Eu soube que ela estava doente numa noite de abril.
A primeira reação foi de incredulidade, porque ela era a última pessoa que poderia ter câncer, esse tipo de câncer. A idéia está lá, você sabe que é verdade, mas ao mesmo tempo parece não ser. E então vem a raiva por isso estar acontecendo, as perguntas do por quê isso está acontecendo. Não há resposta. Nunca há.
E à medida que o tempo passa você tenta se acostumar com a idéia, passa a simplesmente conviver com isso.
Durante a campanha deste ano o plano era simples: acabar e voltar imediamente para o Rio, para pelo menos poder me despedir dela. Quando vim para Aracaju ninguém sabia que ela estava doente. Nos meus relatórios quase diários sobre a campanha, eu podia notar que ela estava feliz, também. Ambos contávamos os dias para a minha volta, embora por razões diferentes. Ela não sabia que tinha câncer e minha volta seria só isso, uma volta — e talvez pudéssemos ir para a Colombo, para comer meu viradinho de banana e bomba de creme com coca-cola enquanto ela tomava um chope, e rir quando o garçom, coitado, trouxesse a coca para ela e o chope para mim. Ou caminhar de braços dados pela rua do Ouvidor quando eu fosse tomar meu mate.
Mas quando a campanha acabou eu fui proibido de voltar. Já não fazia sentido, nem para mim nem para ela.
É se contentar com as lembranças, pelo menos. Foi ela quem me deu o nome de Rafael. Na maior parte dos momentos mais importantes da minha vida ela estava lá. Estava no meu casamento, orgulhosa com um vestido azul. Esteve ao meu lado durante a minha separação. Mais que amor, eu sinto falta de sua lealdade.
Das gargalhadas que dávamos, ela com seu jeito calmo mas soltando umas farpas aqui e ali. Ou ela deitada no sofá, pernas no meu colo, assistindo televisão e rindo. Do dia em que enchi a lata de vinho no almoço, rindo com ela, e tive que ir à Tijuca, resolver alguma coisa. Ou das perguntas que eu lhe fazia este ano pelo telefone: “Ô, velhota, cê tá cuidando bem dos meus livros?”, “Falaí, você tá é feliz porque eu tô longe, né?”, e eu sabia que ela iria fingir indignação, ou sorrir e dizer “Você sabe que não…”
Talvez a melhor definição dela tenha sido dada pela mulher do seu sobrinho e médico: “Se você a virar pelo avesso, não vai encontrar um defeito”. Ela tinha defeitos, sim, e sabia disso. Mas sua sobrinha não mentiu: se havia uma característica que a definia era uma bondade quase limites, uma generosidade que pouca gente conhece: e os meninos de rua que a rodeavam pedindo um real, que ela dava para todos eles, sabiam disso. Como sua irmã disse hoje, “as pessoas especiais vão embora no sábado, dia de Nossa Senhora”.
Eu pensava que assim que ela morresse — e nos últimos meses essa idéia esteve presente em cada hora do meu dia — o que iria ficar não seria dor, seria alívio e saudade. Foram mais de seis meses para me acostumar com a idéia. Talvez essa seja a única vantagem do câncer, lhe dar tempo para se acostumar com algo que, do contrário, lhe pega de surpresa. Eu estava enganado. Mas acho que se ela pudesse me ouvir agora diria que não, que eu tinha razão, que o que tem que ficar mesmo é só a saudade — mas só um pouco, porque saudade demais não é bom.
Agora, a única coisa que eu poderia fazer era escrever algo bonito para ela. Não posso. Porque nada do que eu escreva pode sair bonito; só doído. A dor vai passar, eu sei, e vai ficar só a saudade. Mas até lá dói.
Ela faria 77 anos amanhã.