Quando o rock realmente fez a diferença

A Barracuda acaba de lançar um livro fascinante: “Rádio Guerrilha – Rock e Resistência em Belgrado”, do jornalista inglês Matthew Collin.

O livro conta a história da rádio B92, de Belgrado, Sérvia, que durante a guerra dos Bálcãs representou um oásis de oposição e de sanidade. Ou melhor, conta a história da região em seus piores momentos: a desintegração da Iugoslávia, a guerra civil que destruiu as repúblicas separadas e desonrou o próprio conceito de barbárie, e o crescimento do crime organizado — tudo isso sob a perspectiva da B92.

Rádio que misturava um jornalismo ousado e crítico com música de vanguarda — o que havia de melhor na Europa da época — e com um humor de alta qualidade pela sua ferocidade, falta de limites e inteligência, a B92 era principalmente a obra de um desses raros rebeldes com causa: Veran Matic. A história de “Rádio Guerrilha” é, principalmente, a história de Matic e idealistas como ele, que tiveram a coragem de antepor, a um criminoso genocida como Slobodan Milosevic, a voz da rebeldia e da resistência.

A B92 de Matic só foi possível pelo caráter mais aberto do regime iugoslavo. Porque a crítica política era tolerada, mas principalmente pela abertura cultural singular do país, orgulhoso de sua posição superior aos demais países do Leste Europeu. Porque seus integrantes conseguiam juntar às evidentes conquistas sociais do regime de democracia populares as qualidades do capitalismo europeu.

Por isso, curiosamente, a B92 já nasceu anacrônica. Seus integrantes foram formados na oposição ao regime socialista, uma oposição de caráter principalmente econômico e cultural. Faziam oposição a algo sólido, perfeitamente identificável. Sabiam a que se opunham, e — curiosamente graças às eventuais qualidades desse regime — sabiam como se opor. No entanto, aquele era um momento que já havia passado, embora ninguém tivesse percebido isso. O que se gestava, naquele momento, era a tragédia de uma das guerras mais cruéis dos últimos tempos. Algo que ninguém podia esperar, e que se caracteriza, principalmente, pela confusão de valores e pela irracionalidade.

Paradoxalmente, foi justamente esse anacronismo, essa qualidade ética e clareza de conceitos na forma de fazer oposição, que fez da B92 um instrumento fundamental durante a crise de desintegração da Iugoslávia. Foi o que lhe deu a perspectiva necessária para enfrentar a escalada do nacionalismo e do terror na Sérvia e nas outras repúblicas balcânicas.

O resultado é uma história fantástica de coragem. A B92 representou, durante cerca de dez anos, a voz da razão em uma região caótica. A B92 soube ser séria sem perder, em nenhum momento, o bom humor, e é isso que faz da sua história algo muito interessante de ser contado.

O autor, Matthew Collin, correspondente de publicações como The Face, tem defeitos, claro. Sua prosa, em alguns poucos momentos, é excessivamente pop. Política não é exatamente a sua área de especialização, ao que parece, e às vezes essa deficiência leva a conclusões e análises talvez simplistas. Nada disso, no entanto, tira os muitos méritos do livro. Acima de tudo, “Rádio Guerrilha” é uma reportagem rigorosa e bem escrita sobre um momento fascinante da história recente, sob o ponto de vista da cultura pop. A decadência do socialismo no Leste Europeu, a ascensão do crime organizado para ocupar o vácuo criado por um capitalismo incipiente, as circunstâncias e a bestialidade que levam à guerra civil. Mas, principalmente, o livro relata o horror de viver essa guerra, e sua influência deletéria sobre toda uma geração e a sua relação com a sua própria identidade.

Talvez esteja aí sua grande qualidade: contar uma história complexa de forma simples, tendo por eixo elementos de fácil compreensão como a música pop e o humor. E Collin nunca perde de vista a dimensão humana de uma tragédia de proporções épicas.

“Rádio Guerrilha – Rock e Resistência em Belgrado” mostra que a música popular, quando aliada a uma ação política séria, pode realmente fazer diferença. Longe da rebeldia de butique, a B92 foi a prova de que conceitos que pareciam anacrônicos ao rock and roll, como rebeldia e contestação, podem assumir uma dimensão heróica e, finalmente, verdadeira.

Mais informações sobre o livro podem ser encontradas aqui.

3 thoughts on “Quando o rock realmente fez a diferença

  1. Essas rádios alternativas são importantes. Mesmo em momentos não tão extremos. As FMs norte-americanas, por exemplo, tiveram um papel importantíssimo para divulgar o que as rádios AM desprezavam. Gente como Janis, Hendrix, Traffic, Graeteful Dead, Jefferson Airplane, Pink Floyd, conseguiram decolar, em grande parte, graças a elas.
    gd ab

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