A biografia de Walt Disney por Neal Gabler chegou há algumas horas. A tradução é de Ana Maria Mandim. O livro está na terceira edição. E está me lembrando também de algo que eu sempre disse: que o mais importante no ofício do tradutor não é tanto conhecer a língua de que se traduz, mas a língua para a qual se traduz.
Quando o livro menciona a fazendinha em Marceline, Missouri, em que Walt passou parte de uma infância idílica e que transformou no ideal americano de milhões de crianças em todo o mudno, é assim que o trecho é traduzido: “Havia raposas, opossums, guaxinins.” Uma nota da tradutora explica o que é um opossum:
Tipo de marsupial, que não é morcego, com aparência de um rato de pelo longo, encontrado na América do Norte, ao norte do Rio Grande.
Ainda estou em dúvida sobre o que a moça quis dizer: não sei se fico aliviado por saber que morcegos não são marsupiais, ou apavorado ao descobrir que o morcego é um marsupial, mas não é um opossum.
Essa mixórdia seria evitada se a moça soubesse que opossum tem tradução simples e fácil para a última vagaba do Lácio: gambá. Tudo bem que não traduzisse por saruê ou timbu, termos a que estou mais acostumado porque são nordestinos. Mas é gambá, diacho, bicho que a gente vê o tempo todo em quintais e esmagados em estradas. Um opossum é tão gambá quanto um raccoon é guaxinim — apenas são espécies diferentes: o único gambá da América do Norte é o gambá-da-virgínia, assim como o guaxinim do Norte é o raccoon e o nosso é o guaxinim ou mão-pelada. Se traduziu raccoon por guaxinim, que traduza opossum por gambá porque a lógica é a mesma, e está tudo certo e a gente segue a leitura em paz.
Mas não, não fez isso e hoje vou ter pesadelos com morcegos marsupiais revoando meu telhado e carregando morceguinhos vampiros em sua bolsa.
O mais irônico é que tudo isso eu aprendi assistindo a “Disneylândia”, nos meus verdes e tão distantes anos.
Mas a coisa não termina aí.
A tal fazenda “era, nas palavras da tia de Elias, ‘um lugar muito boíto’”. A nota da tradutora explica:
No original, a frase é “very hansome (sic) place”. O correto seria “handsome”.
Eu até posso ouvir Elvis ou Carl Perkins falando hansome. Mas ninguém neste país assolado por Pablo Marçal fala “boíto” no lugar de bonito, com exceção de Didi Mocó muito tempo atrás. Traduzisse por “bunito”, tradução muito mais aproximada do contexto original, e não precisaria sequer de nota.
Tudo isso é na página 26. Tenho mais 700 pela frente. Que Deus me proteja.
Essa, digamos, relutância (ou ignorância mesmo) de não traduzir opossum por gambá, que, como você, acho ridícula, pode, talvez ter origem no fato de que pros fãs de Disney (e de Loup le Beau), gambá é outro animal, é aquele da urina fétida. Claro que se trata do *cangambá*, outro animal, que eu achava não existia no Brasil, mas a Wikipedia me diz que existe no NE brasileiro. A mesma Wikipedia me diz também que não é urina, é uma secreção outra. Ah, e o nome saruê já ficou bem comum no Sudeste. Timbu, não. Boa leitura.
É uma possibilidade. Com uma palavra (opossum) que, embora esteja em dicionários, mais complica que esclarece e uma nota explicativa que não explica nada, o leitor se conscientiza de não saber do que se trata e não pensa que é um animal em vez do outro.
Outra possibilidade, no espírito daquela enciclopédia que, no verbete Cavalo, informava que “todo mundo sabe como é um cavalo”, seria dizer que “opossum é outro animal pequeno que criança pode atormentar com estilingue”.
Eu também achava que cangambá não existia no Brasil.