Só a estréia da peça do Cauê, na última quinta-feira, poderia tirar de casa este eremita em véspera de viagem.
“Viva — A Vida Em Um Ato” é a estréia do Cauê como dramaturgo, uma peça escrita há cerca de 15 anos, como fico sabendo após o final. É um monólogo de Benedito, um soropositivo interpretado por Luiz Carlos Reis que recapitula a sua história, a partir do momento em que se descobre portador do vírus da Aids.
Os principais problemas da peça se revelam logo nos primeiros 10 minutos. O texto é excessivamente literário. É um belo texto — se lido. Mas ouvido, com todos aqueles “paras” e construções pouco coloquiais, ele se torna artificial, forçado.
O “para” é uma implicância pessoal, e que se repete durante toda a peça. Ninguém fala “para”, fala “pra”.
Talvez um ator com um desempenho melhor pudesse evitar algumas das armadilhas apresentadas pela forma do texto. Mas esse não é o caso de Luiz Carlos Reis. Seu desempenho é ruim, é típico de teatro amador. É artificial, brinca pouco com o texto. Ele se entrega pouco, e interpretação depende fundamentalmente disso.
A peça cresce, no entanto, quando deixa um pouco de lado o diálogo de mão única com a morte e faz com que Benedito questione a sua própria existência, algo muito além da Aids: a sombra do vírus está, claro, sempre presente, mas é apenas parte de algo muito maior: a vida. É a parte que me pareceu autobiográfica, em que o Cauê deu mais de si — e é aí que a peça se torna mais rica, mais densa, mais verdadeira. Aqui Benedito questiona não mais a proximidade da morte, mas a seus amores, sua sexualidade, suas relações com o mundo e, principalmente, com a família. E o ator sente isso: é nessa parte — felizmente a de maior duração da peça — em que ele quase se solta, em que dá alguns lampejos de realmente se identificar com o papel. Sua atuação continua ruim, dura. Mas quando em vez se vê de relance um toque de naturalidade, de confiança no texto que está interpretando, de entrega. É quando um ator se deixa levar pelo autor que as boas obras se criam. Agora nem mesmo ele pode evitar isso, porque a verdade que a peça transmite então é tão forte que mesmo um ator limitado como ele consegue se sair melhor.
E nesse momento “Viva” é brilhante, porque é verdadeira e universal. Benedito se torna mais complexo e adquire mais empatia quando esquece que tem que chamar a morte para as vias de fato. Em seu acerto de contas consigo mesmo — e não mais com a indesejada das gentes — Benedito passa um tom agridoce que consegue emocionar e divertir. A vida é isso.
No final aqueles mesmos problemas voltam: o texto se torna novamente excessivamente literário, um tom de declamação com que o ator evidentemente se atrapalha. Mas agora há um outro problema — que o próprio Cauê identificou: a fala final é panfletária, abusa de alguns clichês de sobreviventes, de declarações insolentes de amor à vida.
A direção de Tetê Nahas, em uma peça feita evidentemente com poucos recursos, é muito boa. Alguns pequenos defeitos de timing, e principalmente de direção do ator, mas no geral, na concepção da peça, não faz feio. Há excelentes sacadas, como tornar um mero banco praticamente ums egundo personagem. O cenário é fraco, minimalista em excesso, mas compensado pela boa iluminação.
O resultado final é que Viva vale, sim, a pena.
Fiquei curiosa com o texto. Essas coisas de pensar na própria existência, de entrar lá dentro e fuçar as entranhas – do jeito que for possível – e, conseqüentemente, ficar feliz, com raiva, com medo, triste e o escambau, ah, isso mexe comigo. Queria até que mexesse menos.