Barroquinha

Uma barroca é uma “passagem funda entre penedos ou barrancos”. O nome que foi dado à Barroquinha, que desce da Praça Castro Alves em direção à Baixa dos Sapateiros, é a única lembrança de que houve um tempo em que ela estava além dos limites urbanos da cidade da Bahia; mas não demorou a ser ocupada, enquanto as classes mais altas se expandiam em direção ao sul, provavelmente atraídas pelo cheiro agradável da maresia da praia aos pés do Forte de Santa Maria e finalmente se fixando no alto das escarpas da Vila Velha, que depois se transformaria em Vitória.

Foi ali perto, no Largo da Barroquinha, onde na metade dos anos 70 vi pela última vez um tipo que desapareceu com o tempo: um sujeito que carregava umas maquininhas semelhantes a máquinas fotográficas, amarradas a um pau por pequenas correntes, contendo seqüências de slides a que se podia assistir, como em um binóculo, por 50 centavos de cruzeiro. Aquele trazia cenas de “Zorro” em um tom azulado — não o Lone Ranger, mas o de capa e espada, o do Sargento Garcia. A televisão e a sofisticação do mundo acabariam logo com esses pequenos mascates, talvez até mesmo nos grotões mais escondidos do interior. Mas em 1977, o que para mim era apenas uma experiência curiosa, para os meninos que moravam ou passavam entre a Baixa dos Sapateiros e a Avenida Sete ainda devia ser algo novo e fascinante, pelo menos a ponto de o mascate tentar ganhar seu pão ali.

Descendo a Ladeira da Barroquinha e dobrando à esquerda na primeira esquina, bem depois da igreja, chega-se à Visconde de Itaparica, uma rua estreita, antiga, de pedras gastas pelo tempo parecidas com as do Pelourinho a algumas centenas de metros dali. Mas ao contrário do Pelourinho a Barroquinha nunca pareceu bonita o suficiente aos olhos do Patrimônio Histórico. Foi abandonada pelos ricos ainda no século XIX, ocupada pelo povo baiano, negros livres e escravos, e abandonada está até hoje. Na esquina oposta havia uma padaria, que mais tarde daria lugar a uma das tantas lojas de roupas baratas que hoje fazem a vida do lugar.

Nos fios elétricos que se espalham dos postes da Visconde de Itaparica gerações de meninos jogaram barbantes amarrados em pedras, e aqueles barbantes ficavam meses, até anos enrolados ali, enegrecendo com o sol e a chuva, e criavam uma imagem típica e inesquecível — ao mesmo tempo repetida em várias outras partes da cidade e do mundo, em todos os lugares onde a escravidão deu lugar à miséria.

Noblesse obligesNa casa de número 24 um brasão antigo, quase soterrado por séculos de camadas de tinta, atesta que aquele foi um dia um edifício importante. Talvez um edifício público, historiadores devem confirmar essa hipótese com mais propriedade; mas prefiro a idéia de que aquela foi a residência de um nobre qualquer, um conde, visconde ou barão que trouxe sua fidalguia antiga e sólida de Portugal — ou de alguém que queria se dar ares de importância e arranjou para si um brasão bonito, para se legitimar diante de uma sociedade que se apoiava nas costas de milhares de escravos. Sua fidalguia não durou muito, no entanto, porque seus herdeiros foram obrigados a transformar a casa nobre que ostentava um brasão em um cortiço — uma casa de cômodos, como se diz em Salvador.

Eu lembro dessa casa. Era a típica casa colonial brasileira, mais comprida do que larga, com portas altas e janelas com sacadas elegantes de onde se podia olhar abaixo o populacho em sua faina diária, sacadas de onde moças recatadas namoravam, com olhares tímidos e sorrisos castos, pretendentes encasacados que escondiam sob a pudicícia provinciana as incontroláveis safadeza e descaramento baianos. Mas isso foi eras atrás, quando ainda se vendia aluá nas ruas de Salvador. Quando eu a conheci ela abrigava apenas miséria, só isso.

Decadência é issoNo lugar de latifundiários, garçons; em vez de donzelas à espera de um marido, lavadeiras; nenhuma delas lembrando que aquela casa foi moradia de fidalgos, ou pretensos fidalgos, que deixaram a casa se deteriorar àquele ponto apesar do brasão pretensioso em sua porta.

Na soleira da porta havia um batente alto, proteção contra uma rua que alagava facilmente e que não tinha esgoto. Na entrada, um sapateiro consertava sapatos em uma banquinha, igual a milhares de outros espalhados por toda Salvador, mas principalmente no centro antigo. Salvador tinha muitos sapateiros. Herança das ruas de pé de moleque e dos tempos da escravidão, semelhante ao canto dos encanadores no Relógio de São Pedro: até os anos 1980 quem passava por ali podia encontrar vários encanadores com suas caixas de ferramentas e seus maçaricos, esperando que alguém precisasse dos seus serviços. Mas o tempo passou; primeiro sumiram os maçaricos junto com as tubulações de ferro, e depois foi a vez dos próprios encanadores.

Da porta do edifício da rua Visconde de Itaparica um grande corredor com chão de cimento queimado seguia até uma escada antiga, com corrimãos de boa madeira escura. Os degraus de madeira gasta rangiam a cada passo. Por ela se subia até o primeiro andar, outro grande corredor com vários quartos de cerca de 8 ou 12 metros quadrados onde, às vezes, viviam famílias inteiras. A escada fazia uma volta e continuava até o segundo andar.

Nem mesmo o céu continua azulNos quartos, inúmeras mãos de tinta ruim se acumularam por décadas nas paredes, formando uma espécie de pentimento desarmonioso. Janelas sem vidraças traziam grades de ferro bem trabalhadas, atestados de que houve um tempo em que as coisas eram feitas para durar uma eternidade e que eram orgulho dos artesãos mulatos que as fundiam.

Em cada quarto o mínimo necessário para se viver: cama, fogão, mesa e armário para guardar as poucas coisas, umas panelas baratas e uns copos se arranjavam onde desse, às vezes um móvel que fazia as vezes de aparador. E por todos os quartos varais, sempre muitos varais, onde era estendida a roupa lavada.

Isso era bonito 200 anos atrásApenas um banheiro, grande, servia todo o andar. Em vez de chuveiro uma bica, que caía forte sobre o piso cimentado. E aquele banheiro tinha um cheiro estranho, único: mofo, água e sabonete e perfumes baratos. Não era cheiro de sujeira, mas tampouco podia ser cheiro de limpeza: era um cheiro único, cheiro de miséria e de luta pela sobrevivência.

A casa da rua Visconde de Itaparica está fechada há alguns anos e suas portas e janelas foram lacradas com tijolos. A casa do lado já desabou há muito tempo; não deve demorar muito até que o número 24 desabe também. E talvez aí esteja a maior ironia, porque seguindo a rua, em direção à Ruy Barbosa, está o IPHAN, que assiste quietinho e bonitinho à decadência literal de uma das áreas mais bonitas da cidade da Bahia.

O estuprador e as pseudo-feministas

Por e-mail, recebo a denúncia de que um colunista da revista Trip, Henrique Goldman, confessou um estupro cometido décadas atrás. Ela dá também o link para um post da Carla Rodrigues, indignada contra o sujeito e mobilizando leitores para uma petição online.

Aí vou ler o artigo e o post e vejo que as pessoas estão ficando loucas. E que a histeria pseudo-feminista pode atingir dimensões que quase chegam à demência.

(Diante da repercussão negativa, autor e revista apareceram com a justificativa de que o texto é ficcional. Eu acredito neles, porque o Papai Noel, o Saci e o Curupira me visitaram ontem e disseram que é verdade. De qualquer forma, as reações covardes do colunista e da revista são muito mais graves do que a publicação do texto. Em algum momento eles enganaram seus leitores. A questão agora é saber se foi quando publicaram um texto ficcional fazendo-o parecer real ou quando fugiram de suas responsabilidades dizendo ser ficção um texto real.)

A jornalista Carla Rodrigues deveria ter, pelo menos, lido direito o artigo antes de discutir estupro dessa maneira ultrajada. Se lesse, veria que nada do que o Henrique fez constitui legalmente estupro, como qualquer advogado pode explicar sem pensar muito. A coisa é ainda pior, porque tecnicamente quem poderia ter cometido atentado violento ao pudor — e não estupro — seria a pobre da empregada. Ela é quem tinha 20 ou 30 anos. O rapaz tinha apenas 14. E insistência não é violência. Ao acusar Henrique Goldman de estupro, Carla Rodrigues não mostrou apenas um feminismo falso, principalmente porque construído sobre premissas falsas: descupriu o seu próprio papel como jornalista.

Não custa lembrar que nos Estados Unidos essa mulher seria exposta à execração pública, como a professora Debra Lafave e algumas outras. A mãe indignada iria à imprensa falar da violência que o seu filho (aquele menino ali, com um sorriso feliz no rosto) sofreu nas mãos de uma depravada sexual. A boa sociedade puritana se escandalizaria, enquanto a legião de six-packers invejaria a sorte do garoto e lembraria de suas fantasias sexuais adolescentes com mulheres mais velhas; alguns mais sensíveis poderiam fazer um filme como “Houve Uma Vez Um Verão”.

O que torna incômoda a reação histérica do pessoal é a torção dos fatos em função de uma visão de mundo que beira as raias do absurdo politicamente correto. Há, principalmente, um grau extremo de hipocrisia em tudo isso: sabe Deus quantos homens brasileiros tiveram suas iniciações sexuais com empregadas domésticas — se a vida ao redor não foi suficiente para que elas soubessem disso já há algum tempo, bastaria olhar os tantos filmes brasileiros que abordam o tema, às vezes com razoável grau de poesia. Fazer um escândalo porque alguém falou abertamente sobre o tema e transformar isso em um caso criminal é um despautério.

Se em vez de enxergar estupros onde nenhum foi cometido o pessoal que está indignado discutisse o ponto realmente incômodo no conteúdo do artigo — o quanto da escravidão subsiste ainda nas relações entre patrões e empregados, principalmente os domésticos — esse pessoal faria um favor grande ao país. No entanto, preferem discutir bobagens sobre bases inexistentes.

Eu recomendaria a todas essas moças que fazem auê em torno desses fatos que lessem as posições de Camille Paglia sobre o assunto — estupro — incluídas no livro Sex, Art and American Culture. Faria bem à sua cultura geral e talvez tirasse um pouco da ansiedade e neurose que as pessoas estão associando a sexo ultimamente.