No Natal de 1914

O último sobrevivente aliado da trégua do Natal de 1914, durante a I Guerra Mundial, morreu ontem. Ele tinha 109 anos.

O episódio é um dos mais famosos da guerra: britânicos e alemães interromperam o morticínio, apertaram-se as mãos, trocaram pequenos presentes e até mesmo jogaram futebol no dia 25 de dezembro de 1914. Fãs dos Beatles conhecem o episódio, lembrado por Paul McCartney no videoclipe de Pipes of Peace. A trégua ressalta a imbecilidade da guerra e lembra que não é o povo que a quer. A guerra é decidida por gente que não morre nela.

Aquela trégua foi, provavelmente, o último suspiro da era vitoriana, em um momento de crise em que noções arcaicas de honra e humanidade eram subjugados, definitivamente, pelas novas armas de destruição em massa e por uma nova concepção de guerra. Vista assim, a trégua foi um anacronismo. Não havia mais espaço para o cavalheirismo em um mundo povoado por tanques, aviões e metralhadoras, um tempo em que as mortes causadas pelo homem, pela primeira vez na história ocidental, se contavam na casa das dezenas de milhões.

Costumamos nos lembrar, principalmente, da II Guerra Mundial. Pelas dimensões, pelos 60 milhões de mortos, pela exacerbação do mal contida no nazismo, e porque é relativamente recente. Mas a I Guerra, sob vários aspectos, foi a mais importante da história. Marcou a ruptura entre dois mundos diferentes, o final da era vitoriana e o início de um um novo tempo. Por mais aterradora que tenha sido a II Guerra, e mesmo levando em consideração que o mundo que emergiu dali era bem diferente, ela não forjou esse novo mundo: ele nasceu ali, nas trincheiras da Bélgica. Foi a I Guerra quem deu origem à União Soviética e elevou os Estados Unidos à categoria de potência econômica e bélica. Acima de tudo, foi a I Guerra que mostrou à humanidade que o horror podia não ter limites.

O mundo que emergiu da I Guerra era outro. Em 1914 os alemães saudaram os soldados que partiam para a frente de batalha com pétalas de flores. Eram ainda felizes descendentes de Frederico II da Prússia, ainda aqueles que viam na guerra um sentido para uma vida. 25 anos depois, os mesmos alemães olharam taciturnos suas tropas marchando em direção à Polônia. Não havia mais alegria ou orgulho. Eles já conheciam o horror da guerra. E essa transformação, essa perda definitiva da inocência — algo que não pertence apenas aos alemães, mas a toda a Europa; os franceses justificaram sua covardia em 1939 com essa lembrança — se deve a 1914.

No ano em que comemoramos os 60 anos da II Guerra, seria bom olhar um pouco mais para trás e lembrar das verdadeiras mudanças. A II Guerra Mundial, para quem a viu nascer, era pouco mais que o segundo turno da I, com um intervalo de 20 anos. Hitler, em parte, foi cria de Versalhes; e se a guerra do Holocausto e de Hiroshima chama a atenção pelos extremos de ódio e de capacidade de destruição a que se chegou, a primeira foi ainda mais importante por ter descortinado uma era de trevas possíveis, e todos então perceberam que os limites haviam acabado.

A morte do último sobrevivente aliado daquela trégua é também um lembrete de que, a cada dia que passa, mais e mais pedaços de um passado não tão distante desaparece. O mundo vitoriano pode ter acabado em 1914, mas enquanto houver sobreviventes daquela trégua, daquele pequeno momento de sanidade em meio à barbárie, ele ainda é mais que umas letras arrumadas em um livro qualquer de história, ainda que apenas nas lembranças de uns poucos. E talvez seja essa a sua verdadeira importância.

(A foto deste post faz parte de uma belíssima coleção de fotos coloridas da I Guerra.)

10 thoughts on “No Natal de 1914

  1. Que bela história. E, para provar o que você escreveu, que quem decide a guerra não morre nela, traduzi um trecho do Wikipedia:

    “Comandantes britânicos Sir John French e Sir Horace Smith-Dorrien juraram que tal trégua não aconteceria novamente. Em todos os anos subsequentes da guerra, bombardeios de artilharia foram ordenados na véspera de Natal, para garantir que tal bonança não se repetisse em combate.(…)Apesar dessas medidas, ainda houve alguns encontros amigáveis entre soldados inimigos, mas em escala muito menor que no ano anterior.”

    Abraço.

  2. Belo post, e bela história.

    Entrementes, esta história da trégua de Natal, que eu não conhecia, evoca neste espírito pós-vitoriano e já enrijecido pelo mundo da Guerra Total algumas lembranças de Raul Solnado… 🙂

  3. Simbolicamente, teu post está perfeito. Mas os soldados – alemães e outros – embarcados para a Sitzkrieg foram festejados, sim.

  4. Thuin, não foram, não.

    Entre os relatos que descrevem o desfile em Berlim e a falta de entusiasmo dos alemães, pode dar uma olhada em “Diário de Berlim”, de William Shirer. Além de ser em primeira pessoa, foi escrito no calor do momento.

  5. Eu já conhecia esse episódio…
    Esse teu post me fez lembrar de uma das últimas cenas de “O Último Samurai” na qual o último combatente corre, espada em punho, contra a milícia e é transformado numa peneira humana pelas recém compradas metralhadoras. Acho que é bem esse o clima de “Fim da Era Vitoriana”, ninguém luta por si, ninguém luta com honra, tudo acontece por “interesses maiores”…

  6. Na verdade o mundo antigo, a bélle époque morreu, ou melhor, naufragou dois anos antes do assassinato em Serajevo com o naufrágio do Titanic.

    Os limites, todos eles, morreram ou começaram a morrer naquele episódio, por mais sutil que ele tenha sido diante do que viria depois.

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