It was twenty years ago today

Uma vizinha está ouvindo rádio. Deve ser a empregada, porque ninguém escuta rádio por aqui. Com exceção de programas noticiosos, rádio — ainda mais a uma altura dessas — é coisa que só se ouve no carro ou na cozinha.

Por alguma razão resolveram fazer um especial dos anos 80. Já ouvi New Edition (Is this the eeeend?), Berlin (Take my breath awaaaay), Culture Club (Mistake #3), Stevie Wonder (I Just Called to Say I Love You) Chris DeBurgh (The Lady in Red) e uma canção que assolou o Brasil em 1986, Yes, cujo cantor era um picareta brasileiro que fingia ser gringo, adotou o nome de Tim Moore e enrolou boa parte do Brasil; o Bia lembra dele bebendo caipirinha no camarim, antes de um show em Americana, enquanto resmungava: “Merda de cidade…”

A música de 20 anos passados interrompeu o Caruso que eu estava ouvindo. Não só por tocar mais alto, mas porque é um aviso de que estou ficando velho; lembro de quando essas músicas eram tocadas durante a programação normal, e não no que parece ser uma espécie de “Especial Para Caquéticos”. Essas notas musicais, boa parte das quais detestadas por mim já na época, me lembram também que quando cada geração chega à maturidade costuma usar a mídia para contar uma visão edulcorada de como os seus velhos tempos eram bons. Assim os anos 50 deram American Grafitti no início dos 70 e tudo o que se seguiu depois — Grease, Happy Days, e um revival completo nos anos 80. Era a visão tipicamente americana de um passado pretensamente dourado que o resto do mundo foi obrigado a engolir. Mais apropriadamente, era a saudade da classe média branca americana dos bons tempos de Eisenhower.

Antigamente demorava-se cerca de 15 anos (ou 3 gerações de consumidores) para que uma geração fosse entupida de lembranças cor-de-rosa, e muitas vezes falsas, de outra. Mas os órfãos dos anos 80 começaram cedo, porque ultimamente a juventude tem chegado chegado mais cedo ao poder. O primeiro sinal de recaída de que me lembro foi um filme com o John Cusack, Grosse Pointe Blank. Agora aqui e ali pipocam referências. Boa parte da revista Flashback, que conta com os textos brilhantes do Ina, é composta disso, de lembranças de uma década que, sabe Deus como, conseguiu definir uma identidade própria a partir de retalhos de décadas passadas.

Tudo isso me lembra quão ruins foram os anos 80.

Que ninguém me entenda mal. Não é que não goste deles. Tenho boas lembranças daqueles tempos, no fim das contas: foi nessa década que passei a adolescência e, como diz o Roger Ebert, a adolescência é o período mais miserável na vida de uma pessoa, embora depois nos lembremos dela com saudade. Com o tempo, as pessoas transformam experiências terríveis como andar a pé, fazer sacanagem na cama dos pais da namorada ou rodar a cidade atrás de mulher em boas lembranças, de um tempo que já passou.

Mas que os anos 80 foram uma droga, foram.

***

Há algo de muito errado na ordem cósmica quando os dois maiores ícones de uma geração são Madonna e Michael Jackson. Este a gente já sabe no que deu, mas não vamos ser injustos creditando sua degradação aos últimos tempos: ele nos avisou do que vinha pela frente. Nos anos 80 o sujeito usava uma jaqueta de couro vermelho e uma luvinha branca e brilhosa na mão, com o cabelo eternamente solto e molhado por uma tonelada de gel; algum ingênuo esperava que ele melhorasse?

Quanto a Madonna, cada vez que vejo as roupas que ela usava fico com duas sensações: a de reconhecimento, de ter feito parte daquela era, e a certeza de que aqueles são os trapos que usaria uma mulher sexualmente reprimida que pirou o cabeção e resolveu nos dar a sua versão ensandecida de uma puta. Isso pode ter lá seu significado social e histórico; aquele crucifixo sexualizado pode até ser uma ofensa aos puritanos americanos. Mas além de dizer pouco a brasileiros que há séculos se despedem de suas virgindades encostados no muro da igreja, tudo aquilo era absolutamente brega. Era como se quatro estilistas cafonas acumulassem, sobre a lourinha da voz esganiçada, os seus conceitos lisérgicos de mau gosto.

Um consolo é que as roupas da Madonna podem ter sido imitadas pelas adolescentes de miolo mole nos EUA da época, como a gente costuma ver nos filmes, mas aqui no Brasil éramos mais comportados. Isso não quer dizer, no entanto, que tivéssemos bom gosto. Ah, não. Os anos 80 foram a década do rosa-choque e do verde-limão, provavelmente as cores mais medonhas já criadas — tanto que a Mãe Natureza, que tem lá sua carga de bizarrices, não ousou criá-las –, e que, como se sua própria feiúra não fosse suficiente, normalmente eram usadas ao mesmo tempo. Foram a época dos jeans verdes, de estampas berrantes que chamavam de new wave e que vilipendiavam a memória do finado Godard, das ombreiras, e mais tarde das saias balonê. Os anos 80 foram uma década de confusão e mau gosto.

Mas as coisas sempre podem piorar, e pioravam. Talvez nada disso fosse pior que os blazers com mangas dobradas copiados de Miami Vice, ou as barbas por fazer inspiradas no Mickey Rourke de “9 1/2 Semanas de Amor” (provavelmente a maior fraude erótica de todos os tempos). Como dizia uma antiga música de McCartney, no one left alive in 1985. Nos anos 80, era in ter cara de traficante cubano vagabundo da Jecolândia.

E os cabelos. Os cabelos. Mulheres com cortes que lembravam poodles epilépticos; homens com cabelos curtos mas compridos atrás, moda lançada a nós botocudos pelo Evandro Mesquita. As jubas piolhentas e embaraçadas dos hippies, em comparação, pareciam muito melhores; pelo menos exprimiam uma atitude. Não que aquele corte oitentista não tivesse nenhuma; o problema era saber qual.

Deus do céu, como é que alguém pode ter saudade daquilo?

***

Fãs dos anos 80 costumam lembrar de bandas como Smiths e U2 para mostrar que aquela, afinal, não foi a década perdida.

Duas bandas.

Acho que consigo lembrar de mais: Poison, Mötley Crue, Menudo, A-ha, Mr. Mister, Dominó, Tremendo, Dr. Silvana, Olivia Newton-John, Toto.

Chega. Bastam esses para lembrar que foi preciso que o grunge aparecesse para que a música pop fosse resgatada de um longo e tenebroso inverno.

Mas o que se poderia esperar de uma década que começou com um maluco dando cinco tiros em John Lennon?

***

Os anos 70 foram a década em que surgiram cineastas como Martin Scorsese e Francis Ford Coppola. Os anos 80 foram a década de John Hughes.

(Deixa-se aqui de lado a estética publicitária no cinema patrocinada pelos irmãos Ridley e Tony Scott e outros; isso é terrível demais para ser abordado assim, sem aviso.)

Alguns dos maiores sucessos da época foram dirigidos ou escritos por Hughes. “A Garota de Rosa Shocking”, “Gatinhas e Gatões” e “Curtindo a Vida Adoidado” são alguns dos filmes aos quais a gente recorre quando quer lembrar do que foram aqueles anos miseráveis.

(The Breakfast Club, talvez o filme mais “cabeça” dessa fornada, tinha originalmente duas horas e meia de duração. O estúdio, achando que ia ser um fracasso, cortou 50 minutos. O resultado é o único filme do Hughes que poderia ser bom, mas que parece episódico demais; essa é a explicação que encontro para rever o filme e achá-lo ruim.)

Não é que eu não goste desses filmes. Todos eles têm a capacidade de me lembrar uma época que vivi e que já passou há muito tempo. Queira ou não, eu estava presente aos anos 80.

Mas o fato de gostar de Some Kind of Wonderful, por exemplo, não faz com que ele se transforme miraculosamente em bom cinema. O melhor que se pode dizer desses filmes é que eles retratavam a juventude da época. Certo, e “Barrados no Baile” retrataria a juventude dos anos 90 nos mesmos termos. Além disso, é bom lembrar que “Sabrina”, “Júlia” e “Bianca” também retratam o amor. O problema é que “Sabrina” et al não são exatamente um soneto de Shakespeare, e juventude por juventude é melhor dar uma olhada no que Nicholas Ray andou fazendo 30 anos antes. Um antropólogo que tentasse compreender a juventude dos anos 90 a partir de “Barrados no Baile” concluiria que éramos todos todos estudantes lindos e ricos; se fizer o mesmo com os filmes de John Hughes vai ter a certeza de que éramos um bando de alienados fúteis com algum problema no juízo.

(E então lembro da diva dos anos 80: Molly Ringwald. A garota de rosa-choque. Diva adequadíssima à época: insípida, insossa, inodora. Nunca entendi por que investiram nela em vez de em delícias como Kelly Preston, cuja cena nua em “A Primeira Noite de Jonathan” é a única coisa que presta em um filme bobo. De qualquer forma, hoje ninguém ouve falar em Molly Ringwald. Tudo o que sei da ruiva é que mal começaram os anos 90 e a tonta cometeu duas grandes bobagens: dispensou os papéis principais de “Uma Linda Mulher” e de “Ghost”. As atrizes que fizeram esses filmes todo mundo sabe onde estão. Mas duvido que alguém saiba onde anda Molly Ringwald. Sumiu, coitada, como os anos 80 deveriam ter sumido.)

As pessoas podem até ter saudades dos anos 80. Acho que eu tenho, também. Mas isso deve ser uma versão degenerada da síndrome de Estocolmo. Talvez os anos 80 tenham sido tão ruins que as pessoas se acostumaram. Ou, o que é mais provável, do que as pessoas têm saudades é de um tempo em que eram melhores do que o que se tornaram. E nesse caso, não é dos anos 80 do que têm saudades. Elas têm saudades é de si mesmas.

Originalmente publicado em 30 de junho de 2005

Um bandido chamado Lampião

Lampião e seu bando chegaram à fazenda de Z. no interior de Sergipe. Pediram abrigo, dinheiro, as coisas que sempre pediam. Ou exigiam.

Z. se recusou ou não tinha o suficiente, não sei, e os cangaceiros fizeram a festa. Não gostaram de algo que C., mulher de Z., falou, ou o jeito como olhou — porque quando se estava diante dos cangaceiros todo respeito era pouco. Lampião então pegou uma palmatória e lhe deu seis “bolos” na mão.

“E agora?”, perguntou Lampião.

“É só isso?”, perguntou C., tentando controlar a raiva.

Lampião lhe deu mais seis bolos.

B., o filho mais novo do casal, acordado com a barulheira, estava perto da parede. Naquela época se dormia com camisolões. Um dos cangaceiros arremessou um punhal — espadins finos, com lâminas de cerca de 40 centímetros de comprimento — contra ele. O menino ficou pregado à parede pelo camisolão.

Lampião foi embora. Z. vendeu a fazenda por uma ninharia e se mudou dali.

***

Não há nada mais equivocado que tentar justificar o ciclo do cangaço a partir das condições sociais da época, e usá-las para evitar chamar Lampião pelo que ele era, bandido. Elas explicam, claro; mas não justificam nem amenizam seu caráter criminal.

É como justificar o fenômeno no tráfico no Rio de Janeiro. Com uma diferença: as tais “condições sociais” são muito mais graves no morro, porque a desigualdade social é mais gritante, e o favelado é confrontado todos os dias com imagens de um consumismo desenfreado. No entanto, ninguém pensa em chamar um Elias Maluco de herói. Se em outros tempos, em que os traficantes tinham maiores ligações com a comunidade, essa lenda ainda persistiu durante um tempo, hoje ela já provou simplesmente não existir.

Aqueles que transformam Lampião em uma espécie de robin hood da caatinga provavelmente esquecem a história. Porque essa versão romântica esbarra no fato de que ele, tantas vezes, serviu apenas de jagunço para coronéis da região. É contradita pelo fato de que aterrorizavam pequenos sitiantes e vilas inteiras, tomando dinheiro de todos, mas poupando proprietários de terra que lhe dessem abrigo — os coiteiros.

Lampião era apenas um coronel sem terras. Seu comportamento era o mesmo, com a diferença que ele precisava ser ainda mais truculento por não ter nenhum estamento que lhe garantisse, diretamente, o poder que exigia.

Não interessa a miséria ou o que fez Lampião ou Antônio Silvino cangaceiros, porque a mesma miséria atingia um bocado de gente. O que interessa é que durante os anos em que assolaram o sertão nordestino sua atuação foi a de bandidos, de assassinos, ladrões e opressores.

Essa mitologia romântica a respeito de Lampião parece ter se consolidado a partir dos anos 70. Era época de ditadura, e aparentemente os movimentos de resistência resolveram tomar como aliados e modelos qualquer coisa que representasse combate ao Estado. Entre outros, isso desagüou no Comando Vermelho, o que deve ter posto de cabeça para baixo toda a crença pseudo-leninista na idéia de que o povo armado fará a revolução; pelo menos aqui, nas terras tupinambás, o povo armado sobe o morro e vende cocaína, que dá mais dinheiro.

Comparar cangaceiros a terroristas palestinos é apenas falsificação da realidade. Concorde-se ou não com seus métodos, os palestinos estão lutando por algo maior que eles. Lampião e seu bando lutavam apenas por si próprios. Para que houvesse alguma razão em não chamar Lampião de bandido seria preciso que alguém mostrasse algo de significativo que ele tenha feito para contestar o status quo social, e não usar a força para garantir o seu quinhão.

Mas com exceção de eventuais rompantes de generosidade, a generosidade do senhor feudal, eu não conheço nada parecido.

Originalmente publicado em 21 de junho de 2005

Cine Tamoio

Semana passada este blog recebeu um comentário de um estudante da Unibahia, fazendo uma pergunta sobre o cine Tamoio. Curiosamente, eu soube que o Tamoio tinha fechado (para se transformar — adivinha? — em uma igreja evangélica) por outro comentário, deixado aqui em fevereiro ou março.

Olá Rafael!
Apesar de você discorrer sobre o filme “Em algum lugar do passado”, não é este o motivo que me traz aqui. Sou estudante de jornalismo da Unibahia e estou fazendo um trabalho sobre o fechamento do cine Tamoio, como você cita sua visita a este cenema gostaria de contar com sua ajuda para desenvolver o trabalho. Você se importa em me relatar suas experiência no cine Tamoio e como você se sente por ele ter virado uma igreja evangélica?
Caso seja possível envie um e-mail para xxx@xxx
Obrigada pela atenção,
Cássia Carneiro.

Cássia,

Faz muito tempo desde a última vez que entrei no Tamoio. Foi em 1993, acho, para assistir a “Corpo de Evidência”, filme ruim com a Madonna e o Willem Dafoe. Na verdade, a época em que mais fui àquele cinema foi no começo dos anos 80.

Em primeiro lugar, o Tamoio é só mais um. Todos os cinemas do centro de Salvador fecharam as portas ou, com “sorte”, se transformaram em exibidores de filmes pornográficos, adiando um pouco o primeiro fim, que é inevitável. Um ou outro, esses foram os destinos do Excelsior, do Jandaia, do Pax, do Bristol, Liceu, Astor, Tupi, do Popular. Duvido que a maioria dos soteropolitanos na casa dos 20 anos sequer lembre de todos esses cinemas.

O problema é que não há saída para os cinemas de centro. Seu fechamento progressivo é o resultado de um processo de modernização das cidades, de migração da classe média consumidora para os shopping centers. Não dá para evitar. É até uma prova do valor desses cinemas, como elemento cultural urbano, que tenham sobrevivido tanto tempo mesmo décadas depois de todas as lojas chiques terem ido embora da rua Chile. O Tamoio sobreviveu à Sloper por muito tempo.

Para que esses cinemas sobrevivam é preciso fazer o que o Unibanco fez com o Glauber Rocha aí em Salvador. Mas mesmo esse não é exatamente um “cinema de centro”; está mais para um “míni-shopping cultural” no centro da cidade, com várias salas de exibição. Um exemplo melhor seria o que a Petrobras fez com o Odeon, no Rio. Em qualquer desses casos, é um investimento que tem pouco a ver com o mercado.

Há um outro lado, também. Eu acho meio irônico que, sempre que um cinema feche as portas (e quando é para virar igreja evangélica a grita parece ser maior, talvez porque a classe média católica se assuste com o crescimento das igrejas pentecostais entre os pobres), as pessoas reclamem, chorem suas saudades dos velhos tempos. Elas só não se fazem uma pergunta simples: há quanto tempo elas não iam para aqueles cinemas, preferindo o conforto e a maior adequação social dos cinemas de shopping? As pessoas parecem esperar que cinemas funcionem sozinhos, apenas para manter uma paisagem urbana familiar, talvez a sensação de que as coisas continuam como eram. Mas isso é impossível.

De certo modo há uma grande hipocrisia em tudo isso, como é típico da classe média.

De qualquer forma, eu acho melhor que um cinema desativado vire igreja do que estacionamento ou loja. Pelo menos eles continuam, de uma maneira meio torta, fazendo o que sempre fizeram: criando sonhos.

Um abraço, e espero que tenha ajudado,
Rafael

Originalmente publicado em 16 de junho de 2005

Bolero

A campainha tocou.

Ante surpresa tão rude, nem sei como pude chegar ao portão. E lá estava ela.

Ah, como esse amor demorou a chegar. Ela disse-me assim: “Tenha pena de mim”.

Sem saber o que fazer, as palavras saíram da minha boca: “Entre, meu bem, por favor, não deixe o mundo mau lhe levar outra vez. Entra, podes entrar: a casa é tua, já que cansaste de viver na rua e teus sonhos chegaram ao fim.”

Ela entrou, cabeça baixa, e ficou ali parada, no meio da sala, à luz difusa do abajur lilás.

Eu interrompi o silêncio: “Que queres tu de mim? Que fazes junto a mim?”

Olhando nos meus olhos, o mesmo olhar, ela perguntou: “Como vai você? Eu preciso saber da sua vida, razão da minha paz tão esquecida.”

Balancei a cabeça, e então lembrei de tudo: “Só louco amou como eu te amei. Só louco quis o bem que eu te quis.”

Ela deu um sorriso triste: “Esses moços, pobres moços, ah, se soubessem o que eu sei.” Devagar, se aproximou de mim, o mesmo perfume, o mesmo andar: “Negue o seu amor, o seu carinho. Diga que você já me esqueceu. Diga que já não me quer, negue que me pertenceu que eu mostro a boca molhada, ainda marcada pelo beijo seu”.

Explodi: “Eu gostei tanto, tanto, quando me contaram que lhe encontraram chorando e bebendo na mesa de um bar.”

Ela levantou a cabeça, e tentou mostrar a velha altivez de antes:

“Quem é você que não sabe o que diz? Meu Deus do céu, que palpite infeliz! Se meu passado foi lama hoje quem me difama viveu na lama também.”

Aquelas palavras me deixaram descontrolado. Gritei: “Agora você vai ouvir aquilo que merece. As coisas ficam muito boas quando a gente esquece; mas acontece que eu não esqueci a sua covardia, a sua ingratidão, a judiaria que você um dia fez pro coitadinho do meu coração!”

Seu Orestes e dona Dolores, meus vizinhos, ouviram os gritos e foram até a janela perguntar o que estava se passando. E eu disse a ele: “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor? Ter loucura por uma mulher? E depois encontrar esse amor, meu senhor, ao lado de um tipo qualquer?” Seu Orestes abanou a cabeça e levou um cutucão de dona Dolores. Nesse instante uma voz ecoou: “Magoou-se, pobre filho meu?” Era dona Dolores, preocupada. Respondi que não, que eu resolveria aquilo, e eles se foram.

Olhei para ela: “Atiraste uma pedra no peito de quem só te fez tanto bem. A nossa casa, querida, já estava acostumada, guardando você; as flores na janela sorriam, cantavam por causa de você. E tu pisavas nos astros distraída…”

Aos prantos ela se ajoelhou aos meus pés: “Nunca mais vou ouvir o que o meu coração pedir! Nunca mais vou fazer o que o meu coração mandar! Eu fiz mal em sair, eu fiz mal em deixar o que eu tinha em você! Hoje eu volto vencida, a pedir pra ficar aqui, faz de conta que eu não saí!”

A estrofe derradeira merencórea revelava toda a história de um amor que não morreu.

Mas isso não bastava. Não para mim: “Quando eu queria o teu amor não davas atenção ao meu. Pra mim tu não tens mais valor, agora quem não quer sou eu. Nem que o mundo caia sobre mim, nem se Deus mandar, nem mesmo assim as pazes contigo eu farei.”

Ela continuou: “Se eu soubesse naquele dia o que eu sei agora, eu não seria este ser que chora, eu não teria perdido você”.

Quem sou eu pra ter direitos exclusivos sobre ela?, pensei. Menti: “Se acaso você chegasse no meu chatô e encontrasse aquela mulher? Eu falo porque essa dona já mora no meu barraco, à beira de um regato.

“Quem é ela?”

“De quem eu gosto nem às paredes confesso. Provei do amor todo amargor que ele tem. Então jurei nunca mais amar ninguém. Porém, eu agora encontrei alguém que me compreende e que me quer bem.”

Ela ficou em silêncio.

Apontei para fora. “Eu estou lhe mostrando a porta da rua pra que você saia sem eu lhe bater.”

Ela ficou parada, estática. Limpou as lágrimas, alisou o vestido e, dirigindo um último olhar para mim, falou: “Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor. E às pessoas que eu detesto diga sempre que eu não presto, que o meu lar é o botequim; que eu arruinei sua vida, que eu não mereço a comida que você pagou pra mim.”

E ela se foi.

Hoje eu quero a paz de criança dormindo e o abandono de flores se abrindo para enfeitar a noite de meu bem. Mas quando eu morrer, na minha campa nenhuma inscrição: quando eu morrer não quero choro nem vela, quero uma fita amarela gravada com o nome dela.

Originalmente publicado em 01 de junho de 2005

Um ditadorzinho de alguma república

Eu não liberei o comentário abaixo porque não gosto muito de quem não assina seu nome; tudo o que sei é que quem fez esse comentário trabalha no governo do Paraná e usa o dinheiro do povo para deixar comentários bobos no meu blog:

IP Address: 200.189.112.59
Name: Menos Galvão…
Email Address: menos@ig.com.br
Comment: Vc têm todos os pré-requisitos para se tornar um ditadorzinho de alguma republica.

Mas, Deus do céu, como fiquei orgulhoso.

Eu vou falar a verdade. Eu adoraria ser um ditador, zinho ou zão, de alguma república, zinha ou zona.

Qualquer república.

Naquelas horas de vigília, quando abri os olhos mas ainda não acordei, quando a mente vaga por um território só dela, quando não sou ainda responsável pelos meus pensamentos, naqueles momentos antes de fumar o primeiro cigarro do dia, eu fico pensando nisso.

É melhor que sonhar que se está voando, melhor que sonhar com a Zeta Jones, melhor até que estar batendo naquele desgraçado que lhe deu um soco na terceira série e a professora lhe impediu de revidar.

Se eu fosse ditadorzinho de uma pequena república eu não usaria uniforme militar, porque sou mais bonito e mais fofo que Fidel Castro. Em vez disso usaria todos aqueles ternos Armani e Zegna que não pude comprar — mas sem gravata, porque não gosto de nada no meu pescoço e a sombra da forca, brandida como ameaça por revoltosos e invejosos que se amontoariam nas ruas batendo panelas e erguendo cartazes dizendo “Menos Galvão, mais comida!”, estaria sempre presente.

Se eu fosse ditador não sei quantos carros teria, porque não me interesso por isso, mas saberia que haveria sempre um motorista à disposição, que me serviria com uma mistura de admiração, inveja e medo por saber que, em caso de qualquer indiscrição, a única coisa democrática na minha ditadura seria o paredão.

Se eu fosse ditador, e tivesse um país aos meus pés, eu casaria com uma vagabunda sem classe mas ambiciosa, desbocada mas com bom remelexo, tirada do puteiro mais baixo, porque sempre gostei de cachorras e não deixaria a fama, a fortuna e o poder mudarem tão bela característica. E apresentaria minha escolhida à sociedade como uma afronta a que me permitiria por ser um ditador e como um exemplo de ascensão social, e me manteria olimpicamente indiferente enquanto os leitores ávidos de revistas de fofocas se deleitassem com os pequenos e grandes escândalos conjugais, com as orgias reais e imaginárias no palácio do governo, encontrando ali justificativa para suas próprias vidas vazias, tão vazias quanto seus bolsos, tão vazias quanto os gritos de “Menos Galvão, mais decência!”.

Seria essa puta que eu vestiria com Chanel, e ordenaria aos meus ministros que chamassem a própria Coco para fazer os vestidos — e ninguém pode imaginar o descaso com que eu ouviria algum mais corajoso dizer que isso era impossível, que a velhota havia morrido há muito, muito tempo, e enquanto nos corredores do Palácio os cochichos fariam alusão à minha ignorância crassa eu riria em segredo, porque eles não teriam entendido nada, não teriam entendido que há apenas um tipo de poder que permite isso, e é exatamente aquele tomado por um ditadorzinho de alguma república.

Se eu fosse ditador de alguma república acordaria todas as tardes com o mordomo me trazendo o café da manhã e os jornais do dia, entre os quais aquele de oposição que eu deixaria circular para dar uma impressão de democracia, mas deixando claro ao editor que ele deveria saber seus limites porque a oposição existiria apenas para dar um verniz de legitimidade ao meu governo.

Mas na minha ditadura não haveria mortes, pelo menos não mais que as estritamente necessárias, porque ainda que ditador eu continuaria baiano, e daria ao povo pão e circo, e eventualmente até consentiria em ouvir, da sacada do meu palácio, os poucos descontentes com coragem suficiente para pedir incentivos à cultura e carregar cartazes de “Menos Galvão, mais empregos!”, e faria isso com um sorriso paternal e a mesma atenção dada aos afghan hounds que decorariam o meu palácio.

Se eu fosse ditadorzinho de alguma república, qualquer república, eu jamais me disfarçaria de pobre para circular pela cidade e ouvir o que o povo dizia de mim, porque eu não estaria interessado em proletários mal-cheirosos e uma das prerrogativas de um ditador é ser poupado de opiniões desagradáveis. Em vez disso colocaria minha beca domingueira — porque embora ditador eu faria questão de lembrar que um dia fui pobre, e usaria essa história para ludibriar uns quatro ou cinco bestas — e iria para longas viagens por Paris, onde poderia me embebedar com putas senegalesas e russas, e dar presentes caros a elas pela simples razão de poder dar, sem que isso fosse motivo para os pobres opositores se revoltarem ainda mais, exatamente aqueles que levantariam o mais alto possível cartazes dizendo “Menos Galvão, mais Deus em nossas vidas”, como se na minha república Deus e Galvão não fossem a mesma coisa.

Quem quer que tenha deixado esse comentário está certo: eu seria um excelente ditadorzinho de alguma república.

Acontece que república talvez seja muito pouco, e como Júlio César eu conspiraria para criar o Império, e seria nomeado Defensor Perpétuo do meu modesto país. Porque ainda que me sinta à vontade no papel de ditadorzinho, eu gostaria também de ser rei, e usaria coroa como revolucionários usam boinas com botões do Che Guevara, e nas solenidades oficiais — que seriam muitas durante o meu reinado — eu usaria um manto de arminho como símbolo do meu poder.

Ah, mas divago, divago…

Originalmente publicado em 05 de maio de 2005

Livros ou o mal que fazem às minhas costas

Meus livros ficaram encaixotados desde que vim do Rio, ano e meio. Chegaram em novembro e só agora arranjei coragem para arrumar os coitados.

Não vou falar do trabalho miserável que é tirar livros de caixas, colocá-los na mesa, limpar e arrumar cada um deles. Ninguém merece isso. Minhas costas já sofreram o bastante para eu precisar descontar em cima de alguém. Prefiro colocar uma foto ao lado: ali está a primeira leva, as primeiras duas caixas. Havia mais algumas me esperando.

Eu tenho cá meu sistema de organização. Simples ao extremo, que eu não sou bibliotecário e Dewey para mim era apenas um promotor que queria ser presidente. Mas é eficiente.

São, basicamente, alguns níveis de divisão. O primeiro é simples: ficção e não-ficção. Tenho notado que o tempo age implacavelmente sobre mim; se há dez anos eu lia preferencialmente ficção, hoje em dia leio cada vez mais não-ficção. Os interesses mudam com o tempo.

Ficção eu separo, em primeiro lugar, por país. Literatura brasileira, americana, inglesa, russa, etc. Cada uma dessas é subdividida em autores, em ordem cronológica. Primeiro os autores mais antigos. E os livros de cada autor, por sua vez, estão classificados também em ordem cronológica. Não faço distinção entre prosa e poesia. Não me parece apropriado classificar poesia como ficção, mas tampouco é não-ficção. Fica ali, mesmo, e a minha Marianne Moore, paixão de muito tempo, se espreme entre um livro de contos do Edmund Wilson e um livro quase bom do Malamud. Além disso, eles são muito poucos. Como são muito poucos os livros de ficção latino-americana. Atrás de todos eles está o meu livrinho de 1500 dólares (comprado por 1), Quiet Days in Clichy, meu grande orgulho de comprador de livros.

Há uma última divisão: literatura policial. Mas segue os mesmos padrões, com uma diferença: primeiro vem Hammett, depois Chandler, depois MacDonald, minhas três grandes preferências. James Cain. Chester Himes. Walter Mosley, o último autor a me empolgar. E então vem o resto. Jim Thompson, de quem já gostei mais, tem lá o seu lugar. Mas os poucos livros de Agatha Christie, comprados há 20 anos, continuarão escondidos em uma caixa, como tem acontecido nos últimos 10 ou 15 anos. Eu tenho vergonha de ser visto com a velha dama indigna.

Os livros de Evelyn Waugh se espremem entre um Joyce e um Greene — estão em boa companhia. O que me espanta, aqui, é o número de livros ruins. “Os Versículos Satânicos” está lá, em literatura inglesa; mas é em literatura americana que está o maior número de lixo. Eu quase não acredito que tenha três romances de John Updike e um de Gore Vidal, dois romancistas abaixo do aceitável (em compensação tenho dois belos livros de ensaios de Vidal e a autobiografia e uma coletânea de resenhas de Updike. Updike não chega aos pés de Richard Ellman como crítico, mas seu texto é melhor).

A parte de não-ficção é mais interessante.

As subdivisões são poucas, e como foram os primeiros a ser arrumados, na prateleira mais alta, ainda precisam ser ordenados. Há a parte do que eu chamo de “negócios”, o que inclui jornalismo, publicidade, marketing e marketing político e livros sobre algumas empresas (a história da IBM me fascina, por exemplo, desde que li a biografia de Tom Watson, Jr). Há as biografias, a parte sobre música (desculpe: Beatles), cinema. História, política, ensaística e crítica literária. Os livros de arte se arranjam como podem, de acordo com seu tamanho.

É curioso que eu tenha tão poucos livros sobre publicidade, e menos ainda sobre marketing político. Mas tenho pelo menos tudo o que David Ogilvy publicou de decente, embora só precisasse, mesmo, de um: Ogilvy on Advertising. Se alguém fosse ler um livro, e apenas um, sobre propaganda, esse seria o livro que eu indicaria.

Há algumas curiosidades. “Minha Luta”, de Hitler, está ao lado de Hitler’s Willing Executioners. Talvez só eu ache isso engraçado.

Ali também descansam livros que, decididamente, eu não sei direito como foram parar ali: “O Óbvio e o Obtuso”, “O Ser e o Nada”, “A Reconstrução dos Direitos Humanos” (do chato Celso Lafer sobre a chatíssima Hannah Arendt).

Definitivamente, quem tentar me conhecer pelos meus livros não vai descobrir absolutamente nada sobre mim. No máximo vai conhecer o mal que eles fazem às minhas costas.

Originalmente publicado em 04 de maio de 2005

Numa tarde em Fortaleza

Eu morava em Fortaleza e minha casa ficava perto da agência onde trabalhava, uns três ou quatro quarteirões.

Eu voltava do almoço (almoço era a hora em que eu ia tocar guitarra para minha filha), subindo a Rui Barbosa, quando encontrei um cego no cruzamento com a Torres Câmara. As pessoas passavam por ele sem se deter, atravessavam sozinhas a rua porque, afinal de contas, atravessar a rua era problema dele. Ofereci o braço, ele segurou e atravessamos a rua.

Fomos conversando pelos próximos dois quarteirões. Acho que fui eu a iniciar a conversa, e reclamei daquele sol miserável de Fortaleza, daquele calor miserável de Fortaleza. E ele disse que sim, estava muito quente, mas então lembrou que era pior quando chovia.

Em uma mão ele segurava sua bengala, na outra uma pasta: ele era vendedor. E me disse que quando chovia tudo ficava mais complicado para ele, porque tinha que segurar o guarda-chuva com uma das mãos e dar um jeito de levar a pasta e a bengala na outra.

“Ué”, eu disse, “uma capa de chuva é mais prático.”

E então ele disse que não, que uma capa de chuva era uma verdadeira tragédia, porque cobria seus ouvidos e sem ouvidos ele não podia se localizar. Sem ouvidos ele se tornava um inútil. Nos poucos metros que restavam ele me contou que não podia se dar ao luxo de não trabalhar, porque tinha responsabilidades, mulher e filhos para sustentar.

Ele se despediu de mim em outro cruzamento.

Alguns quarteirões antes, eu tinha parado para fazer uma boa ação. Uma que fizesse Deus, na hora da morte, contrabalançar um pouco as tantas más e me garantir, com um pouco de boa vontade, um lugarzinho no purgatório. Acabei recebendo uma lição de vida, uma espécie de recado para nunca mais reclamar de bobagens. Eu saía de um apartamento ventilado e ia para uma agência onde o ar-condicionado estava ligado no máximo, e reclamava de cinco minutos de sol e calor. Enquanto isso aquele sujeito agradecia pelo sol que o mesmo Deus que lhe tinha tirado os olhos lhe dava.

De vez em quando eu vejo as pessoas reclamando do quão difícil é a sua vida.

Já estou velho o suficiente para saber que não dá para comparar as pessoas, que a cruz de cada um parece às vezes pesada demais independente do tamanho, e elas sempre têm razão porque cada um sabe o quanto ela lhes pesa. Mas hoje, antes de reclamar das coisas, eu tento lembrar daquele cego que dobrou à esquerda na Santos Dumont, bengala branca em uma mão e uma pasta velha e batida em outra, e que se afastou enquanto eu ouvia o ruído de sua bengala batendo na calçada.

Originalmente publicado em 28 de março de 2005

Meu ódio será tua herança

Normalmente gosto das traduções brasileiras para títulos de filmes.

A maioria se limita a traduções literais. Pretty Woman vira “Uma Linda Mulher”, Ladri di Bicicletti se torna “Ladrões de Bicicleta” e por aí vai. Esses não interessam.

É quando os tradutores liberam sua veia de escritores obrigados a ganhar a vida de forma pouco glamourosa que a tradução se transforma em arte.

O exemplo clássico é The Wild Bunch, que aqui virou “Meu Ódio Será Tua Herança”. Um título muito, mas muito melhor que o original anêmico. Era a época do western spaghetti e os tradutores estavam com aqueles títulos italianos maravilhosos na cabeça. Aliás, aquele era um celeiro de grandes títulos, escandalosos, escrachados, latinos. Os italianos certamente tinham noção do que era um europeu fazer um western, e pelo visto abordavam a coisa com um tom de paródia exagerada que fez muito bem ao gênero. O western spaghetti é uma drag queen.

(Isso só não explica por que The Good, The Bad and The Ugly virou no Brasil o bobo “Três Homens Em Conflito”.)

Mas o trabalho dos tradutores é mais difícil que isso. Por exemplo, pegue-se Mr. Smith Goes to Washington. É o típico filme de Capra, o sonho americano mostrado através de sua antítese. O título original faz alusão à possibilidade de o homem comum ter voz no centro de poder dos Estados Unidos. E isso todo americano com um nível razoável de educação entende. Mas, como eu não canso de repetir, para um brasileiro mister Smith pode ir para Washington, para o Winsconsin ou para a puta que o pariu, tanto faz. Não dava para traduzir por “Seu Silva Vai Para o Catete”. E então eles saem pela tangente com o título “A Mulher Faz o Homem”, que ilumina um aspecto totalmente diferente do filme, quase transformando-o em um manifesto feminista.

Outra boa tradução é a de Midnight Cowboy. Bom título, certo — mas “Perdidos na Noite” é ainda melhor e traduz perfeitamente o espírito do filme. E High Noon? Enquanto o título original carrega no suspense que permeia o filme, o brasileiro — “Matar ou Morrer” — define o dilema existencial de Gary Cooper. É diferente, mas igualmente brilhante.

A maioria dos títulos traduzidos tenta se adaptar à cultura local de sua época, dando a cor que os tradutores acham que o público espera. Rebel Without a Cause virou “Juventude Transviada” por isso, porque esses termos eram mais comuns no Brasil da época; a palavra “transviada”, hoje, só conseguiria gerar risos. Na mesma linha há “Os Brutos Também Amam”, versão sem nenhuma relação com o original Shane. Cá para nós, o filme sequer tem tanto amor assim; e a pessoa que mais ama é o garotinho, que nem de longe é bruto. Mas é preciso admitir que é um título muito melhor que o original.

Talvez o melhor exemplo de tradução que acrescenta ao filme seja “Crepúsculo dos Deuses”, de Billy Wilder. O título original, Sunset Boulevard, se refere à decadência do star system de Hollywood através da decadência de uma de suas ruas mais simbólicas. “Crepúsculo dos Deuses” absorveu essa idéia de degradação e de fim e foi além, dando uma idéia mais grandiosa do que aquele processo de decadência (que se repetiria mais tarde, naquela mesma década) significava.

Em comparação, a versão em espanhol se chamou El Ocaso de una Estrella. Tão pobre. Tão mais pobre que mesmo o original.

Mas os maus exemplos não se limitam à península. Unforgiven, aqui, virou “Os Imperdoáveis”. Com o perdão do trocadilho, imperdoável é isso. A tradução errada tira todo o significado do filme. Eastwood, Freeman e Hackman não são imperdoáveis, são “imperdoados”. Há uma diferença muito grande entre as duas palavras; e o título brasileiro retira do filme toda a possibilidade de redenção a que eles almejam. Um se refere ao passado, e o outro a uma situação imutável. Do mesmo modo, All About Eve ter virado “A Malvada” tira muito da idéia de biópsia do personagem de Anne Baxter. E A Streetcar Named Desire traduzido como “Uma Rua Chamada Pecado” é um crime contra Tennessee Williams. Até hoje me recuso a pronunciar esse nome.

Originalmente publicado em 01 de março de 2005