Se não podes ser minha, não serás de ninguém

Agora eu sei por que o Bia fez aquelas barbaridades com a Hello Kitty.

Entendi, finalmente, a razão para que ele desse vazão aos seus sentimentos mais torpes e inconfessáveis, os motivos pelos quais ele tomou de um símbolo de pureza infantil (melhorado, porque não tem boca para encher o saco) e o transformou em sua Geni, no objeto emporcalhado e gosmento de suas depravações esconsas.

Foi ciúme, insensato e desvairado, ciúme da pobre Hello Kitty que preferiu o belo umbigo da Kau às perversões esconsas daquele Quasímodo da alma.

Claro que o Bia vai dizer que não, que não é nada disso, que era apenas inveja pela Hello Kitty estar em um lugar onde ele gostaria de estar. Ele vai negar, eu sei. Mas também sei, como o Sombra, do mal que se esconde no coração dos homens. E agora tudo faz sentido.

O santo e o filósofo

Vi que a Companhia das Letras relançou “O Julgamento de Sócrates” de I. F. Stone, agora em edição de bolso, mais barata.

É um belo livro, principalmente por desmistificar alguns dos mitos que rodeiam o filósofo grego. Ao longo de 2500 anos, e dependendo de cada época, várias versões sobre as razões de sua morte circularam com uma certa desenvoltura, baseadas, é verdade, nas alegações da acusação. Uma diz que foi condenado a tomar cicuta por pregar contra os deuses gregos. Outra — versão mais corrente em tempos mais puritanos — dizia que “corrupção dos jovens atenienses” era apenas um eufemismo para o fato de ele ser “um velho sodomita que atacava jovens indefesos”.

O que o livro de Stone mostra é que os motivos para a morte de Sócrates foram políticos, não religiosos ou sexuais. Os gregos não podiam ligar menos para os seus deuses, uma comunidade heterogênea de assassinos, ladrões, cornos, ninfomaníacas e tarados. Pregar contra eles não significava muita coisa, e essa tradição de tolerância era tão forte que séculos mais tarde, decadente e em ruínas, Atenas recebeu São Paulo de maneira bem diferente das outras, onde era invariavelmente aplaudido ou expulso: simplesmente riu dele.

A taça de cicuta tampouco se deve ao prazer com Sócrates se deleitava com seus discípulos. A pederastia era, mais que aceita, incentivada pelos gregos, e a tradição cretense do harpaghè — o rapto ritualizado de um jovem por um homem mais velho — é uma prova disso, embora possa-se levar em conta o fato de que a civilização minóica era bastante diferente da ateniense; nesse caso pode-se citar a velha e boa Esparta e seus soldados amantes. Em todo caso, o que Sócrates fazia da sua bunda não era da conta de ninguém e ele certamente não teria que prestar contas por isso.

Mas os atenienses tinham muito orgulho de sua democracia. Além de uma experiência política brilhante, era esse sistema que possibilitava o crescimento intelectual e artístico da cidade-estado. O que Stone demonstra em seu livro é que o crime de Sócrates foi investir justamente contra essa democracia. E isso era intolerável.

O caso de Sócrates lembra outro, o de Santo Estêvão, o primeiro mártir cristão. Um dos sete primeiros diáconos escolhidos entre judeus de língua grega, tinha um ardor cristão tão grande — esse ardor revolucionário que costuma vaporizar o juízo dos fanáticos — que o fez declarar que o judaísmo deveria desaparecer para dar lugar ao cristianismo, então apenas uma seita judaica. É a falta de tolerância típica do cristianismo (ironicamente herdada do judaísmo e aprimorada), que mais tarde evoluiria e tentaria fazer o mesmo com praticamente todas as outras religiões com que tivesse contato. O cristianismo é uma cortesã bela e fútil que não admite concorrência.

Estevão foi levado ao sinédrio. Considerando-se que esse mesmo sinédrio já tinha dado fim a outro barbudinho, um tal de Jesus, condenar um zé-ninguém chamado Estevão sei-lá-das-quantas era moleza. Como o governador romano não estava em Jerusalém, o povo com pressa se encarregou do caso e tacou pedra nos cornos de Estevão. Entre os presentes ao apedrejamento estava um jovem fariseu chamado Saulo de Tarso, que mais tarde seria ofuscado por uma luz esquisita na estrada de Damasco.

Há um paralelo interessante entre as mortes de Sócrates e de Santo Estevão. Ambos foram mortos pelo regime em que viviam, que lhes possibilitava a formação de um sistema de pensamento próprio e livre e que preferiam ver extinto. Nos dois casos, foram mortes que, à luz do sistema legal em que viviam, devem ser consideradas justas. A queda de Atenas, no caso de Sócrates, e a supremacia do cristianismo, no caso de Estevão, se encarregariam de recuperar suas reputações.

A volta de “O Julgamento de Sócrates” às livrarias é um bom motivo para ler um pouco mais sobre um dos acontecimentos mais importantes da história mundial. Ao perfil de pedra fundamental da filosofia ocidental é acrescentado um aspecto mais sombrio: o oligarca elitista que sentia pouco à vontade em um regime em que sua classe tinha absoluta liberdade, um sujeito com profundas aspirações autoritárias e anti-democráticas, se me lembro bem de um livro lido há mais de 15 anos. É um livro que, definitivamente, vale a pena.

Marmelada, Edkallen, marmelada

Só pode ser provocação, só pode.

A gente passa uns diazinhos longe do mundo, aí vem o Edkallen sacanear. Vem e diz que alguém fez uma eleição esquisita para escolher a maior banda de rock de todos os tempos, e o resultado foi Pink Floyd em primeiro lugar, seguido pelo Led Zeppelin, Rolling Stones e The Who. Os Beatles não entraram sequer entre os 10 primeiros.

Curioso. Para ficar apenas nas quatro primeiras bandas, o fato é que todas foram maiores e mais influentes que os chatos do Pink Floyd. Até hoje se ouve ecos de sua música, de um jeito que o PF jamais conseguiu.

Certo, os órfãos de Syd Barrett têm muitos fãs. A Banda Calypso também. Mas nunca fizeram o sucesso comercial do Led Zeppelin, por exemplo. Comercialmente os anos 70, década em que o PF fez mais sucesso, foram do Led Zep e dos Wings de Paul McCartney (sem contar sucessos menos influentes, como Peter Frampton, Bay City Rollers, etc.). Os chatos do PF apenas ocuparam um pequeno nicho, que aliás ocupam até hoje — o Dark Side of The Moon ficou mais de 500 semanas nas paradas de sucesso. Talvez esse nicho aumente ou diminua de acordo com a oferta de cannabis no mercado, mas é um nicho consistente e regular.

Acontece que não é isso que conta. É a capacidade de uma banda de influenciar o som de uma época e das seguintes. Nesse caso, falar dos viciadinhos de Mick Jagger é covardia. Se alguma dessas 10 bandas merece o título, são os Rolling Stones. Seguida pelo Who e pelo Led Zep. São bandas que deixaram um legado muito maior que os maluquetes edipianos. Virtualmente todas as bandas de rock do mundo devem algo a essas duas bandas. Mick Jagger e Robert Plant definiram o physique du rôle do cantor de rock. Pete Townshend e Keith Richards sedimentaram o papel do guitarrista. Roger Waters só encheu o saco com seus lamentos e sua fraude intelectual — dizer que “nós não precisamos de educação” é cuspir no prato que comeu, porque foi a reforma educacional da Inglaterra no pós-guerra que possibilitou a grande explosão do rock um pouco mais inteligente naquelas plagas.

Mas isso era de se esperar. Basta olhar para os outros colocados. Guns ‘n’ Roses. Bon Jovi. Essa votação foi certamente feita por gente que descobriu o rock através das Spice Girls e de Rick Astley.

O horror. O horror e a decadência.

…E no terceiro dia

Em 1980, os Beatles já tinham deixado de pertencer ao imaginário popular. Se hoje eles são um mito, na época eram apenas uma grande banda que tinha acabado.

Aqueles eram os anos da discoteca. Quem não viveu aquilo, ainda que marginalmente, não tem idéia do que era. Disco music era o verdadeiro mainstream, e as pessoas lotavam discotecas e se vestiam como Tony Manero; pior, tentavam dançar como ele, sem conseguir.

O rock, por sua vez, tinha passado por outras ondas, como o progressivo e o punk. Para os poucos que ainda ouviam a música dos anos 60, que não perdiam tempo com os Bay City Rollers, os Wings de Paul McCartney ofereciam um substituto quase aceitável. Mas os grandes nomes da época eram Led Zeppelin e Peter Frampton. Os Beatles eram passado, mais do que nunca. Pensando bem, é assim que as ocisas devem ser.

Mas então apareceu Mark David Chapman e deu cinco tiros nas costas de John Lennon.

Em 1980, John Lennon era um artista decadente. Antes de se retirar de cena, em 1975, seus discos vinham vendendo cada vez menos — e as críticas, depois de um início promissor com duas obras-primas, eram cada vez mais negativas. Seu álbum de retorno, Double Fantasy, vinha tendo péssimas vendas; talvez porque, depois de um hiato de 5 anos, as pessoas esperassem que o “beatle avant garde” aparecesse com algo realmente novo, e não com o pastiche dos anjos 50 que apresentava ali.

Os tiros de Chapman se encarregaram de criar um mito. E assim como as vendas do Double Fantasy dispararamn a partir dali, o ostracismo dos Beatles começou a chegar ao fim.

Mas não foi só por isso. Era preciso algo mais. E esse algo mais foi uma hecatombe chamada “anos 80”.

Os anos 80 foram a década em que os protagonistas dos anos 60, sem exceção, viraram dinossauros anacrônicos. Por exemplo, com a discutível exceção de Tattoo You, os Rolling Stones não lançaram um disco sequer aceitável naquela década miserável. Mas eles morreram de fato quando os Sex Pistols apareceram gritando por anarquia no Reino Unido. O vínculo emocional que existia entre os artistas dos anos 60 e seu público, e que fez daquela década algo especial, acabava ali. Eles não tinham mais o que dizer.

Mas o enterro, mesmo, foi nos anos 80.

O mais curioso é que os ídolos dos anos 70 seguiram o mesmo caminho, cedo demais. Seria de se esperar que durassem pelo menos dez outros anos, assim como o pessoal dos anos 60. Mas tão rapidamente como surgiram, eles sumiram — infelizmente não antes que o Clash definisse o som da nova década com Rock the Casbah, assim como os Beatles definiram os 60 com Please Please Me. Foi esse vazio, criado pelo conjunto de fim dos grandes e a morte de John Lennon — que é única por não ser o final de um exercício aplicado de auto-destruição como as mortes de Joplin ou Jim Morrison, mas uma agressão gratuita e inexplicável — quie possibilitou a volta dos Beatles.

O fato de os Beatles passarem a ser venerados a partir dos anos 80 não é exatamente um reconhecimento de sua grandeza; esse reconhecimento veio 20 anos antes, por gente boa como Leonard Bernstein. É, antes de tudo, o sinal de que um vazio muito grande existia naquela década perdida.

Aquela cidade no fim do mundo

Quem leu Monteiro Lobato na infância — não, quem leu “O Minotauro” quando era criança não pode ter deixado de sentir uma vontade imensa de conhecer Atenas, por causa da descrição que ele faz daquele mundo. É mágico: Péricles e Aspásia, Sócrates e Alcebíades. Estão todos lá, os nomes que a civilização ocidental pronuncia com respeito há 2500 anos.

A minha Atenas não era a de Sócrates e Aristóteles, ou mesmo de Sófocles e Aristófanes; era a de Péricles e Alcibíades e Temístocles, mas principalmente a de Fídias e Ictinos, a representação concreta e palpável de uma era curta — pouco mais de 50 anos — em que o Homem finalmente chegou ao seu ápice, pelo menos até aquele momento.

Conhecer Atenas se torna um desejo importante, nesse caso. Aí você quebra a cara.

É pior se você dá o azar de chegar pelos aviões da Olympia, sucatas que parecem os aviões da Vasp em fim de carreira e onde as aeromoças vendem cigarros americanos, muambeiras a 8 mil pés de altitude. Os aviões dão a impressão de estar remendados, e você acha que segurar o bicho para ele não desmontar quando pousa é um dever cívico, quando não um simples exercício de sobrevivência.

Vista do alto, Atenas é um amontoado de prédios pequenos e brancos, sempre brancos, que se espalha sobre terreno irregular ao pé de montanhas pedregosas, como um câncer em estado avançado de metástase. São prédios de cinco ou seis andares, com varandas que vão de um extremo a outro onde senhoras estendem a roupa lavada. É só mais uma cidade turca, em sua arquitetura mediterrânea.

Mas não é isso que você vai ver em Atenas. São os vestígios de sua época de ouro.

Se em Roma o acúmulo de 2000 anos de história lhe faz encontrar uma maravilha após a outra, o melhor resumo da história ocidental, em Atenas os restos mirrados se espalham com timidez, duas colunas enegrecidas pela poluição perdidas no caminho para o Pireu, ou o exemplo mais melancólico de todos, o Muro de Temístocles.

Essa sempre foi uma de minhas passagens preferidas da Idade de Ouro de Atenas. Logo após o fim das guerras persas, vencidas pela frota ateniense, pela infantaria espartana e pela inteligência de Temístocles, os atenienses voltaram para sua cidade e a encontraram destruída. Enquantro a reconstruíam, Temístocles decidiu construir uma muralha para proteger a cidade. Esparta protestou. Temístocles então aceitou ir até Esparta para discutir o assunto. Isso, claro, enquanto ganhava tempo e a construção terminava. Os espartanos não gostaram nem um pouco de ser enrolados por Temístocles, e algumas décadas mais tarde, vencendo a Guerra do Peloponeso, demoliram a muralha.

Sem o Muro de Temístocles talvez não houvesse o século de Péricles. Mas hoje suas fundações são uma mera atração menor na escada entre o lobby e o restaurante de um hotel, o Divanis Acropolis, protegidas por uma parede de vidro, pobres e isoladas de qualquer significado. Um pedaço da história do mundo indevidamente privatizado para hóspedes, diminuído além do aceitável. O que restou do Muro parece um macaco na jaula, com toda a sua melancolia — a única diferença é que o muro não se masturba na sua frente.

O Fórum Romano, ainda que em ruínas, oferece um visão vívido do que foi o Império Romano, dá a sensação de um conjunto orgânico. É impossível visitar o Coliseu e não imaginar os mecanismos que ofereciam, a uma população cada vez mais embrutecida, espetáculos incrivelmente sofisticados (e sanguinários). Mas Atenas é apenas um amontoado de cacarecos caindo aos pedaços, perdidos em meio a uma cidade feia. Há mais Atenas no British Museum do que em Atenas.

Em Paris você pode se perder pelos bulevares e vielas, pode virar uma esquina desavisadamente e dar de cara com a casa onde morou Moliére. Pode simplesmente sair andando sem direção, sentindo a atmosfera da cidade. Mas tentar fazer isso em Atenas é uma temeridade, e os letreiros que mais lembram fórmulas matemáticas fazem com que você se arrependa de não ter aprendido matemática no colégio; porque talvez você assim tivesse uma chance, e em vez disso você se sente um analfabeto disléxico, e arriscar qualquer coisa em seu inglês ou francês vagabundos lhe deixa com a impressão de que o mundo é cheio de idiotas que não lhe compreendem, e então você finalmente se dá conta de que o idiota é você, em primeiro lugar por ter ido àquele buraco, e volta derrotado ao hotel.

E você volta para ser roubado por um bando de japoneses. Me roubaram um livro de Dashiell Hammett lá, livro que eu tinha comprado na Shakespeare & Co. Foram uns japoneses miseráveis, eu tenho certeza. Você sabe que há japoneses por perto por causa do clique-clique incansável das máquinas, e o barulho deles no hotel me distraiu e eu esqueci o livro no lobby e algum desgraçado daqueles tirou os olhos de sua máquina fotográfica e passou os cinco dedos no meu livro em vez de deixar na recepção.

Mas há a Acrópole, claro. Talvez ela compense tudo isso, e de lá, diante do Parthenon e do templo de Posseidon, você vê ao longe o templo de Hefaístos e o Areópago, de onde São Paulo pregou aos ouvidos debochados dos atenienses; mas se o Parthenon compensa aquela grande decepção, só compensa uma vez, nenhuma mais.

Da próxima vez em que eu quiser visitar Atenas eu vou fazer uma viagem igual à que Des Esseintes, do “Às Avessas” de J.-K. Huysmans, faz à Inglaterra. Ele vai a um restaurante inglês em Paris, e comendo a comida inglesa e olhando caras inglesas, e juntando tudo à leitura de alguns livros de Dickens, ele tem toda a experiência intelectual de que precisa, e pode criar memórias tão verdadeiras quanto se fosse lá; talvez mais, até.

Há um restaurante grego no início da Saint André des Arts, com decoração saída diretamente de um pesadelo de Zorba, que o faz parecido com um autêntico puteiro sergipano. Vou até lá comer aquela comida horrorosa, mas antes assisto a um documentário qualquer, desses da BBC de Londres, sobre a grande Atenas de Péricles. E minhas lembranças dessa viagem serão mais verdadeiras que quaisquer outras, enquanto caminho até a Pont Neuf.