseguia firme e forte nos anos 80.
        Microservice. Isso mesmo.
        Fui testemunha desses CDs made in Cascadura. Por volta de 2000 os camelôs no Largo da Carioca vendiam cópias piratas de lançamentos populares por 1/10 do preço dos originais. Uns 6 anos depois eram os DVDs (3 por R$ 5, de Van Damme a pornō da Gretchen…).

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