Aconteceu alguma coisa nas últimas semanas, e a maioria das pessoas que vêm parar aqui através dos mecanismos de busca como o Google estão atrás de resenhas prontas. “A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água” é, individualmente, o mais procurado.
Como é preferível receber esses visitantes aos tarados de antigamente, e para evitar que a galera saia de mãos vazias, aqui vai um resumo bem sucinto da novela de Jorge Amado, livro curto mas extremamente profundo.
A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água
É o principal livro da fase espírita de Jorge Amado. Foi escrito pouco depois de o autor se desligar do Partido Comunista, em seguida ao XX Congresso do PCUS, no qual Nikita Kruschev denunciou os crimes de Stálin.
A fase espírita de Amado foi uma espécie de intervalo entre sua fase marxista, exemplificada pela trilogia “Subterrâneos da Liberdade”, e a declaradamente folclórica, inaugurada em “Gabriela, Cravo e Canela”.
Essa fase, no entanto, duraria pouco, e englobaria apenas mais um livro: “Mar Morto”. Logo depois o escritor se converteria definitivamente ao candomblé, com o qual sempre havia flertado, e se tornaria ogã de um dos maiores terreiros da Bahia, o de Mãe Menininha do Gantois.
“A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água” conta a história de Quincas, homem rude da região do cais de Salvador. Trabalhador incansável, militante comunista e, como quase todos os grandes personagens de Jorge Amado, extremamente mulherengo. É apelidado de “Berro D’Água” por ter o costume de, depois de beber um número enorme de copos de cachaça, gritar “Epahei!”, saudação de Iansã.
Quincas morre já no primeiro capítulo, vítima de um tiro desferido por um policial durante uma greve dos estivadores por melhores condições de trabalho, na Praça da Inglaterra.
Ateu como todo bom comunista, Quincas se vê, então, vagando numa espécie de limbo. Não demora muito até que um espírito de luz, Sem-Pernas (personagem de outro grande livro de Jorge Amado, “Terras do Sem Fim”, cuja morte em um bordel, nos braços de Rosa Palmeirão, é um dos momentos mais poéticos da obra amadiana), finalmente esclareça qual a sua missão: acompanhar o policial que o matou e, ao perdoá-lo e guiá-lo, resgatar sua dívida para com Deus e todos aqueles que magoou em vida.
O policial, que se chama Juca Badaró, é um homem longe de Deus que, embora não seja intrinsecamente mau, segue na vida sem valores firmes e sem direção. Caberá a Quincas colocá-lo no caminho certo.
A partir daí, o livro transcorre como uma espécie de romance de formação, em que o espírito de Quincas cria as mais inverídicas situações para fazer com que Juca enxergue o trabalho de Deus em sua existência, alternando momentos hilariantes e profundamente emotivos. Em sua missão, Quincas é ajudado involuntariamente pela mulher por quem Juca se apaixona, a professora Teresa B. Figueiredo. Ela ensina a Juca — e indiretamente a Quincas — o valor do amor. Ao mesmo tempo, através de Juca, Quincas consegue reparar muito do que fez de errado enquanto vivo.
Só depois que esses trabalhos forem realizados é que Quincas poderá, finalmente, morrer pela segunda vez, e dessa vez definitivamente.
“A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água” é considerado por críticos literários importantes, como José Ramos Tinhorão e Paulo Emílio Salles Gomes, um romance atípico de Jorge Amado, longe de sua temática eminentemente baiana e/ou política. O livro é solidamente baseado no “Evangelho Segundo o Espiritismo” de Allan Kardec, e justamente por essa razão foi mais tarde desprezado por seu autor, que via nele o registro de uma fase de sua vida que preferia esquecer.
Outros elementos a serem notados no livro são as referências óbvias a um dos maiores clássicos da literatura brasileira, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, e a extrema semelhança estrutural com “A Comédia Humana” de Balzac.
Com “A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água”, Jorge Amado faz uma profissão de fé espírita, ao mesmo tempo em que lança profundas indagações sobre o sentido da vida. A dupla de críticos ingleses Terry Gillian e Michael Palin, autores de “O Cânon Ocidental”, considera este romance uma verdadeira aula de metafísica, embora aponte algumas falhas estruturais e de linguagem que o prejudicam um pouco.
O livro é pontuado por participações de outros grandes personagens de Jorge Amado, como Vadinho (protagonista de “Seara Vermelha”) e Antônio Balduíno, que fez sua primeira aparição como um dos “Capitães da Areia” e teria papel importante na obra-prima da maturidade de Amado, o livro que inaugura sua fase folclórica: “O País do Carnaval”.