Depois do "boa noite"

Quando William Wyler conseguiu convencer Laurence Olivier a filmar “O Morro dos Ventos Uivantes”, Olivier tinha certeza absoluta da superioridade do teatro sobre o cinema.

Wyler abusou da crueldade ao dirigir Olivier. Ria da sua impostação de voz, dos seus gestos afetados que eram adorados em Drury Lane. A crueldade chegou ao máximo quando Olivier, cansado da incompreensão daqueles ianques ignaros acerca da grande arte da representação, reclamou: “Nesse meio estreito e anêmico de vocês não há lugar para uma grande interpretação”. Tudo o que recebeu em troca foram as gargalhadas de todo o estúdio.

Olivier parece ter aprendido a lição, e pelos próximos 40 anos teve uma carreira bastante razoável no cinema, inclusive dirigindo algumas das melhores versões cinematográficas de Shakespeare.

Corta.

No ano passado, boa parte da crítica desabou sobre “Olga”, de Jayme Monjardim. Em vez de criticar atuações ou roteiro, ou ainda falhas de direção, a principal acusação era a de que o filme repetia a linguagem televisiva; aquilo era televisão, não cinema.

Corta.

Talvez o que mais incomode nesses dois casos seja a necessidade da intelligentsia de estebelecer uma hierarquia entre produtos culturais. Elas representam a mesma postura: a de que um meio anterior é superior a outro. Há um certo elitismo cultural, também, a idéia de quanto mais voltado para as massas, menos qualidade esse produto deve ter. O pessoal do teatro esnoba a TV; esnoba menos o cinema porque este se afirmou como “arte”, mas ator que se preze canta loas à superioridade do teatro. O pessoal do cinema, por sua vez, despreza a TV como quem despreza um cachorro sarnento, e criticam este diretor por dirigir comerciais, aquele por trabalhar em novelas.

Especificamente no caso da crítica a “Olga”, há um certo preconceito por parte dessa elite cultural. Ela falha em perceber que a televisão pode ser, sim, a origem de uma linguagem estética brasileira. Específica, claro, que não necessariamente é adaptável a todo e qualquer filme. Mas brasileira.

A linguagem das telenovelas brasileiras é bastante diferente da linguagem televisiva americana. A fotografia de Friends, por exemplo, não tem os mesmos elementos de “Renascer”. Nossa predileção por closes diz mais respeito a um modo ibero-brasileiro de se relacionar com o outro do que a eventuais exigências narrativas da televisão.

A própria formação da TV brasileira é diferente. Em que pese o fato de a TV americana ter recebido uma migração intensa dos grandes nomes do rádio da década de 40 em seus primeiros anos, sua estética foi definida a partir da indústria cinematográfica, o maior referencial cultural de um país que, embora com uma educação básica quase universal, sempre primou pela ditadura do gosto médio. A brasileira, por outro lado, deve suas origens ao rádio e ao teatro de revista. Até hoje, como se pode ver em programas como “Zorra Total”, há uma boa predominância do humor radiofônico, centrado em bordões e esquetes rápidos, e sua concepção visual era a dos shows de vedetes do Carlos Machado.

Mas se algo evoluiu tremendamente neste país foi a TV.

Estamos praticamente no meio do ano, e até agora a melhor produção brasileira em dramaturgia foi “Hoje é Dia de Maria” — sob qualquer aspecto, uma peça brilhante, maravilhosamente escrita e dirigida com perfeição. Como narrativa, essa minissérie não é em nada inferior a quaisquer dos filmes brasileiros lançados este ano. Sua concepção estética está à altura da cinematografia do jeito que se pratica no Brasil — e de teatro também, ao misturar elementos enográficos deste último. É diferente, claro, mas não inferior. E se vamos falar de “cultura genuinamente popular”, “Hoje é Dia de Maria” nao podia ser um exemplo melhor.

“Hoje é Dia de Maria” mostra que esse debate sobre estética cinematográfica e televisiva sequer deveria existir. É um debate estéril, burro, porque afinal de contas cada filme pede uma abordagem específica.

Mas o preconceito contra a TV parece não morrer.

Por exemplo, do ponto de vista do autor não há nenhuma diferença entre escrever para o teatro e para a televisão. Os diálogos podem ser bons ou ruins a despeito do meio; as situações criadas também. Basta uma olhada na produção cinematográfica dos anos 70 para notar que qualquer telenovela tem diálogos melhores do que os filmes da época; o mesmo vale para todas as outras áreas. O teatro, aliás, não tem mostrado grandes obras primas nos últimos tempos.

Talvez aí esteja um os grandes erros da intelligentsia nacional. Assim como Olivier não conseguia reconhecer que o novo meio seria o dominante naquele século e demorou a perceber que tinha que se adaptar, aqueles que fazem cinema parecem se recusar a admitir que a cultura nacional é definida em função não da grande tela, que sempre foi incipiente, ou do teatro, que nunca teve penetração de massas.

Então só um lembrete: quem define a cultura deste país é a TV, é a telenovela depois do “boa noite” de William Bonner e Fátima Bernardes. Não custa nada reconhecer isso.

11 thoughts on “Depois do "boa noite"

  1. Olá, vim antes pra falar no post anterior, mas não entendi onde estavam as perguntas.
    E ainda nem é seg. e vc já postou? Q rápido.! rsrs
    Não participo dessas discuções sobre qual veículo é melhor, ou qual estado, qual cidade, ou qualquer coisa.
    Gosto do q é bom pra mim.
    Um bom filme, uma boa peça (q prefiro não arriscar e só assisto às comédias)uma boa música e tudo mais.Muito bem feito teu texto e concordo com vc sobre “Hoje é dia de Maria”.
    Abraços e boa semana.

  2. Rafa, bacana vc abordar esse tema. Discordo q ‘quem define a cultura deste país é a TV’. Primeiro: cinema, TV e teatro são linguagens diferentes, e comparações n cabe.
    Segundo: ‘definir’ é mto forte. Houve e há uma grande, e até abusiva, penetração da TV.Isso pode e deve ter norteado ou contribuído para a melhora de nossas produções. Faz (fez!) coisas maravilhosas. Reconheço. Agora, definir … é mto, não?
    Terceiro: se levarmos em conta a produção musical, num viés da brasileira, por exemplo, na TV aparece mto pouco do q há de melhor.

    PS 1: n tenho visto TV ultimamente. Sem o mínimo saco. Vou ao cinema, a shows, ao teatro e, com certeza, lucro mais.

    PS 2: como n falar dos seus parágrafos de uma só palavra? Arrasa, né?

    Meu beijo!

  3. Comentários de alguém que deve ter assistido, se muito, a quatro peças de teatro na vida:

    Imagino que as coisas funcionem diferente. Cinema é de um jeito, TV de outro, teatro de outro outro. Acho que é, guardadas as tais proporções, algo como desenhar com nanquim, pintar uma tela a óleo, usar acrílico ou aquarela.

    ***

    Outro dos meus “achismos”: tentar definir o que define a cultura de um país é questão de estatística, e essa é uma disciplina que eu ODIAVA na faculdade. Meu tio tinha um caseiro em sua roça (não era fazenda, era roça), o Zito, que não sabia que havia filmadora. Outro tio resolveu fazer um vídeo com ele. O cara achava que era máquina fotográfica e ficava imóvel. Quando viu o vídeo, pirou. Tudo bem que faz tempo, mas é sintomático.

    ***

    Acho que novela tem, sim, um alcance incrível. Muita gente usa a roupa tal porque a tal da Darlene se veste de tal jeito. Até o esmalte da figura imitam. Mas tomar algo como definitivo na definição da cultura de um país eu acho meio forte. Opiniões, opiniões…

    ***

    Eu gosto de ver TV. E vejo que, mesmo na TV aberta, aquela que alcança muita gente, a variação de temas é grande. Provavelmente a força maior seja das novelas. Quem são as mais fortes? As mexicanas ou as da Globo? Sei lá. Vejo de tudo, desde João Kléber ao chato do Jô Soares que, aliás, acho mais nojento que o primeiro. Tosqueira é comigo mesmo. Questão de personalidade, talvez. Mas cada um tem a sua, enfim. O que sei é que cada pessoa com quem converso – e as classes sociais dos meus “conversantes” variam – tem uma preferência diferente e uma visão diferente da coisa. Que bom que seja assim.

    ***

    Fiz estágio, quando ainda era estudante, numa favela. Taquaril. Lugar barra pesada, onde tem gente morando em barracos de lona ainda hoje. O que a gente pode falar da cultura dessas pessoas? Absolutamente nada. São vidas que não conhecemos. Portanto, evito generalizar.

    ***

    Volto ao Zito, aquele que achava que gravação de imagem em movimento não existia: para ele a cultura são os bois, as lendas da roça, as histórias de assombração. Para mim a cultura tem a ver com minha sensação de não ter lido, visto ou ouvido o que deveria, por achar que estou desperdiçando um prazer que poderia ter ou ter tido. Mas nem isso sei. Gosto de coisas toscas e talvez deva assumir isso. Como dizem por aí, cada um é cada um.

    ***

    E, para finalizar, tenha linguagem de TV, de cinema, de teatro ou do famigerado dia-a-dia, achei Olga, o filme, um porre. Gostei mais do livro.

  4. Mais, sobre João Kléber e Jô Soares, já que hoje cismei de dar uma de crítica de TV: o primeiro é mais engraçado, e disfarça menos seu lado “mundo cão”. O tal “eu sou o Soares educado na Suíça”, além de não fazer rir nem o dedo mindinho das mãos de um duplamente maneta, ainda posa de “o culto”. Seja cultura ou não, prefiro o primeiro.

  5. O texto pode ser o mesmo, mas a gramatica, os tempos e estrutura dramatica de teatro, cinema e televisão são completamente diferentes. Do mesmo texto saem produtos muito diferentes, pois as enfases devem respeitar a linguagem do meio. Um unico exemplo entre tantos: na TV voce tem trinta segundo para conquistar o espectador e deve criar ganchos antes dos comerciais pro cara voltar a te ver. No cinema e teatro não existe isso. Faz muita diferença. Quanto a hegemonia da TV, no caso brasileiro acho que é como comparar produto industrializado com artesanato, ou seja, produto de largo consumo com produto de melhor acabamento. Isso não exclui que a capacidade da TV de gerar produtos artesanais com otimo acabamento como uma miniserie, porem a logica no geral, é de produto industrial ainda nesse caso.

  6. Podemos dividir produções culturais em dois grupos: coisas boas e coisas ruins, que no teatro, cinema ou TV. Hoje é dia de Maria e Os Maias foram as duas últimas coisas boas da TV. Mas, como lembra o Flávio Prada, o caráter de produção industrial para as massas cria obstáculos comerciais para coisas mais elaboradas, que não necessariamente teriam público elitizado. Hoje é dia de Maria foi sucesso de crítica e público, superando todas as expectativas da Globo quanto à audiência.

  7. adorei OLGA, o filme. independente dos SUPORTES, uma coisas NOS FALAM mais que outras. sem dúvida, a TV é mais MEDÍOCRE por necessidade, atinge uma massa maior, anseia PÚBLICOS maiores. em cinema, teatro, via de regra (não falo de BLOCKBUSTERS), pode-se trabalhar com NICHOS, privilegiando temas, referências, até MANEIRISMOS que são do PÚBLICO-ALVO. hehehe… bem COMERCIAL esse PÚBLICO-ALVO, né? mas, voltando, entendo a crítica (ou boa parte dela) ter MALHADO olga. se fosse pra fazer uma CRÍTICA FORMAL, talvez fosse meio impossível não citar a TV (jornalismo vive meio de CLICHÊS, né?). mas eu adorei, vi excelentes interpretações, boa trilha (melosa, é certo, mas CASADA com as imagens), direção OK e um conjunto LACRIMOSO como, PORRA, quiseram fazer. eu chorei pacas!

  8. Ai… duplamente maneta é foi foda! Aí já deixa de ser maneta e vira outra coisa, né? hehehe
    Mas, como diz o Bia, ontem eu tava berba, com cérebro maneta. 🙂

  9. O Dia de Maria já vale a pena só pela atuação do Stenio Garcia. É impressionante como o coroa só melhora com o tempo, ao contrário do Fagundes que vai ficando canastra…

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