De onde vêm as palavras

Eu menti. Menti descaradamente, mas peço perdão porque não foi intencional.

Alguns anos atrás, respondendo a um comentário do Serge, falei que os quadrinhos Disney não foram importantes para o desenvolvimento do meu vocabulário.

Eu realmente acreditava nisso. Mas depois que escrevi me peguei pensando nas revistinhas que li quando tinha 6, 10 anos. E aí lembrei dos vândalos.

Passei anos tentando descobrir em que revista eu tinha lido uma certa história do Zé Carioca. Nela o Zé, em um dos quadrinhos, olha para uma porção de colcheias e semicolcheias caindo do céu porque um pandeiro mágico fora destruído, enquanto o inventor do instrumento, fora de quadro, grita: “Vândalos!”

Foi na Disney Especial “Os Mágicos”, de maio de 1979, e se chamava “O Pandeiro Mágico”. A partir do dia em que li essa história, e por um bom tempo, imaginei que vândalos fossem aquilo, aquelas figuras de notação musical.

Lembrando disso percebi que ao menos uma base do que entendo do mundo aprendi naquelas revistinhas, principalmente nas histórias escritas por Carl Barks. Até hoje, por exemplo, se imagino um país longínquo penso que o seu nome termina em “-istão”, porque o Tio Patinhas e os sobrinhos sempre precisavam resolver problemas e roubar tesouros em cusdemundo como Longistão ou coisa parecida.

“Expediente”, por exemplo — no sentido de lista de funcionários —, é palavra que aprendi também lendo as Disney Especial.

Durante anos achei que “dervixe” era outra dessas palavras, mas há pouco finalmente achei a história em que os tinha visto — e nela a palavra dervixe não era usada, e sim acrobatas; o que mostra um aspecto ainda mais curioso, aquele em que a imagem é tão forte que quando você descobre a palavra que a define automaticamente a associa a ela.

Essas são as de que lembro agora, sem pensar muito. Não faço ideia de todas as que aprendi naquelas revistinhas — ah, lembrei de outra, “cosmonauta” —, porque revistas não têm o caráter de permanência dos livros.

O meu problema, o que me faz desprezar tão injustamente as revistas em quadrinhos, é que ao mesmo tempo em que as lia, também lia outros tipos de livros, como a tal “Clássicos da Literatura Juvenil” de que já cansei de falar aqui. E lia também os livros do meu pai, com preferência para os policiais da Colecção Vampiro. Além disso, depois que ficou fácil achar essas revistas digitalizadas, reli várias delas e a verdade é que lembrava de muito poucas histórias, e por associação achei que não aprendi tanta coisa assim.

Claro que nem tudo era essa maravilha de que lembro e falo, e eu certamente tinha dificuldades para entender grande parte do humor e da ironia, e levei a sério demais livros como “As Aventuras de Huck”, embora mesmo depois de ler o original não consiga concordar com Hemingway, que dizia ser esse livro o ponto de partida da literatura americana. Da mesma forma, hoje tenho certeza de que acabei por menosprezar a importância daquelas revistinhas porque não consegui resolver uma dicotomia curiosa: nas últimas décadas, uma progressiva estupidificação cultural mundial se esforça para elevar os quadrinhos a um patamar literário imerecido, o que me incomoda porque, no exagero contrário, nunca achei que sequer chegassem perto de literatura séria.

No fim das contas, o fato é que eu lembrei dos vândalos, mas não posso fazer ideia de todas as palavras que aprendi naquelas revistas, de lugares do mundo reais ou imaginários. Devo mais a elas do que consigo imaginar. E isso nem sempre é bom: se você quer me enrolar, é só me falar de um país qualquer cujo nome termine com “-istão”. Eu vou acreditar que ele existe.

One thought on “De onde vêm as palavras

  1. O português correto que falo hoje se deve a base que adquiri nas revistas do Walt Disney da decada de ’70.

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