Se não me falha a memória

Eu chegava ao cinema cedo, para a primeira sessão da tarde, e as luzes estavam acesas e as poltronas estavam vazias, e de trás da tela vinham arranjos instrumentais de clássicos do american standard, talvez, quem sabe, interpretados por Ray Conniff.

Eu sentava e pensava na vida, e mesmo não tendo muito em que pensar, me aplicava a esse exercício com a seriedade dos que decidem os rumos do mundo, mas ao mesmo tempo com a leveza dos que sabem que não precisam carregar o mundo nas costas.

Então a música parava, infelizmente no meio de Night and Day, felizmente no meio de Besame Mucho, e eu sabia que imediatamente as luzes se apagariam, e a voz, sempre a voz de Jorge Ramos apareceria em sua grandiosidade de Cinemascope.

Se não me falha a memória, primeiro vinham os cinejornais. Normalmente atrasados em muitos dias, às vezes semanas.

Que bonito era o Canal 100, com imagens grandiosas de jogadores dançando ao redor da bola em meio a um Maracanã mal iluminado, e a locução de Cid Moreira. De que importava que o jogo fosse antigo, que se soubesse de cor e salteado o resultado? O Canal 100, percebo agora, não era um cinejornal. Era uma declaração de amor do cinema ao espírito do Brasil, o casamento entre duas grandes artes.

Eu não sabia, mas aquele era o último suspiro de uma época que estava sendo enterrada pela televisão. Não haveria mais cinejornais. Eu estava assistindo aos últimos momentos de uma arte que nasceu e morreu no século em que nasci mas ao qual sobrevivi.

Depois vinha um curta-metragem. Se eu soubesse o que era a Embrafilme na época resmungaria contra a política cultural do governo, contra aquela tentativa de me infligir aquelas coisas, mas eu não sabia nem que existia governo, e só conseguia suspirar e esperar que o suplício acabasse logo, como um menino que termina o seu dever de casa enquanto ouve os amigos chamando por ele. Mas mesmo odiando-os a todos, não me saem da lembrança um pequeno documentário sobre o São Cristóvão Futebol Clube, campeão carioca de 1926; um curta meio surrealista que depois seria inspiração para um comercial de tintas (fundo branco infinito, e o artista enlouquecido joga as tintas desvairadamente cenário afora); e o melhor de todos eles, aquele em que a divina, divina Denise Dumont, sonho inalcançável de infância, pega um ônibus lotado e se abaixa para a delícia dos passageiros e dos espectadores, e aquela visão calipígia fazia valer todo o dinheiro economizado durante a semana.

Era antes do DiVX, antes do DVD, antes mesmo do video-cassete, e os cinemas costumavam exibir reprises de grandes sucessos; se passei batido por “… E o Vento Levou” assisti a dois, três desenhos da Disney, e vi o trailer de Help! dos Beatles, sem saber o que era help e sem saber quem eram os Beatles.

Então vinha, finalmente, o certificado de censura atestando que aquele filme tinha sido liberado para maiores de 14 anos —  e eu tão feliz por ter apenas 11 e ter conseguido entrar no cinema. Os certificados eram parecidos com os da TV, e para mim faziam parte da programação normal. Não evocavam a ditadura, não me faziam pensar em liberdade de expressão; eram apenas um aviso de que o filme ia começar, de que a espera havia terminado. Um aviso, só isso, como o leão da Metro, os holofotes da Fox ou o cume nevado da Paramount.

Era uma época em que o cinema impunha menos regras, porque se podia fumar, comer, beber, namorar nas poltronas do fundo. Mas eu era criança para namorar, e desde aquela época gostava de ir ao cinema sozinho, e ainda que tivesse namorada não iria ousar as ousadias que se ousam no cinema, e minha mão não desceria dos seus ombros, cautelosa, hesitante, esperando a reação ou o suspiro dela, ela que nem seios teria.

E bolinar a namorada durante um filme dos Trapalhões é simplesmente errado.

E então, quando os créditos finais terminassem de subir a tela, com as luzes já acesas, e se fosse bom o filme, eu esperaria uma nova sessão, sem que nenhum lanterninha falsamente gentil e eficiente viesse me convidar a sair.

Se não me falha a memória, essas lembranças vão completar um quarto de século.

5 thoughts on “Se não me falha a memória

  1. Boa memória. Eu nem me lembava mais do certificado da censura.O Canal 100 era o meu verdadeiro objetivo no cinema. Sonho com aquelas imagens até hoje.
    O texto está realmente uma delícia.
    Ciao

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