Os novos tumbeiros

Depois da Revolução Francesa, traficantes gauleses de escravos rebatizaram seus navios negreiros de Liberté, Egalité e Fraternité. Se isso parece hipócrita, talvez não tenha sido na época: é bem provável que eles acreditassem tanto nos ideais da revolução quanto no seu direito de comprar e vender gente.

Há algo parecido com os ultra-liberais brasileiros. Advogam causas tão utópicas como o velho e bom comunismo, com a diferença de aceitarem tacitamente a crueldade inerente ao liberalismo, onde teoricamente os mais “adaptados” sobrevivem muito bem e a maioria pasta no arroz e feijão; e isso no liberalismo ideal, porque a prática tem se mostrado contrária. A repetição da mesma ladainha do Estado mínimo, em que até sua função reguladora é minimizada em função da ordem divina do mercado, não costuma passar disso.

Até onde sei, o modelo liberal advogado por eles é inspirado pelos Estados Unidos. O curioso é que esses mesmos EUA são um país reformulado por uma das maiores intervenções estatais específicas na economia de um país fora do bloco socialista, o New Deal. O Estado teve que salvar o país dos exageros do tal mercado — como acontece sempre, em todo lugar.

Podem dizer, claro, que a questão do pensamento liberal é definir um ideal. Mas isso também vale para o comunismo, até mesmo para o anarquismo. Aí podem dizer que a experiência real do comunismo foi trágica. Verdade. Mas a experiência real do capitalismo também tem sido trágica. Outra pausa para dizerem que os lugares onde as coisas estão mal não praticam o bom liberalismo, e isso me lembra os comunistas dizendo que a experiência comunista não era comunista de verdade.

A aplicação prática das teorias liberais são sempre um mero detalhe. Eu também fico imaginando o que farei quando ganhar sozinho na Mega Sena acumulada. O detalhe de eu nunca ter jogado é só isso, só um detalhe.

No fundo, tudo isso é muito velho, a mesma velha postura da elite brasileira, que começa a se coçar quando imagina que o seu dinheiro, aquele que o Estado lhes consegue tomar depois de tantas isenções e outros subterfúgios, vai servir para algo mais que garantir as condições necessárias para o seu próprio crescimento. O Estado brasileiro nunca foi pródigo em relação ao seu povo. Nunca deu nada, ou quase nada — as tentativas mais consistentes até agora, as medidas getulistas, sempre estiveram sob fogo cerrado. Sob certo ângulo, as posturas neo-liberais de nossas elites são exatamente as mesmas daqueles que lutaram encarniçadamente para manter a escravidão. Mudaram apenas os tempos.

E talvez esse seja o efeito mais pernicioso da hecatombe socialista de 15 anos atrás. Uma sociedade inteira voltando a acreditar que a desigualdade social é não só natural, mas desejável. Antigamente era a vontade de Deus. Hoje é a mão invisível do mercado.

12 thoughts on “Os novos tumbeiros

  1. Rafael, sabe aquela torcida cuja profissão de fé é odiar o Flamengo (sim, ultimamente não tem sido muito, mas vamos ficar com a idéia) e que adotam qualquer novo time somente para ter a possibilidade de malhar? Aqueles que se agarraram à vaca sagrada do liberalismo em nossa blogosfera são como estes torcedores: sabem a quem odeiam, investem tudo no seu ódio e acreditam que não precisam justificar nada da vaca abraçada. Os EEUU estão se tornando a cada dia mais intervencionistas (tanto político como econômico) e parece que ninguém vê. São os liberais divinos, que receberam um abono de não discutir, só cuspir.

  2. Uma vez ouvi a frase: “somos tratados conforme permitimos sermos tratados”.
    Parece que é simples “desligar” um botão e ser diferente, mas na verdade este botão não existe. A transformação cabe a cada um de nós num trabalho de formiguinha mesmo. E citando outra frase famosa, não pense que se “faz homelete sem quebrar os ovos”.
    Nossa sociedade está fatiada e vendida, em todas as suas camadas. Cheia de “favorecimentos”, o cidadão comum paga mais impostos e o país continua beirando o 4º mundo (se é que poderia existir), curvado às decisões e pressões externas e mesquinharinhas internas.
    Cabe a cada um de nós resistir, dizer não (apesar das conseqüências), dar o exemplo. Cito sempre uma frase que ouvi num filme e sintetiza a posição que acho necessária a cada um de nós:

    “Princípios são mais importantes quando são inconvenientes.”

  3. Este é um trabalho para o homem-chavão!
    Boas passagens: “Podem dizer, claro, que a questão do pensamento liberal é definir um ideal. Mas isso também vale para o comunismo, até mesmo para o anarquismo”, com a necessária ressalva que desses três o único que advoga a presença do Estado, forte porém limitado, é o Liberalismo, inclusive por defender a imprescindível função reguladora deste. ” O Estado brasileiro nunca foi pródigo em relação ao seu povo. Nunca deu nada, ou quase nada — as tentativas mais consistentes até agora, as medidas getulistas, sempre estiveram sob fogo cerrado”, também com a ressalva de que as tais medidas getulistas não visaram ao povo (seja lé o que isso for), mas a setores específicos da sociedade.

    Chavões:

    1º Usar o termo “ultra”, que já traz em seu ventre uma conotação pejorativa. Ninguém sai por aí chamando so outros de ultra-comunista, mega-socialista, super-facista, hiper-social-democrata etc.

    2º Confundir o liberalismo com as teses autointituladas “anarco-capitalistas”,que pululam aí na blogosfera. Porra confundir o que diz um Rothbard ou um Hans Hermann Hoppe com o que pregou um Popper, um Aron ou um Dahrendorf, só denota o desconhecimento da matéria.

    3º”aceitarem tacitamente a crueldade inerente ao liberalismo, onde teoricamente os mais “adaptados” sobrevivem muito bem e a maioria pasta no arroz e feijão”
    Meu caro a pobreza e a escassez tem acompanhado a humanidade desde sempre. Cite-me uma civilização, sociedade, nação (inclusive entre as que adotaram o socialismo) onde todos vivessem no bem-bom, sem distinção. Ou onde não existisse uma maioria que ralasse e uma minoria que vivesse muito bem. Computar isso à “crueldade inerente ao liberalismo” é foda. Se bem que com a Revolução Francesa pelo menos tentou-se abolir os privilégios de nascimento, que aprioristicamente tornavam alguns “mais adaptados”.

    4º”Outra pausa para dizerem que lugares onde as coisas estão mal não praticam o bom liberalismo, e isso me lembra os comunistas dizendo que a experiência comunista não era comunista de verdade”

    Só pensa assim quem acha que o liberalismo é uma doutrina fechada, tal qual o socialismo soi disant científico de Marx, por exemplo.

    5º”Sob certo ângulo, as posturas neo-liberais de nossas elites são exatamente as mesmas daqueles que lutaram encarniçadamente para manter a escravidão. Mudaram apenas os tempos”

    Garáleo, dizer que um liberal defenderia a escravidão é muito pra minha limitada compreensão.

    6º”Até onde sei, o modelo liberal advogado por eles é inspirado pelos Estados Unidos. O curioso é que esses mesmos EUA são um país reformulado por uma das maiores intervenções estatais específicas na economia de um país fora do bloco socialista, o New Deal. O Estado teve que salvar o país dos exageros do tal mercado — como acontece sempre, em todo lugar.”

    Quanto aos istêites serem modelo de liberalismo, pra mim pelo menos não é. Endosso cada palavra do comentário postado pelo Reginaldo.Na verdade estão se tornando cada dia mais intervencionistas, tanto no campo político quanto no econômico. Parece-me, ainda, temerário assumir incondicionalmente a tese de que o crash de 29 se deu pelos exageros do mercado. Há teses interessantíssimas que defendem justamente que foi uma desastrada intervenção estatal que provocou o dito cujo.

    7º “Ordem divina do mercado”. Não existe essa crença. Não existe ordem, muito menos divina.Pensa-se apenas que, na maioria das vezes, a intervenção estatal para corrigir tais desvios geram uma desordem ainda maior.

    Perguntinhas:

    1ª Quem é a elite no Brasil? Existe uma elite econômica e outra política? Ou as duas estão simbioticamente entrelaçadas ao ponto de serem indicerníveis? Outra coisa, eu, por exemplo, 3º grau completo, cargo público de bom nível (através de concurso), considero-me membro de uma “elite”…

    2ª Que história é essa de que a experiência real do capitalismo tem sido trágica? Pode explicar-me melhor?

    3ª O liberalismo deseja a desigualdade social? Acho que o certo é que ele encara certa desigualde (sem exageros) com mais naturalidade, até mesmo em virtude das desigualdades inerentes aos homens. Desejo, por desejo, eu, por exemplo, desejaria que nosso Brasil Varonil possuísse 180 milhões de rafaéis galvão (a metade em corpo de mulher gostosa, é claro!) e nenhum cabeção, que além de burro é preguiçoso…

  4. BigHead,

    1 – Há nuances, sim. Muito mais que nuances de “socialistas” hoje em dia. Principalmente depois que a sociedade inteira deu uma guinada em direção ao que seria considerado direita alguns anos atrás.

    2 – É como um gramsciano dizendo que confundir marxismo com isso que pulula na URSS (…) só denota o desconhecimento da matéria. Ou um maoísta falando de Cuba. Ou… Não vale.

    3 – É justamente isso, Cabeça. Essa justificativa histórica e determinista não me convence, e não deveria convencer ninguém.

    4 – Não entendi. O marxismo é fechado?

    5 – Não exatamente. Mas essa mesma elite, que defendeu a escravidão, hoje defende essas coisas aí de liberal, sacumé. No fundo – e é esse o argumento central do post – é muito parecido. Apenas se adequam aos tempos. Lampedusa, lembra?

    6 – A tese do crash ter sido por uma intervenção estatal, da que eu nunca tinha ouvido falar, me parece a princípio absurda. Quer dizer que tudo de bom que o capitalismo traz é mérito do mercado, e tudo de ruim é culpa do Estado? De novo?

    7 – Ah, existe, Cabeças. A idéia de que o liberalismo é a melhor coisa a que a humanidade chegou, que é o fim da história, não é mais que isso.

    1 – Não são indiscerníveis. Conheço gente que faz parte da elite cultural e está longe da elite econômica, e vice-versa. Mas é preciso dizer quem faz parte da elite econômica do país?

    2 – Conte os mortos, Big Head.

    3 – E aí voltamos ao idealismo utópico liberal.

  5. Ôooooooooooooo, Rafa, o que tentei fazer na mensagem é abrir seus olhinhos e ver que há gente por aí usando o ideário liberal como biombo para manifestar suas teses elitistas, conservadoras e retrógradas. Existe um talibanato católico tupiniquim que está tão distante do ideário liberal quanto aqueles que por eles são criticados. Porra, o capitalismo é apenas uma forma de organização econômica, falha, mas que até agora tem se provado mais eficiente do que qualquer outra. O que num dá pra engulir é a tese marxista do primado da economia (hiper-super-mega-infra estruturas e tal). Assim fica facin, facin. Pega-se um recorte da sociedade, mais precisamente sua forma de organizar da produção, afirma-se que dessa base derivam todas as demais “estruturas” (a cultural, a política, a social etc) e pronto, fez-se o capeta, o “sistema” capaz de gerar monstros como Hitler e Mussolini, de quebra responsabilizando-o por milhões de mortes. Tá parecendo o Emir Sader, que diante do lançamento do Livro Negro do Comunismo, saiu às pressas atrás de gente para escrever o seu homônimo sobre o capitalismo, inclusive colocando nas costas desse as mortes causadas pelas duas grandes guerras. O pior é a palavra “direita”, que provém de uma escala elasticíssima que vai dos sociais-democratas até os nazistas. Pois bem, Rafa, acho injusto essa crítica simplória ao liberalismo por que acho (veja bem, ACHO) que ela tem como alvo teses que também não endosso, alcunhadas de liberais por gente que de liberal num tem nada. Trocando em miúdos, tenho muito mais afinidades intelectuais e de visão de mundo com cabôcos como você, dscontadas as óbvias e necessárias divergências, do que com discípulos de um certo fiofólogo de plantão, patrono do talibanato ao qual mereferi antes, sacô?

  6. Esqueci duas coisas, em nenhum momento quis justificar o que quer que seja. Apenas quis atentar para o fato que as tais desigualdades, por existirem desde os tempos mais remotos não podem ser colocadas sobre as costas do ideário liberal, sacô? Além disso, acho a crença numa ordem divina do mercado tão patologicamente utópica quanto a da criação de uma sociedade perfeita pelo engenho humano…

  7. Alguns poucos comentários:

    1) O capitalismo tem males e excessos mas a única e melhor saída é o seu custoso aperfeiçoamento. Um exemplo será um maior gasto das empresas com auditoria – após a excessiva e leniente desregulamentação que resultou nos escândalos na Enron, Worldcom, Parmalat. Outro exemplo poderá ser um maior gasto p/ combater a pobreza e a ignorância, em função da violência e do terrorismo.

    2) não tem como negar a parcela de culpa do mercado na crise de 29. Estimulada pelo aumento de crédito, foi mais uma das diversas bolhas especulativas inerentes à economia de mercado.
    Isso é inerente. A psicologia explica.
    Agora, porque o new deal foi importante, não significa que a intervenção estatal deva ser ampla e permanente.

    3) O desafio é definir as ações e políticas públicas que minorem as desigualdades, de modo a não abalar os princípios de incentivo e eficiência da doutrina liberal. Acho que o mais provável é que essas ações e políticas não venham pró-ativamente.

  8. O liberalismo em si não é ruim. Mas a defesa do egoísmo que se vê na blogosfera, que nada tem a ver com liberalismo, aí é outra coisa.

  9. Acho interessante e deve ser até consolador conseguir se definir em um rótulo, deve ser realmente bom ter todo esse auto-conhecimento e viver em toda essa segurança intelectual de fé. Mas, eu, sinceramente, nunca consegui.
    Na minha fase infantil numa família de “direita”, tinha idéias “esquerdistas” demais. Nos tempos de colégio e faculdade, rodeado de um esquerdismo quase unânime, descobri que acreditava num monte de coisas que meus pais falavam…
    Agora, adulto, tenho a certeza que ideologia é muito bonito pra deixar exatamente aonde está, no mundo das idéias. Quando tentamos adaptar o mundo real a uma idéia, muitas vezes isso nada mais é do que tentar encaixar o quadrado no buraquinho redondo daqueles brinquedinhos pra criança de dois anos.
    Tanto o liberalismo como o socialismo são lindos e perfeitos desde que não tentem colocá-los em prática.
    Não quero aqui dizer que não dá para ter metas e querer “transformar a realidade”, ora, toda a história da humanidade é uma transformação do mundo. Quero dizer apenas que não custa olhar pro lado e pra baixo. Avaliar o chão em que se pisa antes de querer num pulo agarrar a Lua. Na verdade, acho que tomei raiva foi de gente que segue utopias…
    Pra mim, o famoso Estado-mínimo tem que ser mínimo mesmo, o que muda é a noção de mínimo…
    O Estado deve se concentrar mesmo em segurança, saúde, educação e previdência. A primeira é eterna função do Estado através da justiça, polícia, fiscalização e regulamentação em geral. Já quanto as outras três, o Estado tem dever de garantir, não necessáriamente de prover. Se tivermos uma sociedade (olha a quase utopia aqui) cuja iniciativa privada seja capaz de produzir riqueza e distribuí-la de forma que ninguém precise recorrer ao Estado para estudar, ter saúde e sobreviver, ótimo! Cortemos essas despesas das contas públicas e diminuamos os impostos!
    Já estive na iniciativa privada e atualmente conheço a máquina estatal por dentro. Sinto pesar em concordar que o Estado perde tempo, energia e dinheiro preocupando-se com coisas que deveriam simplesmente ser deixadas nas mãos “da sabedoria do mercado”. Tudo isso desvia do essencial e sufoca sim as empresas e povo numa carga tributária e burocrática que dá vontade da gente sair correndo e se lançar no mar.
    A lógica, objetivos e formas de prestação daqueles serviços precisa mudar e muito, mas, não muda. Agora, esquecer as razões últimas do porquê seres humanos se juntam em bandos é que não dá pra fazer.

  10. O liberalismo é o melhor a que a humanidade chegou. Não quer dizer que seja perfeito, tem graves problemas, mas a única solução viável é tentar aperfeiçolá-lo.§§§Com uma ou outra diferença, costumo ouvir isso de defensores do liberalismo. E isso significa que se acredita que esse modelo é não só o melhor a que se chegou(do que eu discordo totalmente), mas também é o melhor a que se pode chegar. “Pois é, a história acabou, já chegamos no melhor que podemos, agora mesmo com os problemas que existem, só podemos tentar melhorar um pouco aqui, outro ali, criando sempre novos problemas, mas não se tem como fugir disso, é o mal necessário. O liberalismo é o ponto máximo da humanidade.” Acho esse posicionamento patético.

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