Quem leu Monteiro Lobato na infância — não, quem leu “O Minotauro” quando era criança não pode ter deixado de sentir uma vontade imensa de conhecer Atenas, por causa da descrição que ele faz daquele mundo. É mágico: Péricles e Aspásia, Sócrates e Alcebíades. Estão todos lá, os nomes que a civilização ocidental pronuncia com respeito há 2500 anos.
A minha Atenas não era a de Sócrates e Aristóteles, ou mesmo de Sófocles e Aristófanes; era a de Péricles e Alcibíades e Temístocles, mas principalmente a de Fídias e Ictinos, a representação concreta e palpável de uma era curta — pouco mais de 50 anos — em que o Homem finalmente chegou ao seu ápice, pelo menos até aquele momento.
Conhecer Atenas se torna um desejo importante, nesse caso. Aí você quebra a cara.
É pior se você dá o azar de chegar pelos aviões da Olympia, sucatas que parecem os aviões da Vasp em fim de carreira e onde as aeromoças vendem cigarros americanos, muambeiras a 8 mil pés de altitude. Os aviões dão a impressão de estar remendados, e você acha que segurar o bicho para ele não desmontar quando pousa é um dever cívico, quando não um simples exercício de sobrevivência.
Vista do alto, Atenas é um amontoado de prédios pequenos e brancos, sempre brancos, que se espalha sobre terreno irregular ao pé de montanhas pedregosas, como um câncer em estado avançado de metástase. São prédios de cinco ou seis andares, com varandas que vão de um extremo a outro onde senhoras estendem a roupa lavada. É só mais uma cidade turca, em sua arquitetura mediterrânea.
Mas não é isso que você vai ver em Atenas. São os vestígios de sua época de ouro.
Se em Roma o acúmulo de 2000 anos de história lhe faz encontrar uma maravilha após a outra, o melhor resumo da história ocidental, em Atenas os restos mirrados se espalham com timidez, duas colunas enegrecidas pela poluição perdidas no caminho para o Pireu, ou o exemplo mais melancólico de todos, o Muro de Temístocles.
Essa sempre foi uma de minhas passagens preferidas da Idade de Ouro de Atenas. Logo após o fim das guerras persas, vencidas pela frota ateniense, pela infantaria espartana e pela inteligência de Temístocles, os atenienses voltaram para sua cidade e a encontraram destruída. Enquantro a reconstruíam, Temístocles decidiu construir uma muralha para proteger a cidade. Esparta protestou. Temístocles então aceitou ir até Esparta para discutir o assunto. Isso, claro, enquanto ganhava tempo e a construção terminava. Os espartanos não gostaram nem um pouco de ser enrolados por Temístocles, e algumas décadas mais tarde, vencendo a Guerra do Peloponeso, demoliram a muralha.
Sem o Muro de Temístocles talvez não houvesse o século de Péricles. Mas hoje suas fundações são uma mera atração menor na escada entre o lobby e o restaurante de um hotel, o Divanis Acropolis, protegidas por uma parede de vidro, pobres e isoladas de qualquer significado. Um pedaço da história do mundo indevidamente privatizado para hóspedes, diminuído além do aceitável. O que restou do Muro parece um macaco na jaula, com toda a sua melancolia — a única diferença é que o muro não se masturba na sua frente.
O Fórum Romano, ainda que em ruínas, oferece um visão vívido do que foi o Império Romano, dá a sensação de um conjunto orgânico. É impossível visitar o Coliseu e não imaginar os mecanismos que ofereciam, a uma população cada vez mais embrutecida, espetáculos incrivelmente sofisticados (e sanguinários). Mas Atenas é apenas um amontoado de cacarecos caindo aos pedaços, perdidos em meio a uma cidade feia. Há mais Atenas no British Museum do que em Atenas.
Em Paris você pode se perder pelos bulevares e vielas, pode virar uma esquina desavisadamente e dar de cara com a casa onde morou Moliére. Pode simplesmente sair andando sem direção, sentindo a atmosfera da cidade. Mas tentar fazer isso em Atenas é uma temeridade, e os letreiros que mais lembram fórmulas matemáticas fazem com que você se arrependa de não ter aprendido matemática no colégio; porque talvez você assim tivesse uma chance, e em vez disso você se sente um analfabeto disléxico, e arriscar qualquer coisa em seu inglês ou francês vagabundos lhe deixa com a impressão de que o mundo é cheio de idiotas que não lhe compreendem, e então você finalmente se dá conta de que o idiota é você, em primeiro lugar por ter ido àquele buraco, e volta derrotado ao hotel.
E você volta para ser roubado por um bando de japoneses. Me roubaram um livro de Dashiell Hammett lá, livro que eu tinha comprado na Shakespeare & Co. Foram uns japoneses miseráveis, eu tenho certeza. Você sabe que há japoneses por perto por causa do clique-clique incansável das máquinas, e o barulho deles no hotel me distraiu e eu esqueci o livro no lobby e algum desgraçado daqueles tirou os olhos de sua máquina fotográfica e passou os cinco dedos no meu livro em vez de deixar na recepção.
Mas há a Acrópole, claro. Talvez ela compense tudo isso, e de lá, diante do Parthenon e do templo de Posseidon, você vê ao longe o templo de Hefaístos e o Areópago, de onde São Paulo pregou aos ouvidos debochados dos atenienses; mas se o Parthenon compensa aquela grande decepção, só compensa uma vez, nenhuma mais.
Da próxima vez em que eu quiser visitar Atenas eu vou fazer uma viagem igual à que Des Esseintes, do “Às Avessas” de J.-K. Huysmans, faz à Inglaterra. Ele vai a um restaurante inglês em Paris, e comendo a comida inglesa e olhando caras inglesas, e juntando tudo à leitura de alguns livros de Dickens, ele tem toda a experiência intelectual de que precisa, e pode criar memórias tão verdadeiras quanto se fosse lá; talvez mais, até.
Há um restaurante grego no início da Saint André des Arts, com decoração saída diretamente de um pesadelo de Zorba, que o faz parecido com um autêntico puteiro sergipano. Vou até lá comer aquela comida horrorosa, mas antes assisto a um documentário qualquer, desses da BBC de Londres, sobre a grande Atenas de Péricles. E minhas lembranças dessa viagem serão mais verdadeiras que quaisquer outras, enquanto caminho até a Pont Neuf.