Ler Jorge Amado na adolescência é provavelmente uma das melhores experiências literárias para um brasileiro.
Seus três primeiros livros são muito bons. Lendo-os, pode-se até acreditar que o realismo socialista daria certo. Ainda não são obras primas, mas têm vigor, força, fé. E têm uma ligação profunda com a realidade; são bons exemplares da geração de 1930.
Os livros seguintes são cada vez melhores. Sua melhor obra, de acordo com a crítica em geral, é “Terras do Sem Fim”, mas eu tenho uma preferência pessoal: “Seara Vermelha”.
Esta poderia ser sua obra prima, e o grande romance brasileiro do século passado. É um livro estonteante, verdadeiro, grandioso — mas então vem a última parte e tudo aquilo se perde. Ao sair do sertão e do drama de beatos, cangaceiros e retirantes para exaltar a revolução de 35 em Natal, ele prostitui sua obra e quebra o ritmo admirável do livro, inserindo um elemento estranho e totalmente deslocado. Essa é talvez a grande decepção literária do século. Se eu fosse editor de Jorge Amado simplesmente expurgava a última parte. Estaria fazendo um favor ao livro e ao seu autor.
(Mais engraçado é que quando li o livro tive certeza de que aquele final tinha sido “imposto” pelo PCB, ou pelo menos por um senso de “auto-censura” de Jorge Amado. E que foi por razões como essa que ele abjurou o marxismo. Muito tempo depois vim a saber que foi mesmo, que ele saiu dando aquela desculpa esfarrapada dos crimes de Stálin porque o PCB queria impor “correções” a “Subterrâneos da Liberdade”. Só me pergunto por que ele não rompeu antes de escrever “Seara Vermelha”.)
(E antes que digam que essa minha restrição é ideológica e causada por um confesso horror ao realismo socialista: em “Capitães de Areia” a transformação de Pedro Bala em líder comunista é perfeitamente factível, e bem inserida no contexto do livro. O mesmo acontece com Linda em “Suor”. Não interessa se o personagem revolucionário de “Seara vermelha” é baseado em José Praxedes, personagem verídico; literatura não é a vida real, e se a realidade desafina e soa fora de contexto no mundo criado pelo livro, que se esqueça dela. A inserção da perspectiva da revolução em “Seara Vermelha” tira toda a verdade do livro.)
Depois do rompimento com o PC Jorge Amado mudou de rumo e passou a escrever livros considerados leves, folclóricos, populares. Os críticos datam sua decadência daí.
E essa é, talvez, a maior injustiça que fazem com o escritor. Porque talvez seja a partir daí que Jorge Amado adquire uma dimensão ainda maior. “Gabriela, Cravo e Canela” é um grande livro. Ao retratar a evolução social de Ilhéus e os primeiros indícios da decadência do coronelismo através do fim da tolerância aos crimes de honra, é muito mais verdadeiro e duradouro que ao pintar o paraíso clandestino de “Subterrâneos da Liberdade”.
Nenhum escritor brasileiro conseguiu captar o espírito de seu povo como Jorge Amado fez com o baiano. Nem mesmo Machado de Assis, escritor maior, claro, mas menos carioca do que Jorge Amado é baiano. Ler um livro de Jorge Amado é conhecer os tantos tipos de baianos, o vagabundo que bate na mãe devotada, o malandro esperando um otário para enganar, a balzaqueana com “sexo” escrito na testa, os meninos grosseiros, cruéis mas ainda crianças.
Livros como “Gabriela Cravo e Canela”, “Dona Flor e seus Dois Maridos” e “A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água” são leves, sim — leves como a alma da Bahia.