De como Heather McCartney destruiu os Beatles em apenas 9 minutos

E você aí falando besteira, dizendo que foi Yoko Ono quem acabou os Beatles.

Mentira, mentira canalha. Quem acabou a banda foi Heather McCartney, no dia em que algum insano deu um microfone para ela durante as gravações do Let it Be.

Um bebê que se comportasse assim daria à sua mãe motivo real para infanticídio com requintes de crueldade, e ela seria absolvida por qualquer juiz do mundo, absolvida até pelo Papa Francisco. Ainda hoje não sei como George Harrison não se levantou e bateu em Heather com o seu guitarra até que restasse apenas uma papa ensanguentada no chão, enquanto ele gritava palavras incompreensíveis em chinês, babando com olhos vítreos.

Enquanto isso Lennon, que queria ver o circo pegar fogo, encorajava Heather: “Come on, Heather! Come on, Heather!” Ou talvez ele estivesse apenas chapado, ou então tenha visto na menina uma digna seguidora de Yoko. “Essa menina vai longe…”

Eu não sei. Mas tenho certeza de que foi ali, nesse dia, que os Beatles acabaram. E então a pobre Yoko, vítima de uma campanha canalha ,levou a pecha que deveria recair sobre aquela menina lourinha de 6 anos.

Armandinho, ou onde o humor vai para morrer

Tá, eu confesso: acho a tira do Armandinho, que tem feito certo sucesso recentemente, tão chata que de vez em quando me pego pensando que ela sintetiza tudo o que há de errado em uma certa maneira de ver o mundo atualmente, mesmo sabendo que essa ideia é talvez ambiciosa demais para quadrinho tão medíocre.

Armandinho tenta fazer passar por humor o que o mundo tem de pretensos bons sentimentos.

É uma espécie de sub-Mafalda, e essa parece ser sua inspiração óbvia, quase plagiária. Mas entre eles há um abismo de diferença não apenas de profundidade — é genuinamente assombrosa a capacidade do Armandinho de destilar platitude atrás de platitude —, mas de tempo e coragem: é fácil fazer Armandinho hoje, difícil era empurrar uma Mafalda nos tempos que precederam a ditadura militar argentina.

Mas não se trata apenas dos tempos. É a própria natureza da besta: comparado com a criação de Quino, Armandinho é raso e sacarino como um pires de água com açúcar. Enquanto Mafalda fazia perguntas, Armandinho apenas nos oferece respostas que parecem tiradas do “Minuto de Sabedoria”. Pior, diz isso sem sutileza alguma.

Não há inteligência em Armandinho. Há apenas o óbvio. Talvez seja isso o que irrita nele, a maneira quase redundante como diz as coisas, medíocre porque é a mediocridade que atinge o maior público. Como disse alguém, o Armandinho parece uma aula de Educação Moral e Cívica, aberração educacional que a redemocratização felizmente enterrou.

Basta perceber isso para lembrar também que não há uma gota sequer de coragem em Armandinho. É muito fácil fazer humor a favor, afetando uma superioridade moral imaginária sobre os demasiado humanos. Ninguém em sã consciência consegue ir de encontro ao que Armandinho diz: ninguém é, ao menos filosoficamente e em discurso, contra o amor, contra a tolerância, contra o respeito, contra a bondade.

Quando Edvaldo Nogueira, então presidente do PCdoB em Sergipe, me chamou oficialmente para entrar no partido num dia qualquer dos meus verdes e longínquos anos, o partido estava saindo da ilegalidade. Era muito diferente do que é hoje. Ainda eram muito presentes a cultura da clandestinidade, o respeito (ao menos teórico, no meu caso) aos mandamentos draconianos de Diógenes Arruda em “A Educação Revolucionária do Comunista”. Enquanto isso, ao meu redor, poucos, pouquíssimos eram socialistas, muito menos comunistas. Eu era o radical, na contramão.

Mesma época, eu era um beatlemaníaco fanático em uma cidade pequena com pouco acesso a informação e num tempo em que os Beatles estavam fora de moda. Se hoje você ouve uma banda pela primeira vez e duas horas depois já tem toda a discografia dela, eu demorei mais de dois anos para conseguir ouvir tudo o que os Beatles tinham lançado oficialmente, ainda que praticamente só pensasse nisso. Ao meu redor, ninguém ouvia os Fab Four. Eu era o velho, na contramão.

Se as duas coisas não parecem ter a ver uma com a outra, e menos ainda com Armandinho, elas têm. Me acostumei a achar que não existem “ideias certas” como as que o Armandinho defende. Que é necessário sempre o contraditório, que verdades não são absolutas (diacho, nem a Albânia era absoluta). E criei a convicção de que é muito fácil seguir adiante com as ideias da maioria. Não deveria ser essa a função do humor, se é que humor tem alguma função. Humor tem que provocar, mostrar o outro lado, expor o ridículo da vida e das coisas, principalmente do que é aceito como verdade sedimentada. Humor de qualidade instiga a pensar, lança uma luz nova sobre o mundo, não se esgota em um sorriso de auto-satisfação bovina. No mínimo, humor faz rir.

Armandinho não faz nada disso. Anestesia, no máximo. Está para o humor como a literatura de autoajuda está para Dostoiévski. Apenas nos reconforta com a sensação de que, nos nossos melhores momentos, somos boas pessoas porque tentamos nos reconhecer nele. Nos faz esquecer que no resto do tempo somos mesquinhos, vis, egoístas. E por isso ele não provoca, não faz pensar, não arranca sequer um sorriso de canto de boca. Uma tira engraçadinha que nos faz sentir melhor por sermos quem somos: o humor não podia pedir atestado de óbito mais claro. E triste.

Sem cenas do próximo capítulo

A essa altura, não tenho dúvidas de que a Rede Globo está morrendo. É uma agonia lenta, mas constante.

Em outro mundo, suas novelas chegavam a gerar quase 100% de audiência em seus últimos capítulos. O Jornal Nacional era a baliza da opinião brasileira. Hoje, a Globo briga com telespectadores que, se ainda expressivos, diminuem a cada ano; seu jornalismo é provavelmente menos respeitado que a vizinha fofoqueira do 701; e, pior, ela parece não saber para onde ir.

Olhando em retrospectiva, o início dessa decadência pode ter como marco inicial um momento qualquer em 1997, quando os sucessores de Roberto Marinho decidiram afastar o homem forte da TV por 20 anos, Boni, para consolidar o seu poder dentro da emissora. Defenestraram um homem de criação, responsável com Walter Clark pela consolidação da TV como a maior do país nos anos 70, e colocaram uma administradora. Foi um equívoco, e talvez se arrependam disso até hoje.

Mesmo que essa não seja a razão, o fato é que a Globo não soube lidar com um mundo em que novas tecnologias corroeram as bases sobre as quais o seu modelo de negócios se estruturou. Não foram apenas erros no processo de popularização de sua programação para se adequar a esses novos tempos. O problema é o seu apego a um modelo que o tempo superou.

É incrível, mas a Globo se sustenta sobre uma estrutura de grade criada há quase 50 anos. Programas infantis e femininos pela manhã, jornais e esporte ao meio dia, novela e filme à tarde. É um modelo criado para um país que já não existe, em que homens trabalhavam, mulheres cuidavam da casa e as crianças não tinham o que fazer à tarde, e à noite todos viam TV juntos enquanto jantavam e esperavam a hora de ir dormir.

É nesse horário, a faixa nobre, que o problema é mais grave. A grade é velha conhecida nossa: novela leve que crianças podem ver, jornal local, novela engraçada que todos podem ver, Jornal Nacional para estabelecer a pauta do país, novela para adultos; é aqui que a Globo ganha de verdade o leitinho das crianças.

A novela das oito é tão brasileira quanto o brigadeiro e a jabuticaba. Já foi referencial de tempo e condicionante social. Mas o século XXI não tem sido generoso com ela: ano após ano, sua audiência vem caindo. É um processo irreversível, e tem se acelerado em progressão geométrica nos últimos cinco anos. E a culpa não é apenas da qualidade cada vez mais baixa de suas tramas.

Quanto a esse aspecto, talvez secundário, a consolidação da TV por assinatura e a enchente de produções gringas disponíveis serviram para colocar algumas coisas em perspectiva. A revolução pela qual passou a TV americana nos últimos 20 anos, e que a faz gerar produtos de qualidade inquestionável como The Sopranos, Mad Men, Breaking Bad, Game of Thrones e muitos outros, põe em questão o tão decantado Padrão Globo de Qualidade.

Esse foi um dos mitos que sustentaram a hegemonia absoluta da Globo a partir do fim da TV Tupi, e dentro daquele ambiente insular era verdadeiro. É como aquela mulher que, em Marajá do Sena, achamos a mais linda do mundo, mas cuja beleza desaparece quando finalmente a TV chega e a gente vê que o mundo é um pouco variado. Hoje basta comparar as novelas da Globo com os seriados americanos para ver o abismo de qualidade que existe entre eles.

Claro que a insistência da Globo em suas novelas não é vaidade, nem apego de decadente quatrocentão a vestígios da glória passada. Elas são um produto incomparável. Uma novela custa em torno de 100 milhões de reais, mas tem potencial para faturar mais de 3 bilhões. Nem o tráfico de drogas é tão lucrativo.

Há apenas um detalhe: para dar esse lucro elas precisam dar audiência. Por enquanto, mesmo atraindo percentualmente muito menos telespectadores, elas ainda são uma aposta garantida para os anunciantes. O problema é que isso vai acabar mais cedo do que mesmo seus maiores críticos imaginavam. Hoje Malhação, num horário ingrato, gera quase tanta audiência quanto a novela das oito.

Para se adequar a um mundo novo, a Globo precisa primeiro entender que os tempos áureos passaram. É cada vez mais difícil conseguir o retorno financeiro que as novelas sempre deram. Por isso talvez seja a hora de repensar todo o horário nobre.

Seria preciso reimaginar o formato do jornalismo, adequar a um mundo em que a internet sempre chega primeiro. É preciso redefinir o que se diz, como se diz e quando se diz. Futebol é sempre uma aposta, e não custaria jogar o seu peso para pressionar a CBF para a definição de um calendário que lhe garantisse audiência regular. Shows também — por exemplo, um programa da Xuxa no estilo da Hebe nas noites de segunda-feira certamente garantiria mais audiência que a expectativa por um eventual beijo gay. Seria recomendável também tentar contemplar ao menos parte da diversidade cultural brasileira. E abrir um pouco mais de espaço à produção local, desde que com qualidade real.

Mas o mais importante seria repensar a sua dramaturgia.

Eu extinguiria a novela das 8 (ou das 9, como é chamada agora). As telenovelas fizeram muito sentido quando as pessoas só tinham uns poucos canais de TV como lazer doméstico, e a Globo não enfrentava concorrência real. A consolidação da TV por assinatura, o crescimento das outras redes e principalmente a chegada da internet tornaram o produto ultrapassado.

Seu modelo, com 150, 180 capítulos, funcionou graças à familiaridade do brasileiro com radionovelas e folhetins em revistas como a Cruzeiro, e ao fato de que a baixa oferta de entretenimento doméstico — fora as brigas dos vizinhos e a vida sexual da moça da casa em frente — oferecia as condições necessárias para que as pessoas acompanhassem seis, oito meses de uma série de tramas interligadas.

Isso cobrou um preço à qualidade, agora evidente. Tramas que duram 150 capítulos poderiam ser resolvidas em 20. Uma novela é uma coisa arrastada demais, com personagens demais, prolixa demais. Hoje é um mau produto.

Em vez de novelas, apostaria em um formato mais moderno: seriados e minisséries. Apenas como exemplo, poderia reviver seriados antigos que, modernizados, poderiam ter apelo popular: “Plantão de Polícia”, “Obrigado, Doutor”, até mesmo um novo “Carga Pesada”. Poderiam representar o tom certo de popularização, sem se tornar popularesco, algo que a Globo ainda não conseguiu.

Por mais que odeie a Globo — e não assista a ela há muitos, muitos anos, — ela faz parte da história do país. Tem um pedacinho lá no fundo que fica triste ao ver um referencial de vida ir desaparecendo assim, aos pouquinhos.

Um certo lamento feminino

O Hermenauta me manda um texto da Ruth Manus, publicado há algum tempo no Estadão, em que ela lamenta a triste sorte das mulheres hoje em dia, sonhando com um homem inexistente que descreva assim a mulher dos seus sonhos:

Ela tem que trabalhar e estudar muito, ter uma caixa de e-mails sempre lotada. Os pés devem ter calos e bolhas porque ela anda muito com sapatos de salto, pra lá e pra cá.

Ela deve ser independente e fazer o que ela bem entende com o próprio salário: comprar uma bolsa cara, doar para um projeto social, fazer uma viagem sozinha pelo leste europeu. Precisa dirigir bem e entender de imposto de renda.

Cozinhar? Não precisa! Tem um certo charme em errar até no arroz. Não precisa ser sarada, porque não dá tempo de fazer tudo o que ela faz e malhar.

Mas acima de tudo: ela tem que ser segura de si e não querer depender de mim, nem de ninguém.

A colunista olha em volta e não encontra esse homem. A culpa é, em última análise, da sociedade, esse ente indefinível que cria homens que fogem de mulheres independentes. Reclama que não ouviu esse discurso de nenhum homem. “Nem mesmo parte dele. Vai ver que é por isso que estou solteira aqui, na luta.”

Vamos desconsiderar o primeiro parágrafo que só serve para ambientar a situação, a besteira que é alguém sonhar com uma mulher assim. Como seria uma besteira uma mulher sonhar com um homem que trabalhe 16 horas por dia, que viva respondendo a emails ou telefonemas de trabalho extemporâneos e que tenha que fazer serão — com ou sem a secretária — dia sim, dia não. Se é para sonhar, vamos sonhar direito.

Vamos desconsiderar também o fato de que a última sentença parece indicar que tudo isso é apenas um grande e elaborado lamento por não ter um homem para chamar de seu. O fato é que eu poderia fazer esse discurso, se isso a confortasse. Casado algumas vezes, olho para trás e vejo que nenhuma de minhas mulheres se encaixa no perfil que ela acha que os homens querem. Cozinho melhor que elas; todas tiveram trajetória acadêmica melhor que a minha; a maior parte teve, sim, subordinados em algum momento da vida. Mas isso não é sobre elas, é sobre a inexistência de homens que admitam mulheres que não dependam deles. Talvez por isso, por comparar a minha própria trajetória com a da moça descrita no texto, fiquei me perguntando de que mundo fala a colunista.

Pistas vêm mais adiante. Ela fala da educação que recebeu, dos cursos, do incentivo entusiasmado dos pais para que ela desenvolvesse seu potencial e garantisse independência. Indica também uma mulher bem-sucedida. A combinação específica de salto alto e overload de e-mails (mais adiante ela menciona subordinados) indica uma mulher que certamente não é nem vendedora nem operadora de telemarketing.

O primeiro problema do texto está aí. Ela descreve o mundo quase idílico da classe média — a velha, não a nova. É o mundo daqueles cujos pais lhes possibilitaram (geralmente com pai e mãe trabalhando em tempo integral) acesso a oportunidades variadas em sua formação. Fala daquela parte abençoada da sociedade cujas necessidades básicas, e boa parte de suas aspirações, já são atendidas — justamente porque uma geração anterior de mulheres se sacrificou para garanti-las. O mundo sofisticado daqueles que, em vez de um feriadão na Praia do Forte ou até mesmo quatro noites em Paris pela CVC, almeja uma viagem para o Leste Europeu.

Talvez se ela olhasse para o mundo das comerciárias, das funcionárias públicas, das professoras, visse um mundo levemente diferente. E talvez ela aventasse a possibilidade que esse mundo de homens querendo dondocas dependentes e ignorantes aconteça apenas nas vidas dos super-ricos; nas dos mortais reles, coitados, isso é impossível.

Nesse mundo, as pessoas não apenas precisam trabalhar: elas esperam que as outras trabalhem, também. E nesse mundo, ao que parece a maior parte das mulheres não está preocupada com os problemas que parecem afligir a personagem do texto da Ruth Manus; ou porque já têm o seu merecido quinhão ou porque simplesmente têm mais o que fazer.

Claro que há homens como os que povoam os pesadelos da Ruth Manus. Há piores, na verdade. Esses bichos costumam vir em todos os tipos e cores. Há moços antigos assim e moços modernos, rapazes que querem filhos e rapazes que não os querem, senhores que se pudessem prenderiam a mulher em casa e senhores que dividem a mulher graciosamente com outros, cavalheiros que ajudam em casa e cavalheiros que se especializam na doce arte da gigolagem.

Mas há muito tempo o homem que se vê como provedor único da casa, senhor absoluto da família e da mulher mantida em rédeas curtas, deixou de ser a norma, ou mesmo parte significativa. Não porque eles quisessem ou deixassem de querer, que isso é irrelevante: mas porque a necessidade os obrigou.

A entrada em massa das mulheres no mercado de trabalho a partir da II Guerra alterou, aos poucos mas para sempre, as configurações familiares no mundo inteiro. E assim como a classe média passou a se condoer da situação das empregadas domésticas a partir do momento em que não precisou mais delas — ou, mais acuradamente, não pôde mais mantê-las —, a grande maioria das famílias passou a tomar como garantido o fato de que todos precisam trabalhar para garantir padrões de vida mais ou menos adequados às suas aspirações.

A colunista parece ver seus problemas como resultado do machismo inculcado nos homens desde sempre. Mas certamente não é nessa esfera que está o grande problema causado pelo machismo, pela maneira como a sociedade educou seus varões, e nem vamos falar aqui de outros ainda mais graves, como agressões, disparidades salariais, essas coisas. Aquele tipo de problema é mais facilmente visto nas famílias com filhos, em que normalmente a mulher acaba sobrecarregada. Mas não é disso que o artigo trata.

De vez em quando se vê por aí textos em que mulheres tentam fazer passar suas carências e preocupações idiossincráticas por feminismo, ou ao menos pelo diagnóstico de um problema universal feminino. Esse é um deles. Tenho a impressão de que se essa moça fizesse uma pesquisa rápida e procurasse ver com quem os homens que poderiam interessá-la estão (aqueles comprometidos e satisfeitos com isso, claro), teria uma surpresa desagradável. O mais provável é que os encontrasse com mulheres que incorporassem, ao menos em parte, os predicados descritos no início do texto.

Relações interpessoais são sempre complicadas. E os anos que passam me fazem desconfiar cada vez mais que grande parte desses problemas se devem a desencontros. Mas nesse caso específico, a Manus personifica as reclamações não de homens, mas das mulheres que acham que a vida lhes passou uma rasteira e não lhes deu de presente um conto de fadas moderno. Não parece haver muitos homens por aí lamentando que as mulheres se emanciparam e por isso eles estão solteiros, apesar do MBA em Harvard que ostentam no currículo, apenas porque não encontram mais amélias submissas como antigamente. E é isso que faz desse texto pouco mais que o lamento de uma moça bem sucedida de classe média reclamando que a educação primorosa que teve não lhe serviu para o que era mais importante: arranjar um marido.

João Barreto Neto

Vi agora a notícia da morte de João Barreto Neto, nestes tempos em que essas notícias ruins vêm pelo Facebook. E então bateu uma tristeza imensa, tristeza e aquela culpa difusa causada pela sensação de que você poderia ter dado um pouco mais de atenção àqueles que se foram.

Fazia alguns anos que não via Joãozinho. Da penúltima vez ele gritou meu nome no Calçadão da João Pessoa como quem acabou de avistar um fantasma — e tinha avistado mesmo. Confundira este Rafael, vaso ruim que a terra há de ter muito trabalho para engolir, com o Rafael Rodrigues, filho do Rômulo que tinha morrido pouco tempo antes em um acidente estúpido. Na época, maravilhado por poder fazer a crônica da minha própria morte, privilégio de poucos, escrevi sobre isso aqui.

Da última, em frente a um restaurante na Praça da Imprensa onde ele ia pegar sopa para dar aos assistidos pela Ação Social Santo Antônio, a herança que Barrinhos lhe deixou, eu vi um homem velho e cansado. Nem parecia aquele que me acompanhava aos cabarés da cidade, como o de Ciganinha — puteiro admirável porque parecia um terreiro de candomblé escondido no Santos Dumont, ainda melhor porque pertencia a uma cafetina que tinha perdido tudo por amor a um homem.

Ainda lembro das noites na varanda da casa de João com Yara, conversando coisas sérias e coisas bobas. Ou ainda uma noite em que, passando em frente à sua casa na rua Maruim, parei para conversar e encontrar um ombro amigo para chorar o fim de um namoro, xingar aquela desgraçada que não queria mais saber de mim — ou eu não queria mais saber dela, não lembro bem. Na verdade eu chorava pelo fim do namoro e pelo show de McCartney no Maracanã a que não iria assistir por não ter dinheiro. O que sei é que naquela noite uma garrafa de Natu Nobilis encontrou seu fim — porra, Joãozinho, se fosse sua mãe teria me servido um uísque melhor.

Ela era uma daquelas mulheres fortes, que inspiram respeito à primeira vista. Fosse umas décadas mais nova e eu uns anos mais velho, teria inspirado também uma daquelas paixões avassaladoras, imorais. O meu respeito era ainda maior porque eu sabia de coisas que pouca gente parecia saber. Sabia que Joãozinho era filho do tio, fruto de uma daquelas tragédias rodrigueanas que abalam as famílias, causam infelicidade para todos e resultam em mortes tristes; tragédias que se tenta esconder a todo custo, tentativa infrutífera sempre. 30, 40 anos depois tio Joffre me contava a história, que só conto agora porque, exatamente hoje, todos morreram. Foi tio Joffre quem me disse também que o pai real de Joãozinho conhecia o meu — real e oficial, deixe-me antes de mais nada esclarecer porque eu tenho cá minhas frescuras também.

O que ninguém sabe é que o pai dele foi um dos últimos, se não o último, taxista a levar meu pai a algum lugar, e num certo dia em que eu ia com tio Joffre para o seu sítio em Socorro ele desandou a falar do meu, como era inteligente, como bebia, como conhecia os piores botecos da cidade.

Saí do jornal e perdi o contato com Joãozinho. Mais tarde, olhando para trás, teria a impressão de que ele, gay, estava esperando apenas uma chance para me pegar. Meninos novos costumam ser alvos fáceis. No entanto, quando lembro da amizade tranquila e das longas conversas sobre jornalismo e sobre a história de Aracaju, fico pensando que não, que isso é maldade minha. Melhor assim.

E então eu não vou ao seu velório, Joãozinho. A maior homenagem que podemos fazer a um amigo é a lembrança. E eu, assim como tanta gente, lembro de você.

Ladeira da Montanha

A demolição de antigos casarões na Ladeira da Montanha, em Salvador, abalados pelas chuvas fortes que caíram recentemente, gerou revolta em muita gente. Aqui e ali pulularam — pululam ainda — protestos revoltados com o fato de o IPHAN ter autorizado, com rapidez que julgaram suspeita, a demolição dos prédios.

Basta uma olhada rápida para as casas demolidas para entender que não havia outra solução. Na foto ao lado é possível ver exatamente o que se perdeu: meras fachadas degradadas ao ponto da impossibilidade de recuperação, mantidas em pé apenas pela mão benevolente do Senhor do Bonfim. Mais grave, entretanto, é que não parecia haver nada ali que caracterizasse algum conjunto arquitetônico importante e necessário, nem que justificasse a repentina indignação de uma sociedade que evitava passar por aquela rua, principalmente à noite. Durante décadas, os prédios da Ladeira da Montanha cumpriram apenas o papel de oferecer sexo a preços módicos para trabalhadores de baixa renda; há anos, nem isso. O IPHAN agiu corretamente.

Digo isso com certa dor no coração. Muitos anos atrás, quando eu chegava a Salvador pela rodoviária, podia pegar dois ônibus para a casa de minha avó, em Nazaré. O R1 e o R2 faziam essencialmente o mesmo trajeto, mas em sentidos diferentes. O R1 era o mais rápido; mas eu preferia o R2, que primeiro passava pelo Comércio e pela Ladeira da Montanha. O caminho era mais longo, mas era mais bonito: eu, como qualquer baiano, sou cioso da parte que me cabe na herança cultural dos lupanares da cidade. Era melhor se fosse no cair da tarde: o pôr do sol visto da Ladeira da Montanha, entre as torres da Conceição da Praia, é um dos mais belos em uma cidade que os tem em demasia.

Em vez de carpir o enterro tardio dos cadáveres putrefatos de antigos bregas abandonados há eras, deveriam estar discutindo o destino que se vai dar àquela área. A Prefeitura ainda não se pronunciou sobre o futuro da Ladeira da Montanha, provavelmente porque foi pega de surpresa pela urgência de tomar uma atitude evitada por muitos anos. Acho que o lugar poderia se transformar num bom espaço de convivência, com apelo turístico e cultural. Daria um dos mais belos mirantes de Salvador, sem nenhuma dúvida. É um lugar adequado para uma grande praça com equipamentos de lazer, restaurantes e armadilhas para turistas. Podiam até fazer uns bares para que, com o passar do tempo, a Ladeira da Montanha voltasse a cumprir o papel social que cumpriu durante décadas: garantir um espaço razoavelmente seguro para o exercício da boa e mais antiga profissão do mundo. Turistas pagam em dólar.

Infelizmente o histórico da Prefeitura não é dos melhores e afeta as expectativas que possamos ter. Embora tenha realizado uma das mais importantes intervenções urbanas em Salvador dos últimos tempos, a transformação do trecho da avenida Sete de Setembro entre o Porto e o Farol da Barra em um grande calçadão de uso misto, o prefeito ACM Neto tem uma concepção de cidade ultrapassada e nociva: ele fala sem ruborizar em demolir casarões irrecuperáveis no Centro Histórico para transformá-los em estacionamentos, enquanto o mundo civilizado trabalha para banir automóveis dos centros das cidades. Não será ACM Neto o prefeito a transformar Salvador em uma cidade moderna, que tente harmonizar seu passado e seu futuro.

Isso é ainda mais triste porque Salvador tem uma cota alta demais de Alaricos urbanos. Mario Kertész, por exemplo, construiu no Paço Municipal aquela aberração estética que responde pelo nome de Palácio Tomé de Souza, ironicamente no local onde existiram a antiga Biblioteca e a Imprensa Oficial, demolidos por ACM (avô do atual prefeito) nos anos 70; os Magalhães gostam de derrubar coisas. Em defesa de Kertész apenas o fato de que aquele monstrengo deveria ser temporário; no entanto, aquela desgraça está lá há quase 30 anos.

Mas Salvador é uma cidade que pelas dimensões e variedade do seu patrimônio histórico ainda pode ter esperanças. E talvez a Paris do século XIX possa servir de exemplo para o que fazer.

Ao voltar do exílio em 1848, Napoleão III já trazia debaixo do braço o mapa dos futuros bulevares de Paris. Sua ideia era renovar completamente a cidade, construindo grandes avenidas que rasgassem a cidade de cima a baixo, recriando a estrutura urbana e adequando a capital aos novos tempos e tecnologias, eintegrando-a e expurgando os tantos e tantos cortiços que se espalhavam por uma cidade que tinha crescido assustadora e desordenadamente. Para isso ele nomeou o barão Haussmann chefe do departamento do Sena, uma espécie de super-prefeito de Paris.

A renovação de Paris no Segundo Império jamais seria igualada. A área da cidade subiu de 3500 para 8 mil hectares; mas acima de tudo, Haussmann transformou Paris numa cidade moderna, mais limpa, capaz de absorver o crescimento constante das décadas que se seguiriam.

É impossível saber o que se perdeu. Lugares históricos, lieus de mémoire, as provas materiais da Revolução de 1848; quase dois mil anos de camadas e camadas de evolução de uma cidade. A Paris que emergiu do Haussmanismo continha ainda muitos elementos da cidade antiga, mas era uma cidade diferente. É essa a Paris que conhecemos. Não parece ter se saído mal.

(A nota irônica em tudo isso é que os objetivos de Napoleão III não eram apenas modernizadores e sanitizadores. Com a nova ordenação urbana de Paris ele pretendia também facilitar a repressão às explosões sociais que aconteciam a três por quatro na cidade. Parisienses sempre tiveram uma queda por barricadas e paralelepípedos. Mas foram esses novos bulevares que cerca de 70 anos depois viram os panzers alemães deslizarem suavemente em sua tomada de Paris.)

Um dos problemas que o mimimi daqueles que protestam cegamente contra a demolição das ruínas da Ladeira Montanha acaba mostrando é que eles parecem não entender que a cidade é um organismo vivo, que precisa evoluir. Não deve fazer isso às custas cegas do seu passado e da sua história, e uma solução radical como a de Haussman não seria aplicável hoje. Mas não deve sobrevalorizar o que é só velho, e por isso um pouco desse espírito deveria ser levado em conta. A cidade às vezes tem que fazer escolhas. O grande problema é que simplesmente não é preciso fazer uma escolha difícil neste caso da Ladeira da Montanha.

Baianos têm orgulho do seu elevador Lacerda (enquanto, logo ali ao lado, deixam o belo Elevador do Taboão agonizar; só vão lembrar dele, pelo visto, quando finalmente desmoronar). Um anúncio antológico da Bahiatursa o descreve como parte da alma da cidade: “Cidade Baixa, Cidade Alta e um elevador no meio. Só podia ser coisa de baiano.” Vendo essa falsa polêmica sobre o “casario da Ladeira da Montanha”, fico pensando que, se esse pessoal que hoje se esvai em chororô ignorante e ludita estivesse vivo em 1930, Salvador não teria o elevador que conhecemos hoje; em vez disso teríamos o antigo, como projetado por Antonio de Lacerda no início dos anos 1870, porque a cidade não tem o direito de se erguer de suas próprias cinzas.

Lágrimas na chuva

Eu vi o CEP passar de 5 para 8 números.

Vi os telefones passarem de 7 para 8 números.

Vi câmeras de 35mm substituídas pelas digitais e estas começarem a desaparecer.

Vi os cinemas de rua desaparecendo um a um.

Vi o videocassete nascer para ser morto pelo DVD, e este pela internet.

Eu vi os orelhões de ficha darem lugar aos de cartão, e estou vendo estes morrendo.

Vi os cursos de datilografia florescerem, mas agora eles não existem mais.

Vi os jornais ganharem cor, e agora eles encaram seu fim.

Vi o vinil desaparecer ante o CD, e este superado pelo mp3.

Vi surgir o PC, para dar lugar ao notebook e então ao smartphone.

Eu vi as lâmpadas incandescentes substituídas pelas fluorescentes e estou vendo-as dar lugar às de LED.

Vi o celular surgir e passar de 7 para 8 números, e estou vendo passar para 9.

Eu vi surgir a TV em cores, e a TV por assinatura, e o YouTube e o Netflix destruindo-as aos poucos.

V i o fax nascer e morrer.

Vi as rádios FM surgirem, e vi a Noruega anunciar a sua morte.

Vi o bip dar lugar ao pager, e este dar lugar ao WhatsApp.

Eu vi coisas em que você não acreditaria. E todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva.

Roy Batty, você não sabe de nada, inocente.

Alsace-Lorraine

É uma de minhas imagens mentais favoritas, e torço para que tenha sido verdadeira: sempre imaginei Hitler subindo a Champs-Élysées com olhar impassível mas o coração acelerado, desdenhando das expressões de choro e medo dos franceses que o viam desfilar. Eu o imagino descendo do carro no fim do bulevar, atravessando a Étoile pela rua, por cima, mãos para trás como sempre andava, e parando diante dessa placa. Primeiro olhou em volta e viu os nomes dos soldados, imaginando se no meio daqueles tantos sobrenomes alemães não havia o antepassado de algum conhecido seu, de um marechal talvez. Pensou em como tinha sido fácil chegar ali e como nada mais poderia impedir a realização plena do seu destino. Deu mais uma olhada em direção à Concorde e se permitiu um sorriso discreto; seu coração se encheu de alegria e gratidão, e então olhou para essa placa por longos segundos, e murmurou baixinho, tão baixinho que Albert Speer não pôde ouvir: “Vielen Dank, Französisch.”

 

Pourquoi je suis Charlie

O que mais tem me impressionado nas reações de parte do pessoal que comenta nas redes sociais e nos meios de comunicação sobre a chacina da redação da Charlie Hebdo por fanáticos fundamentalistas islâmicos não é a má fé e a ignorância visíveis em boa parte delas. É, principalmente, a prontidão com que esta sociedade está disposta a relativizar e mesmo abdicar de um direito básico da civilização ocidental: o direito de expressão.

A ignorância presente nessas reações pôde ser vista quando milhares de pessoas que jamais ouviram falar antes da Charlie Hebdo tomaram posições imediatamente. Sem conhecer sua história, definiram por ouvir dizer que a Charlie era racista, etc., etc. Em um exemplo de um traço curioso da humanidade, amplificado pelo imediatismo das redes sociais, as pessoas parecem sentir que precisam tomar posições radicais e se pronunciar sobre qualquer coisa, mesmo que não tenham base nenhuma para isso.

Para isso tentam buscar as ferramentas que validem suas crenças. E é aí que está a má-fé: está, por exemplo, no destaque exclusivo das capas ofensivas ao Islã publicadas pela revista para fazê-la parecer anti-islâmica — ou, quando muito, de capas que ofendam outros valores caros a você ou ao seu grupo. Descartam então as capas que satirizaram e muitas vezes ofenderam Sarkozy, Hollande, judeus e cristãos, e assim têm a prova cabal de que sim, aqueles racistas miseráveis mereceram — se não a chacina, ao menos a reação indignada dos assassinos que se dizem inspirados no Islã, mais ou menos como certo pessoal relativiza a culpa do estupro dizendo que a moça não deveria usar aquele decote tão perdulário. “Ah, ele não respeita o Profeta. Vamos matar os cães infiéis!” Pessoalmente, não vejo muita diferença disso para “Ah, ele não respeita Lula. Vamos matá-lo!”

Chegaram a divulgar uma charge retratando a ministra francesa Christiane Taubira como uma macaca como prova do racismo da Charlie. A charge, na verdade, foi feita pela Minute, publicação de extrema-direita francesa. As pessoas que falsificaram a informação ou divulgaram-na, no entanto, não estão preocupadas com isso: precisam apenas de evidências, verdadeiras ou não, que embasem suas posições equivocadas.

Frei Leonardo Boff publicou dois artigos sobre o assunto. O primeiro foi repleto de platitudes como “não apoio a chacina” e “não vamos culpar todos os muçulmanos”; platitudes porque nenhum ser humano decente apoiou a chacina, e porque a condenação dos assassinos e a separação entre muçulmanos e terroristas foi feita por todos os líderes mundiais, principalmente pelas lideranças islâmicas. Rupert Murdoch foi contra a corrente, é verdade; mas Murdoch não conta porque é escória.

O segundo, em que republicou um artigo primeiro atribuído ao padre Antonio Piber, e posteriormente ao jornalista Rafo Saldanha, é diferente.

Num texto canalha, que acusa a Charlie de perseguir muçulmanos sem explicar o contexto em que o confronto se acirrou (em 2006 a revista republicou as charges do jornal Jyllands-Posten ridicularizando Maomé [charges que este blog republicou na época], como uma atitude de solidariedade e defesa do direito de expressão diante das ameaças que o jornal dinamarquês sofreu por causa delas; por isso passou a também receber ameaças que chegaram a um atentado em 2011 e culminaram na chacina da semana passada), ele classifica as charges do Charlie como “criminosas”. O adjetivo não é inesperado de um representante da velha e boa Igreja Católica Apostólica Romana: a tradição nos lembra que qualquer coisa desabonadora que se diga sobre ela é considerada criminosa.

Ele diz ainda que a Charlie Hebdo é covarde; o atentado de 2011 e a chacina da semana passada deveriam servir para que ele entendesse que, certos ou não, o que não faltou aos cartunistas da revista foi coragem. Se não bastam, o ataque ao Hamburger Morgenpost e principalmente os massacres hediondos que o Boko Haram vem conduzindo na Nigéria, e que só este ano mataram mais de 2 mil pessoas, deveriam ao menos explicar que muçulmanos são, sim, minoria na Europa, mas o alcance daquela minoria de fanáticos que se dizem inspirados por eles pode ser gigantesco. Enfrentá-los é indício de coragem, acima de tudo. Coragem que não tiveram, por exemplo, os meios de comunicação que borraram as capas da Charlie em suas reportagens sobre a chacina.

É triste que um homem que foi calado pela Igreja Católica hoje se resigne a amplificar seu ideário reacionário disfarçado de respeito ao diverso.

O trecho que mais incomoda, no entanto, e que é o que tem a ver com este post, é esse:

“O próprio Charb falou: “É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo”. “É preciso” porque? Para que?”

Essa eu posso responder, e nem preciso mencionar os problemas que, além da lógica e da decência, o sujeito tem com a ortografia: porque quando o cristianismo não era banalizado destruiu cietualmente todas as culturas ocidentais. Porque perseguiu, calou e assassinou milhões de pessoas, de Justiniano massacrando 30 mil pessoas no Hipódromo e fechando a Academia de Platão, passando pelos pogroms russos e pelo Holocausto, pelo massacre de Sabra e Chatila e chegando às explosões periódicas de clínicas de aborto nos EUA — sem esquecer, claro, de São Tomás de Torquemada e sua Santa Inquisição. É preciso porque, em nome de sua fé, o cristianismo extinguiu civilizações inteiras no Novo Mundo e persegue, até hoje, os adeptos das religiões africanas e brasileiras.

Charb disse, uma vez, que o Islã não era sagrado para ele, que ele não lhe devia respeito. Ele estava certo. Então vamos todos acabar com as nossas imagens de Deus barbudinho na nuvem porque o judaísmo não permite representações do Bambambam? Não podemos dizer que Jesus é filho do Boto porque os cristãos se ofenderão? Se Maomé, Jesus ou Jeová são sagrados para eles, ótimo: eles que respeitem e estabeleçam as regras rígidas que quiserem para os seus fiéis. Mas não se pode exigir que os outros sigam os mesmos padrões.

Paradoxalmente, em um mundo cada vez mais multicultural, é apenas o direito à irreverência em relação às outras religiões que garante o direito ao exercício da sua. O contrário é o totalitarismo que vimos durante o auge do domínio católico e vemos hoje no mundo islâmico.

Por isso, uma das maiores conquistas das sociedades ocidentais foi garantir o direito de expressão. O direito a falar o que você pensa, sem medo de ser morto por isso. Esse direito dá a você a responsabilidade pelo que fala, e só a você. À sociedade, reserva os mecanismos sociais para tornar o seu discurso irrelevante. (O Sergio Leo deu o link para um artigo instigante de David Brooks no New York Times sobre o tema: “I am not Charlie Hebdo”.)

É o exercício desse direito que possibilita, por exemplo, que neo-nazistas saiam hoje em passeatas pelas ruas. Sempre conhecemos a ideologia nazista, e pelo menos há 70 anos já sabemos do que são capazes. Cabe à sociedade combater suas ideias: mas não é calando-os que vamos conseguir isso. É justamente permitir que eles marchem com suas suásticas ridículas e suas ideias canalhas que nos faz melhores que eles.

Acima de tudo, e essa é a verdadeira questão, é muito fácil defender o direito de expressão daqueles que não incomodam, daqueles que só expressam aquilo que já ouvi chamar de “as ideias certas”. Isso não é defesa de um direito, é a defesa pura e simples de um interesse individual: é aquilo que você mesmo defenderia. Não há nenhum mérito nisso. Você defende a si mesmo.

É muito fácil, por exemplo, defender a liberdade de expressão usando uma tirinha mediocremente chata como aquela do Armandinho. Bons sentimentos não são alvo de pressão, não são vítimas de censura. Todo mundo gosta do bonitinho ou do conformista. Ninguém censurou, por exemplo, os elogios à ditadura militar brasileira ou ao regime de Pinochet. No mundo desses fundamentalistas fanáticos, ninguém mata alguém por dizer Allāhu Akbar.

Difícil é defender o direito do outro falar aquilo que nos desagrada. Como disse um biógrafo de Voltaire, numa frase erroneamente atribuída ao seu biografado, “estou em desacordo com cada uma de suas palavras, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-las”. Esse é o verdadeiro desafio.

É bizarra a ideia de que alguém admita viver em um mundo em que há temas em que não pode falar — não porque não ache que deva, mas porque não permitem. É por isso que o verdadeiro desafio sempre esteve em garantir à Charlie o direito de fazer humor como quer. Agressivo, sim. Ofensivo, se necessário. É nisso que consiste o direito de expressão, e em mais nada. E é triste ver que parte da sociedade brasileira falhou diante desse desafio.

Normalmente eu não diria que sou Charlie. Porque não vejo graça em muitas de suas piadas — para mim pecado maior que a eventual ofensa — e, sim, considero algumas delas ofensivas e desnecessárias para o meu gosto. Mas hoje ser Charlie quer dizer, acima de tudo, respeitar e defender o seu direito de publicá-las. Diz respeito a tomar uma posição clara em relação ao direito de expressão, reafirmá-lo como um direito universal inalienável. Hoje, relativizar a morte dos cartunistas da Charlie, culpá-los pelo seu destino, é dar alguma razão àqueles que os mataram, é dizer sim a esse tipo de violência.

E por isso eu sou, sim, Charlie.