A última crônica

Que dia.

Volto para casa e fico sabendo pela Felícia que o Sabino também morreu.

Nunca fui fã dele. Nunca li muito dele. Mas quando era criança, aí pelos 10 anos, li uma crônica sua que me deixou com vontade de chorar, e eu choraria se não tivesse alergia a lágrimas.

Só por essa crônica, pelo que ela tem de verdade e de ternura agridoce, Sabino merece estar em qualquer antologia de escritores brasileiros. Ao lado de “Iemanjá do Céu”, de Vinícius, essa é a melhor crônica já escrita em língua portuguesa. Aliás, ela está acima da do poetinha, muito acima. E em um mundo em que a sensibilidade forçada de tantos e tantos escritores ulula livre, é provável que ele venha a fazer falta.

A Última Crônica

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever.

A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho — um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.

A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: “parabéns pra você, parabéns pra você…” Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

11 thoughts on “A última crônica

  1. Já eu, perdi dois ídolos em menos de 24 horas… Sou fã de Fernando Sabino graças a uma professora de 5ª ou 6ª série (não lembro…) que nos fez ler “O Menino no Espelho”. Virei fã desse escritor mineiro desde então.
    Se puder, dê uma passadinha no meu blog. Também falei do falecimento dele e do Christopher Reeve. E de como entraram na minha vida.
    Beijosssssssss!!

  2. Que eu me lembre, essa foi uma das primeiras coisas que li do Fernando Sabino, depois não parei mais. Lembro também que eu, que nunca tive alergia a lágrimas, mas sim uma vergonha enorme de chorar (ainda tenho, e choro escondido sempre, a toa), acabei chorando.

  3. Fui grande fã do Sabino na adolescência. Junto a Faulkner, ele era o meu predileto. Já conhecia a crônica e também a avalio uma das maiores da nossa língua. Sem dúvida ele vai fazer falta…
    Ciao.

  4. triste, mas diante a imensa tristeza ,a alegria de ter ouvido tal comentário :
    puxa , adorei um livro do sabino , o gato sou eu , que pena…
    comentário feito pele minha filha isabela de 12 anos
    bom saber que deixei marcas feitas por fernando.saudade…

  5. Que bom saber que existe uma pessoa que compartilha da mesma opinião. Essa crônica sempre foi sinônimo de alegria e choro para mim.
    Eu não padeço de alergia á lágrima. Pelo contrário, sou é um chorão de marca maior.
    E essa sempre foi uma das que abrem as represas tão fáceis de arrebentar que moram em meus olhos.

  6. Eu já conhecia essa crônica, que encerra uma coletânea dele (qual? não lembro).

    Fernando Sabino marcou muito uma fase da minha vida, e “O Encontro Marcado” parecia não só um grande livro, mas uma aposta para a vida mesma: acreditar na permanência, na possibilidade de fazer de sua própria vida não apenas um desfilar de rostos sem nome ou uma vista d’olhos “num mundo de estátuas quebradas” (apud Anne Rice).

    Eu, um grande amigo e uma grande amiga, inspirados nesse livro, marcamos também um encontro. Não para trinta anos, que não éramos loucos, mas para dez. No dia 23 de maio de 2003 (sexta feira), às 21 horas, no Bar do Parque, em Belém, estaríamos jogando conversa fora e pensando na vida.

    O encontro não aconteceu, porque os dois estavam, por circunstâncias distintas, em São Paulo. Eles se encontraram, claro, em outro lugar. Nos falamos por telefone, tendo a certeza de que já éramos um pouco adultos naquela noite estrelada de 1993…

  7. Até então, a mais linda cronica q ja li. Coincidentemente estou lendo o Encontro marcado de Sabino, e uma de minhas professoras do curso de Letras passou-me um trabalho de análise sobre esta cronica.
    Enfim, não tenho nem palavras para analisar rsrs…

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