Ramon

Sábado, dois de dezembro de 2006. Um sujeito se aproxima de mim, no Porto da Barra, e me pede um cigarro. Aquele que estou fumando é o último do último maço, e ele então pede um a minha mãe, ao meu lado.

Ele tem o cabelo pintado de louro, mas a água oxigenada foi passada já há algum tempo, e o louro está ficando escuro, quase ruivo. É um sujeito esquisito, os dentes em péssimo estado, e parece ter bebido e fumado tudo o que podia durante a longa noite de sexta-feira, e talvez um pouco mais. Não parece ter 20 anos, mas aparências enganam, quase sempre.

Ela olha para mim, já esquecida do que é ser baiana, e eu digo para dar o cigarro. Não se nega um cigarro, nem mesmo a um sujeito esquisito como aquele, nem mesmo a gente que parece estar sempre pedindo. Devemos todos seguir um código de ética rígido e cavalheiresco, e colaborar com os enfisemas uns dos outros.

— Valeu, coroa.

Ele acabou de fazer uma inimiga, pela insolência. Mas não liga, talvez nem perceba isso, e desaparece em meio à multidão que começa a se formar na praia.

Depois de um hippie que passou alguns bons minutos sentado diante de nós tentando nos vender uma mandala de arame, contando estar em Salvador apenas o tempo suficiente para conseguir dinheiro para voltar a Morro de São Paulo — mandala que, pela graça e suavidade com que o hippie conta suas histórias, até merecia ser comprada –, o sujeito do cabelo oxigenado e dos dentes estragados volta.

— Bróder, me arranje outro cigarro, a segunda.

— Porra, meu irmão, de novo?

— Que é isso, rei, você é bróder… É o último.

Eu acabo dando; tanta cara de pau merece ser premiada.

— Você mora aqui no Porto?

E assim, na sua mente ainda turva, toda e qualquer dúvida sobre eu ser um turista como a lourinha muito branca que desde ontem está numa cadeira ao lado com o filho que ainda mama, mas que hoje traz umas tranças mal-feitas provavelmente feitas no Pelourinho (se ela me perguntasse eu poderia recomendar uma moça, a Isabel, que faz tranças e tererês muito melhores, mas é lá no Alto do Coqueirinho) se esvanece. Por causa de um cigarro, porque.

Curioso é que na Bahia as pessoas não costumam ser tão tolas; já me perguntaram no Rio se eu falava português, e eu não tenho absolutamente nenhuma, nenhuma cara de gringo. Na cidade da Bahia elas simplesmente sabem, assim como os taxistas baianos no aeroporto nunca me perguntam se quero um táxi quando saio para fumar, ao contrário do que acontece no Galeão. Mas o sujeito parece que bebeu e fumou e cheirou o que podia, é o que eu acho, e então ele tem perdão.

É esse um segredo do baiano, tentar aplicar descaradamente em alguém para ver se cola; o outro segredo é o de simplesmente reclamar, tá achando que eu sou trouxa?; é como um código. Um turista se assustaria, ou simplesmente diria que não tem; o baiano tem menos paciência e reclama do descaramento, um descaramento que também costuma ser seu. Deixa ele achar que eu também sou baiano.

— Não, mais pra lá — e aponto para o norte.

— No Farol?

— Não, mais pra lá.

— Rio Vermelho?

— Não, mais pra lá — penso em parar a brincadeira em Lauro de Freitas, é longe o suficiente, mas ele não pergunta mais:

— Mas já morou aqui?

— Fui criado neste canto da praia.

— Massa, bróder.

Sorriso protocolar como resposta.

— Meu nome é Ramon. E o seu?

— Rafael.

— Valeu mesmo, rei. Qualquer coisa eu tô sempre por aqui. Precisando…

— Valeu.

E então ele vai aproveitar a sua praia enquanto o sol brilha, que hoje é sábado e só Deus sabe o que a noite fará dele. Mas não sei quem precisa mais de quem; pelo menos de cigarros eu sei que é ele.

Dali a pouco Ramon está brincando de bola com uns meninos por ali, provavelmente conhecidos naquele mesmo instante. Se faz amigos com muita facilidade no Porto da Barra. E o mais engraçado é que ele brinca como criança, talvez ainda mais desajeitado que elas, e suas pernas estão sempre apontando caminhos diferentes. Eu tiro algumas fotos. Fico com o sujeito na cabeça. Ramon é o baiano típico, mas é também atípico, e é isso o que me intriga nele. Ao mesmo tempo, sei que é por causa de pessoas como ele que aquele pessoal que ainda mora na Barra, inconformado com a decadência estrondosa e inevitável do bairro que há trinta anos parecia o Leblon mas hoje mal chega a Copacabana, evita ir para a melhor praia do mundo bem à sua frente para se enfiar nos confins de Guarajuba ou ainda além. A Barra é uma praia para ser freqüentada apenas durante os dias de semana, se você tem boa vontade.

Mas isso não é da minha conta. O Ramon pode não saber, mas eu sou turista. E tenho mais em que pensar. Nesse exato momento, minha filha está mergulhando do quebra-mar do Porto da Barra, como eu mergulhava quando tinha exatamente a sua idade, e eu tenho que tirar fotos. Penso apenas que o pobre do Simba não tinha máquina fotográfica na Pedra do Rei, e eu tenho mais sorte; e talvez também porque em vez de Scar eu tenho o Ramon por perto.

Republicado em 19 de julho de 2010

Por que estou orgulhoso hoje

Poucas vezes fiquei tão orgulhoso de um comentário deixado neste blog.

O Neil Ferreira é um dos meus ídolos. É, na minha opinião, talvez o maior redator publicitário que este país já viu. O Neil criou campanhas memoráveis, daquelas que as pessoas ainda lembram, mesmo sem saber que foi ele. O baixinho da Kaiser, por exemplo. Ler um anúncio seu é uma aula para qualquer redator, mas é principalmente uma prova de que uma atividade primária como é a propaganda pode dar ao mundo textos de altíssima qualidade.

Por tudo isso, eu tinha escrito, há algum tempo, que sentia falta de uma “Síndrome de Neil Ferreira” na publicidade atual (ia escrever moderna, mas podia parecer deboche). Falta de redatores que tenham prazer em escrever e gostem de um texto leve, sedutor, convincente; que traduzam com talento e graça um bom raciocínio de marketing. Que criem grandes campanhas, e não apenas anunciozinhos bonitinhos, quando muito. Eu sinto falta de campanhas brilhantes e, principalmente, memoráveis. O que provavelmente quer dizer que sinto falta de redatores que tenham orgulho em saber que a peça que criou está sendo elogiada por gente que ele não conhece.

Semana passada o Neil Ferreira deixou um comentário no blog que transcrevo aqui:

Um amigo leu seu comentário a meu respeito e deu seu endereço. Agradeço. Gosto de ler e de escrever quando tenho o que dizer. Sou fascinado pelas palavras. Sou um feliz free lance que conquistou o direito de escolher os clientes. Não trabalho com quem não sinta prazer de trabalhar comigo. Trabalho é como uma refeição, precisa ter “sustença”, mas precisa também dar prazer a quem o faz e a quem paga por ele. Assim está quase garantido o prazer do público alvo. Pelo que tenho visto na tv, não acho que os publicitários sintam-se felizes com o que estão fazendo. Não quero estar na pele de quem escreveu “Beba Fanta e fique bamboosha”. Nem de quem escreveu “Kuat sem nhé nhé nhé”. Mas como estamos no país que deu 60% de votos para o lulla, talvez eles estejam certos e eu errado. Sinceramente, neil ferreira

É bom saber que um ídolo seu leu o que você escreveu. E fico ainda mais orgulhoso por uma coincidência. Já faz algum tempo que penso em escrever um post sobre essas campanhas de refrigerantes — bamboocha, schrubbles, nhé nhé. São de uma estupidez alarmante. Escritos (ou traduzidos) por gente que não pensa. Eu não tomo mais Fanta porque tenho medo de ficar como eles dizem: bembrocha. São uma prova de que o mercado publicitário passa por uma fase de decadência horrorosa — uma fase que, aoi que tudo indica, está longe de passar.

E nessas horas eu viro tiete, mesmo. Fico até com vergonha de dizer que eu fui um dos 60% de brasileiros que votaram em Lula, e que devo ter ajudado a conseguir alguns milhares de votos em Sergipe para o sujeito.

Agora é esperar o Paul McCartney deixar um comentário aqui, e então eu fecho o blog, porque não haverá mais para onde ir.

Uma pessoa, um hospital e outra pessoa

E assim foi que acabei indo parar na urgência do hospital no domingo à noite.

No consultório, depois de confirmar o meu diagnóstico, o médico dá umas orientações gerais. Diz para eu reduzir o peso, mudar a dieta, fazer exercício, reduzir o stress. E aí já é pedir demais. Eu posso refazer tudo na minha vida. Posso perder peso e posso passar a fazer exercício, desses que se faz em academia. Mas stress, não. Não depende de mim. E a essa altura, eu já aprendi que sem stress eu não existo. Sem stress eu fico baiano. Aviso a ele que isso não será possível, que troco dois exercícios por um stress. Ele não discute, sabe que não vai adiantar. Insiste nos outros pontos, e eu concordo. Promessas feitas quando você está morrendo de dor não valem nada, mesmo.

Mas eu não penso nisso na hora. Minha cabeça está ocupada com outra coisa. Pela primeira vez na vida, eu vou tomar soro.

Em quase quatro décadas de vida, eu nunca tinha tomado soro. A não ser para acompanhar alguém, nunca tinha dormido em hospital. As vezes em que fui para um, tudo se resolvia com alguma costura, uma puxada nos ossos quebrados, receita de anti-histamínicos quando tive dengue.

Mas soro, não. Nunca.

Soro, na lembrança de infância que insistiu em permanecer neste velho, é como se fosse a condecoração por uma batalha vencida com muito sacrifício. É um evento especial. Alguém, pela minha lógica infantil, deveria estar muito doente para tomar soro. Soro seria um acontecimento raro na vida de uma pessoa, um momento especial, quase épico.

Por isso chego na enfermaria alegre, quase leve. Vejo as camas vazias e pergunto se todo mundo que estava ali já morr — eu tenho que interromper porque na cama à direita da entrada está uma senhora deitada com cara de aimeudeus; uma senhora mais velha se senta à sua cabeceira. Vai que ela está para morrer, mesmo; eu jamais me perdoaria por essa gafe. Eu posso ser um puto, mas respeito futuros defuntos.

Uma cama é separada de todas as outras por divisórias, e não por biombos retráteis. É para lá que me encaminho, feliz, enquanto pergunto à enfermeira se posso deitar nela.

Ela hesita:

— Olha, aquela cama é para os pacientes que precisam ficar em isolamento…

Dou meia-volta imediatamente.

— É, vou ficar por aqui, mesmo.

Deito na cama e espero. Ela não é exatamente confortável. Peço um travesseiro à enfermeira. Faço o meu melhor sorriso — aquele que diz “olha como eu sou bonzinho e eu quero uma coisa e sei que você vai fazer para mim porque se sentiria muito mal me se me decepcionasse”. Sempre dá certo.

— A gente não tem travesseiro na enfermaria…

Quase sempre.

— Mas posso te conseguir um cobertor.

Certo, vamos declarar isso um empate.

Ela traz o cobertor e me ajuda a tirar o plástico. Eu estou tão contente que esqueço mesmo de fazer o que sempre faço em clínicas e hospitais: olhar os peitos da enfermeira para avaliar o material. Enfermeiras são sexies. Elas cuidam da gente. Enfermeiras são o contrário de policiais; aquelas seduzem pela autoridade que representam; estas, por uma delicadeza presumida — que, para ser sincero, eu raramente vejo em enfermeiras cansadas do seu plantão. (Esse julgamento sobre autoridade vale para policiais militares, apenas. Guardas municipais não são sexies. Elas usam cacetetes. Podem ter idéias esquisitas. PMs são mais confiáveis.)

Depois que meu corpo é massacrado por agulhas, às quais resisto com o sorriso beatífico de quem vai tomar soro pela primeira vez na vida, a enfermeira finalmente injeta o tubo na minha mão.

Pronto. Ali estou eu, deitado na cama de hospital, tendo um cobertor por travesseiro, olhando para a embalagem de soro pendurada ao meu lado. É quando lembro que um momento histórico como esse deve ser imortalizado em foto. Peço para pegarem a máquina, mas então lembro que deixei a mochila em casa. Vou ter que me virar com o celular.

A moça que foi comigo tira algumas fotos minhas deitado na cama, mas não é suficiente. Eu quero os detalhes. E ali fico eu, me contorcendo para pegar um ângulo decente. O soro. A agulha envolta por esparadrapo. É disso que vou lembrar.

Imagino que a senhora da cama próxima — aquela da cara de aimeudeus — não se sinta à vontade com essa alegria intra-hospitalar.

Um sujeito entra na enfermaria. Deve ter por volta dos 30 anos. Anda rápido, sua muito, ofega, traz um braço dobrado nas costas. Imagino que tenha quebrado o braço, por isso a posição estranha. Volto a olhar para a senhora ao meu lado. Um homem que provavelmente é seu marido está sentado ao pé da cama agora, de cabeça baixa. Pela posição dele eu julgaria que a mulher está mesmo batendo as botas, mas agora ela está sentada, e a cara agora é de ex-sofredora. Melhor assim.

Uma amiga cirurgiã entra na enfermaria. Me vê e se surpreende. Imagino que ela pense que estou tomando glicose, então vou logo avisando o que é. Apertamos as mãos; em outra situação eu daria o beijinho de praxe, mas ali não parece ser um ambiente adequado para isso. Aperto de mão. Prefiro nem elogiar o seu novo corte de cabelo. Não parece adequado, não ali. Ela checa o soro e o remédio que está dentro dele, está tudo bem.

O rapaz que passou pouco enfermaria adentro sai e vai para o quarto de isolamento. O mesmo braço dobrado atrás das costas, o mesmo suor abundante, o mesmo ofegar.

Mas agora ele grita de dor.

São gritos fortes — mas contidos, sufocados, guturais. Assustam mais que gritos normais porque são o contrário do exagero. São o sintoma de muita dor que ele tenta, em vão controlar.

Ele também se debate. Da tapas na parede, ou na cama. Eu não sei, porque não olho. Apenas ouço, e não consigo evitar. O soro está acabando e eu já estou sentado na cama. A moça que está comigo olha para o quarto onde o homem de 30 anos se contorce e grita e se debate de dor, e comenta baixinho: “Deve ser cálculo renal…”

Eu não tenho coragem de olhar. Não quero saber. Espero impaciente a enfermeira. Ela demora e digo que vou tirar o soro sozinho, se não vierem logo. Eu quero ir embora dali, só isso. Não tem mais graça.

Uma enfermeira vem e tira a agulha. Eu saio andando rápido — tão rápido que esqueço a chave do carro na cama. A enfermeira me avisa e me entrega. É bom que ela tenha visto, porque se eu notasse lá fora eu não voltaria para pegar, pediria a alguém, até iria andando para casa.

Quando eu encontrar a minha amiga eu vou perguntar como ela agüenta aquilo. Não me refiro a cirurgias, ou a ossos quebrados, ou a cortes que precisam ser suturados. Me refiro aos gritos de dor abafados e aos tapas na cama. Mas não não sei por quê, eu já sei a resposta: “A gente se acostuma.” Talvez.

Na sala de espera onde vou pegar a minha carteira do plano de saúde a mulher do homem lá dentro gritando de dor está sentada, esperando. Traz a filha sobre suas pernas, ela deve estar aprendendo a ficar em pé. A mulher do homem lá dentro gritando de dor fala, entre irritada e preocupada: “Ele sabe que não pode fumar…” A moça que está comigo brinca rapidinho com a menina, e ela sorri, um sorriso bonito de bebê, alheio a tudo, que não sabe que o seu pai está lá dentro, gritando de dor.

Hello, goodbye

E assim acaba mais uma sessão de republicações.

Infelizmente, porque é nesses momentos que o blog fica com uma média de qualidade altíssima.

Ainda não descansei o que mereço, mas o fato é que acabaram-se os posts bons, então eu tenho que voltar à labuta diária.

Segunda-feira este blog está de volta. E nada como uma sexta-feira 13 para fazer esse anúncio.

Um ditadorzinho de alguma república

Eu não liberei o comentário abaixo porque não gosto muito de quem não assina seu nome; tudo o que sei é que quem fez esse comentário trabalha no governo do Paraná e usa o dinheiro do povo para deixar comentários bobos no meu blog:

IP Address: 200.189.112.59
Name: Menos Galvão…
Email Address: menos@ig.com.br
Comment: Vc têm todos os pré-requisitos para se tornar um ditadorzinho de alguma republica.

Mas, Deus do céu, como fiquei orgulhoso.

Eu vou falar a verdade. Eu adoraria ser um ditador, zinho ou zão, de alguma república, zinha ou zona.

Qualquer república.

Naquelas horas de vigília, quando abri os olhos mas ainda não acordei, quando a mente vaga por um território só dela, quando não sou ainda responsável pelos meus pensamentos, naqueles momentos antes de fumar o primeiro cigarro do dia, eu fico pensando nisso.

É melhor que sonhar que se está voando, melhor que sonhar com a Zeta Jones, melhor até que estar batendo naquele desgraçado que lhe deu um soco na terceira série e a professora lhe impediu de revidar.

Se eu fosse ditadorzinho de uma pequena república eu não usaria uniforme militar, porque sou mais bonito e mais fofo que Fidel Castro. Em vez disso usaria todos aqueles ternos Armani e Zegna que não pude comprar — mas sem gravata, porque não gosto de nada no meu pescoço e a sombra da forca, brandida como ameaça por revoltosos e invejosos que se amontoariam nas ruas batendo panelas e erguendo cartazes dizendo “Menos Galvão, mais comida!”, estaria sempre presente.

Se eu fosse ditador não sei quantos carros teria, porque não me interesso por isso, mas saberia que haveria sempre um motorista à disposição, que me serviria com uma mistura de admiração, inveja e medo por saber que, em caso de qualquer indiscrição, a única coisa democrática na minha ditadura seria o paredão.

Se eu fosse ditador, e tivesse um país aos meus pés, eu casaria com uma vagabunda sem classe mas ambiciosa, desbocada mas com bom remelexo, tirada do puteiro mais baixo, porque sempre gostei de cachorras e não deixaria a fama, a fortuna e o poder mudarem tão bela característica. E apresentaria minha escolhida à sociedade como uma afronta a que me permitiria por ser um ditador e como um exemplo de ascensão social, e me manteria olimpicamente indiferente enquanto os leitores ávidos de revistas de fofocas se deleitassem com os pequenos e grandes escândalos conjugais, com as orgias reais e imaginárias no palácio do governo, encontrando ali justificativa para suas próprias vidas vazias, tão vazias quanto seus bolsos, tão vazias quanto os gritos de “Menos Galvão, mais decência!”.

Seria essa puta que eu vestiria com Chanel, e ordenaria aos meus ministros que chamassem a própria Coco para fazer os vestidos — e ninguém pode imaginar o descaso com que eu ouviria algum mais corajoso dizer que isso era impossível, que a velhota havia morrido há muito, muito tempo, e enquanto nos corredores do Palácio os cochichos fariam alusão à minha ignorância crassa eu riria em segredo, porque eles não teriam entendido nada, não teriam entendido que há apenas um tipo de poder que permite isso, e é exatamente aquele tomado por um ditadorzinho de alguma república.

Se eu fosse ditador de alguma república acordaria todas as tardes com o mordomo me trazendo o café da manhã e os jornais do dia, entre os quais aquele de oposição que eu deixaria circular para dar uma impressão de democracia, mas deixando claro ao editor que ele deveria saber seus limites porque a oposição existiria apenas para dar um verniz de legitimidade ao meu governo.

Mas na minha ditadura não haveria mortes, pelo menos não mais que as estritamente necessárias, porque ainda que ditador eu continuaria baiano, e daria ao povo pão e circo, e eventualmente até consentiria em ouvir, da sacada do meu palácio, os poucos descontentes com coragem suficiente para pedir incentivos à cultura e carregar cartazes de “Menos Galvão, mais empregos!”, e faria isso com um sorriso paternal e a mesma atenção dada aos afghan hounds que decorariam o meu palácio.

Se eu fosse ditadorzinho de alguma república, qualquer república, eu jamais me disfarçaria de pobre para circular pela cidade e ouvir o que o povo dizia de mim, porque eu não estaria interessado em proletários mal-cheirosos e uma das prerrogativas de um ditador é ser poupado de opiniões desagradáveis. Em vez disso colocaria minha beca domingueira — porque embora ditador eu faria questão de lembrar que um dia fui pobre, e usaria essa história para ludibriar uns quatro ou cinco bestas — e iria para longas viagens por Paris, onde poderia me embebedar com putas senegalesas e russas, e dar presentes caros a elas pela simples razão de poder dar, sem que isso fosse motivo para os pobres opositores se revoltarem ainda mais, exatamente aqueles que levantariam o mais alto possível cartazes dizendo “Menos Galvão, mais Deus em nossas vidas”, como se na minha república Deus e Galvão não fossem a mesma coisa.

Quem quer que tenha deixado esse comentário está certo: eu seria um excelente ditadorzinho de alguma república.

Acontece que república talvez seja muito pouco, e como Júlio César eu conspiraria para criar o Império, e seria nomeado Defensor Perpétuo do meu modesto país. Porque ainda que me sinta à vontade no papel de ditadorzinho, eu gostaria também de ser rei, e usaria coroa como revolucionários usam boinas com botões do Che Guevara, e nas solenidades oficiais — que seriam muitas durante o meu reinado — eu usaria um manto de arminho como símbolo do meu poder.

Ah, mas divago, divago…

Originalmente publicado em 05 de maio de 2005

Livros ou o mal que fazem às minhas costas

Meus livros ficaram encaixotados desde que vim do Rio, ano e meio. Chegaram em novembro e só agora arranjei coragem para arrumar os coitados.

Não vou falar do trabalho miserável que é tirar livros de caixas, colocá-los na mesa, limpar e arrumar cada um deles. Ninguém merece isso. Minhas costas já sofreram o bastante para eu precisar descontar em cima de alguém. Prefiro colocar uma foto ao lado: ali está a primeira leva, as primeiras duas caixas. Havia mais algumas me esperando.

Eu tenho cá meu sistema de organização. Simples ao extremo, que eu não sou bibliotecário e Dewey para mim era apenas um promotor que queria ser presidente. Mas é eficiente.

São, basicamente, alguns níveis de divisão. O primeiro é simples: ficção e não-ficção. Tenho notado que o tempo age implacavelmente sobre mim; se há dez anos eu lia preferencialmente ficção, hoje em dia leio cada vez mais não-ficção. Os interesses mudam com o tempo.

Ficção eu separo, em primeiro lugar, por país. Literatura brasileira, americana, inglesa, russa, etc. Cada uma dessas é subdividida em autores, em ordem cronológica. Primeiro os autores mais antigos. E os livros de cada autor, por sua vez, estão classificados também em ordem cronológica. Não faço distinção entre prosa e poesia. Não me parece apropriado classificar poesia como ficção, mas tampouco é não-ficção. Fica ali, mesmo, e a minha Marianne Moore, paixão de muito tempo, se espreme entre um livro de contos do Edmund Wilson e um livro quase bom do Malamud. Além disso, eles são muito poucos. Como são muito poucos os livros de ficção latino-americana. Atrás de todos eles está o meu livrinho de 1500 dólares (comprado por 1), Quiet Days in Clichy, meu grande orgulho de comprador de livros.

Há uma última divisão: literatura policial. Mas segue os mesmos padrões, com uma diferença: primeiro vem Hammett, depois Chandler, depois MacDonald, minhas três grandes preferências. James Cain. Chester Himes. Walter Mosley, o último autor a me empolgar. E então vem o resto. Jim Thompson, de quem já gostei mais, tem lá o seu lugar. Mas os poucos livros de Agatha Christie, comprados há 20 anos, continuarão escondidos em uma caixa, como tem acontecido nos últimos 10 ou 15 anos. Eu tenho vergonha de ser visto com a velha dama indigna.

Os livros de Evelyn Waugh se espremem entre um Joyce e um Greene — estão em boa companhia. O que me espanta, aqui, é o número de livros ruins. “Os Versículos Satânicos” está lá, em literatura inglesa; mas é em literatura americana que está o maior número de lixo. Eu quase não acredito que tenha três romances de John Updike e um de Gore Vidal, dois romancistas abaixo do aceitável (em compensação tenho dois belos livros de ensaios de Vidal e a autobiografia e uma coletânea de resenhas de Updike. Updike não chega aos pés de Richard Ellman como crítico, mas seu texto é melhor).

A parte de não-ficção é mais interessante.

As subdivisões são poucas, e como foram os primeiros a ser arrumados, na prateleira mais alta, ainda precisam ser ordenados. Há a parte do que eu chamo de “negócios”, o que inclui jornalismo, publicidade, marketing e marketing político e livros sobre algumas empresas (a história da IBM me fascina, por exemplo, desde que li a biografia de Tom Watson, Jr). Há as biografias, a parte sobre música (desculpe: Beatles), cinema. História, política, ensaística e crítica literária. Os livros de arte se arranjam como podem, de acordo com seu tamanho.

É curioso que eu tenha tão poucos livros sobre publicidade, e menos ainda sobre marketing político. Mas tenho pelo menos tudo o que David Ogilvy publicou de decente, embora só precisasse, mesmo, de um: Ogilvy on Advertising. Se alguém fosse ler um livro, e apenas um, sobre propaganda, esse seria o livro que eu indicaria.

Há algumas curiosidades. “Minha Luta”, de Hitler, está ao lado de Hitler’s Willing Executioners. Talvez só eu ache isso engraçado.

Ali também descansam livros que, decididamente, eu não sei direito como foram parar ali: “O Óbvio e o Obtuso”, “O Ser e o Nada”, “A Reconstrução dos Direitos Humanos” (do chato Celso Lafer sobre a chatíssima Hannah Arendt).

Definitivamente, quem tentar me conhecer pelos meus livros não vai descobrir absolutamente nada sobre mim. No máximo vai conhecer o mal que eles fazem às minhas costas.

Originalmente publicado em 04 de maio de 2005

Numa tarde em Fortaleza

Eu morava em Fortaleza e minha casa ficava perto da agência onde trabalhava, uns três ou quatro quarteirões.

Eu voltava do almoço (almoço era a hora em que eu ia tocar guitarra para minha filha), subindo a Rui Barbosa, quando encontrei um cego no cruzamento com a Torres Câmara. As pessoas passavam por ele sem se deter, atravessavam sozinhas a rua porque, afinal de contas, atravessar a rua era problema dele. Ofereci o braço, ele segurou e atravessamos a rua.

Fomos conversando pelos próximos dois quarteirões. Acho que fui eu a iniciar a conversa, e reclamei daquele sol miserável de Fortaleza, daquele calor miserável de Fortaleza. E ele disse que sim, estava muito quente, mas então lembrou que era pior quando chovia.

Em uma mão ele segurava sua bengala, na outra uma pasta: ele era vendedor. E me disse que quando chovia tudo ficava mais complicado para ele, porque tinha que segurar o guarda-chuva com uma das mãos e dar um jeito de levar a pasta e a bengala na outra.

“Ué”, eu disse, “uma capa de chuva é mais prático.”

E então ele disse que não, que uma capa de chuva era uma verdadeira tragédia, porque cobria seus ouvidos e sem ouvidos ele não podia se localizar. Sem ouvidos ele se tornava um inútil. Nos poucos metros que restavam ele me contou que não podia se dar ao luxo de não trabalhar, porque tinha responsabilidades, mulher e filhos para sustentar.

Ele se despediu de mim em outro cruzamento.

Alguns quarteirões antes, eu tinha parado para fazer uma boa ação. Uma que fizesse Deus, na hora da morte, contrabalançar um pouco as tantas más e me garantir, com um pouco de boa vontade, um lugarzinho no purgatório. Acabei recebendo uma lição de vida, uma espécie de recado para nunca mais reclamar de bobagens. Eu saía de um apartamento ventilado e ia para uma agência onde o ar-condicionado estava ligado no máximo, e reclamava de cinco minutos de sol e calor. Enquanto isso aquele sujeito agradecia pelo sol que o mesmo Deus que lhe tinha tirado os olhos lhe dava.

De vez em quando eu vejo as pessoas reclamando do quão difícil é a sua vida.

Já estou velho o suficiente para saber que não dá para comparar as pessoas, que a cruz de cada um parece às vezes pesada demais independente do tamanho, e elas sempre têm razão porque cada um sabe o quanto ela lhes pesa. Mas hoje, antes de reclamar das coisas, eu tento lembrar daquele cego que dobrou à esquerda na Santos Dumont, bengala branca em uma mão e uma pasta velha e batida em outra, e que se afastou enquanto eu ouvia o ruído de sua bengala batendo na calçada.

Originalmente publicado em 28 de março de 2005

Cena baiana III

Outubro de 1995.

Volto à agência esperando pegar o meu dinheiro e ir embora, depois de um freelance de um mês em que tudo deu absolutamente, completamente errado, e eu estava estafado e devendo a mim mesmo dezenas de horas de sono. Quem diz que baiano não trabalha não sabe o que é isso: chegar à agência às seis da manhã de domingo (vindo da farra, certo, mas ninguém tem nada com isso) e só sair de lá na sexta, às sete da noite, dormindo duas ou três horas por dia, como aconteceu em uma daquelas semanas.

Mas eles ainda têm uma provação para mim, que o meu lugar no céu só vai conseguido depois de muito sacrifício. Lomanto, prefeito de Jequié, quer que um redator vá até lá. Qualquer um. Não é nada grave, nada importante, mas ele quer, ué. E uma das funções de uma agência de propaganda é puxar o saco do cliente até ele gritar.

Eles têm urgência. Eu e o atendimento vamos para o Dois de Julho, pegar um táxi aéreo.

A gente entra em um Bandeirante. Eu nunca tinha andado em um avião tão pequeno, e acho estranho ter que andar abaixado, a proximidade do piloto, a caixa térmica fazendo as vezes de aeromoça.

O Bandeirante, que provavelmente tinha pertencido à FAB, liga os motores. Primeiro o da direita, e a hélice gira ao máximo. O avião treme como se tivesse visto alma penada, talvez o fantasma de Amelia Earhart. “Isso não vai dar certo”. Agora o da esquerda, a mesma tremedeira. “Esta porra vai cair”.

O avião levanta vôo, e no fim das contas é uma viagem até interessante. Ele voa baixo e eu aprendo o que é um avião de verdade. Nada daqueles Boeings cheio de traquitanas. Aquilo é leite pasteurizado.

Já estamos pousando em Jequié quando, sem aviso — sempre é sem aviso –, o avião embica para cima. Não lembrei de encomendar a alma a Deus naquele momento, não lembrei de nada além do proverbial puta que pariu. Mas entre os grandes orgulhos de minha vida está esse: eu não borrei as calças.

Fazemos a volta, repetimos os procedimentos de aterrissagem, e finalmente pousamos. É quando me explicam a razão do arremetimento repentino: havia crianças brincando na pista.

Quando saímos do avião o filho do prefeito está nos esperando. É ele quem explica melhor o que aconteceu.

Antigamente o zelador do “aeroporto” tinha uma bicicleta. Quando avistava um avião chegando, e via que crianças brincavam na pista, ele pegava a bicicleta, ia até lá e afugentava a criançada. Mas haviam roubado a bicicleta do zelador.

Só não me explicaram que o Bandeirante tem um problema de construção que faz o seu motor fundir fácil demais em casos de retomadas um pouco mais bruscas que aquela.

Em terra firme, ouvimos o prefeito, anotamos as modificações, fomos para o lançamento de um shopping e voltamos para Salvador à meia-noite.

De ônibus.

Originalmente publicado em 23 de fevereiro de 2005